Ficções e Recordações - 2015

Férias na aldeia

Festejei os meus primeiros vinte e dois aniversários, com excepção dos quarto e quinto, o meu pai encontrava-se mobilizado em Angola, na aldeia dos meus avós paternos: Vila Seca, pequena aldeia sede de freguesia do concelho de Condeixa-a-Nova, à época, com aproximadamente 200 habitantes, cujo abastecimento de água era feito por três fontes, que nem sempre tinham água, todas situadas fora da povoação e das quais só uma era dotada de bica, sem luz eléctrica e onde não chegavam notícias do exterior, que aliás não interessavam a praticamente ninguém, a não ser através de dois ou três homens que trabalhavam, em Coimbra.

As minhas primeiras recordações referem-se aos passeios dados com os meus pais, ao longo da estrada que liga Condeixa à Lousã ou pelos caminhos entre os campos, só de manhã cedo ou ao fim do dia, quando fazia menos o calor, porque, mesmo em Setembro, o termómetro atingia e ultrapassava frequentemente os 40º. As temperaturas eram de tal ordem que, a partir da segunda-feira de Páscoa e até 8 de Setembro, dia de Nossa Senhora da Encarnação, os homens, especialmente os que trabalhavam no campo, faziam a sesta, depois do almoço, até às 15H00, dormindo à sombra das árvores. Curiosamente durante este período, tinham direito à merenda.

Quando comecei a sair sozinho e como não havia com quem brincar como na cidade, porque os miúdos da minha idade já ajudavam os pais, passei a ter também uma ocupação frequente: guardador de gado. À tarde, com uma fatia de boroa e um bocado de presunto ou um punhado de azeitonas, no bolso dos calções, levava uma cabra e as ovelhas dos meus avós – a cabra desaparecia no dia 13, pois tinha sido transformada numa chanfana que era a minha prenda de anos – e juntava-me aos outros garotos, só voltando para casa ao fim do dia.

Assistia, sempre que me era possível, aos mais diversos trabalhos agrícolas e participava nas desfolhadas, nas escaroladas (operação que consiste em tirar os grãos de um carolo que resistiram à malhada, esfregando nele outro carolo) ou nas vindimas, cortando os cachos para uma cesta e transportando-os para o carro da burra, que o meu tio, algumas vezes, me deixava conduzir, até à adega, para grande aflição da minha mãe. Aprendi a cavar e a malhar, tendo-me o meu avô feito um pequeno malho, que acabou por ser utilizado para malhar feijão e que creio ainda existir. O saber manejar a enxada veio-me a ser útil para ajudar o meu padrinho (marido da minha madrinha) a tratar do quintal ajardinado da casa da rua de Eça de Queirós, onde também morei até aos cinco anos, em Aveiro. De qualquer maneira, adquiri conhecimentos que me permitiram, ao contrário das crianças que só viveram na cidade, conhecer a vida do campo e possuir um razoável vocabulário no que respeita ao sector primário.

A determinado momento, entrei na fase venatória e as minhas primeiras armas foram os costelos, designação local das ratoeiras de arame para pássaros de pequeno porte, dos quais um dos meus tios era fazedor exímio, mas só para uso próprio. 

Às 7H00, tomava o primeiro almoço, uma malga de café de mistura com boroa, e partia para armar os costelos. Chegado aos locais perto de árvores ou silvados onde costumava pousar a passarada, fazia um armadouro – pequena elevação de terra com uma inclinação de cerca de 45º – ou aproveitava um já existente, colocava nele o costelo, coberto com uma fina camada de terra, mas com um bicho do milho vivo, amarrado por uma linha ao dispositivo de disparo e bem à vista da possível presa e seguia para o próximo. Quando um pássaro via o bicho a mexer-se (a puxar como nós dizíamos), descia do galho onde estava pousado, dava-lhe uma bicada e disparava, de imediato, a forte mola de aço central da ratoeira que se fechava, matando-o ou prendendo-o entre as duas metades.

Depois de armar o último, fazia o percurso inverso, ia apanhando a possível caça, substituindo os bichos que tivessem sido mortos pelas aves e rearmando os que tivessem sido disparados por alguma felosa ou carriça que, dado serem muito pequenas, dificilmente eram apanhadas. Podiam ser usadas várias espécies de isco, por exemplo, moscas ou outros insectos, mas eu preferia os bichos, que apanhava nos milhos de restolho e guardava, em canoilos meio vazios, para eles se poderem alimentar.

Chegado a casa, depenava os pássaros, se os tivesse, assava dois ou três, na lareira, comia-os com boroa e ficava almoçado. Às 15H00, depois de jantar, ia dar mais uma volta aos armadouros, voltava para casa, merendava, por volta das 17H00 e, ao fim da tarde, ia levantar os costelos. Se a caçada tivesse sido abundante, o que era raro, à ceia, poder-se-ia comer uma arrozada de passarinhos, caso contrário, assavam-se os existentes na brasa, com umas pedrinhas de sal e fazia-se um petisco de detrás da orelha.

As aves, que se deixavam apanhar com mais facilidade, eram os piscos (apareciam, nos fins de Setembro, escanzelados e cheios de fome), os tralhões, os tralhões-mosquenhos, os papa-figos e os papa-amoras (estes, como o nome indica, perto dos silvados), mas também caíam pintassilgos, toutinegras, verdilhões, tentilhões e, até, picanços que, principalmente os de cabeça vermelha, eram muito desconfiados e raramente eram enganados por estas ou outras armadilhas. Quando se queria armar aos melros, ou às rolas, ou até aos pombos bravos, empregavam-se costelos maiores e com molas muito mais potentes ou então ratoeiras dos ratos, mas, em qualquer dos casos, sempre amarrados a uma estaca enterrada no chão, para que, se ave só ficasse presa e não morresse logo, não fugisse com a armadilha.

Quando passei no 2º ano do Liceu, antigo 1º Ciclo, aumentei exponencialmente a qualidade do meu armamento: os meus pais ofereceram-me uma pressão de ar, que ainda hoje guardo, no estojo de cotim confeccionado pela minha mãe. O meu pai era um verdadeiro atirador de elite à bala, tendo mesmo vencido alguns concursos, mas eu nunca fui grande espingarda, porque me faltava firmeza de mão. Conhecia a técnica: apontar ao pássaro de frente e a poucos metros, tirar a folga do gatilho, entrar em apneia, esperar a batida do coração e premir suavemente o gatilho; mas se não estivesse apoiado a um muro, a um tronco, ou deitado, só acertava por sorte.

A grande diferença, para mim, foi que a arma e o avançar da idade me permitiram alargar o meu raio de acção. Quando armava os costelos, em miúdo, fazia-o muito perto da povoação. De arma ao ombro, passei a percorrer todos os caminhos, carreiros e atalhos, cada vez mais longe e até às aldeias vizinhas, o que me permitiu ficar a conhecer a zona melhor do que alguns que lá nasceram e viveram, durante alguns anos.

Dizem-me os meus primos que muitas das antigas propriedades se encontram totalmente abandonadas, em pousio, e que os caminhos que a elas levavam, estão intransitáveis, obstruídos pelo que lá se chamam os alagões – pedras dos muros que deixaram de ser tratados e caíram – e cheios de silvas.

Mas, para mim, os caminhos continuam como dantes e as terras estão todas bem amanhadas, quando, certas noites, ao deitar-me, fecho os olhos e, antes de adormecer, calço as velhas botas ensebadas, de solas cardadas, pego na espingarda Diana modelo 22, de cano estriado, ponho no bolso uma caixa de chumbos Diabo, comprados na espingardaria do Manel Velho, e vou pela estrada do Espírito Santo, depois da capela viro para o caminho da Luta, passo pelo Termantelo, falho um pintassilgo numa oliveira, continuo para o Rossio, dou um tiro num tentilhão, pousado num galho seco de um pinheiro e acerto-lhe de asa, tendo de correr atrás dele para o apanhar, enfio-lhe uma pena das grandes na cabeça, ponho-o no bolso, desço para o Brigueiro, onde mato um tralhão, num pessegueiro ao cimo da vinha do meu avô e aproveito para comer um pêssego. Arranco um ramito de uma tanchoeira, aliso-o com o canivete, ainda hoje trago sempre um no bolso, ajeito-lhe o gancho provocado pela esgalhadela, enfio a outra extremidade mais fina, na goela do passarito, de modo a sair pelo bico, junto-lhe o tentilhão, penduro-os ao cinto e volto para casa pela estrada nacional, mas, a meio da ladeira, vou dar uma espreitadela, ao Choizo Loureiro e vejo uma data de minúsculas, irrequietas e saltitantes felosas, na figueira. Ao fim de muita paciência e não menos chumbos, ponho três abaixo que me dão para compor o pretenso cinto e me levam a dar uma volta à aldeia, esperando que alguém me veja e gabe a pontaria do miúdo, neto do Ti Manel Dias e da Ti Marzairo.

Outras vezes, desço a ladeira, subo o caminho da Fonte, bebo uma mão cheia de água na fonte de Cima, vou pelas Corvas até à Mangueira, onde como um cacho Fernão Pires na vinha da família, desço até à Nogueira e entro na aldeia pelo Sabugueiro, a ver se não me cruzo com ninguém, pois não tenho caça para exibir.

Para terminar, farei uma analepse e voltarei ao tempo da narrativa, para fazer uma confissão. Enquanto andei no Liceu, mal acabavam as aulas, começava a contar os dias que faltavam para ir para Vila Seca. Depois, a falta de certas comodidades, o ficar, à noite, em casa, depois de cear, o deitar-me com as galinhas, o não ouvir notícias – o único rádio existente pertencia ao padre e era alimentado por um mecanismo eólico –, o não ter ninguém com quem conviver a não ser os familiares e, principalmente, o estar fora do meu ambiente e longe dos meus amigos, fizeram daquele mês, para mim, um período dificilmente suportável e foi com alívio que, trabalhando no Turismo, me vi impedido de gozar férias, até 15 de Setembro.

18.06.2015