Como nota prévia, direi não poder assegurar que os acontecimentos a
seguir narrados me tenham sido transmitidos por testemunhas
contemporâneas, presenciais e idóneas. Se os ouvi, ou li, ou sonhei, ou,
quiçá, inventei, não sei. Talvez provenham, um pouco, de todas estas
origens.
Nos anos cinquenta, sessenta do século passado (séc. XX), existiu, numa freguesia
rural da sede do concelho, uma agremiação denominada “Grupo Cultural e
Recreativo os Amigos de Talma”, fundada, financiada e dirigida
administrativa e artisticamente, pelo senhor João Elias, abastado
proprietário agrícola local, a quem o vírus do Teatro tinha sido
inoculado pelo padre Alberto, quando encenou um Auto da Paixão, onde o
jovem Elias tinha desempenhado, garbosa e mudamente, o papel de soldado
romano.
A partir daí, o João Elias passou a não faltar a nenhuma representação
teatral dos grupos amadores existentes na região e, logo que as suas
possibilidades financeiras lho permitiram, fundou o supracitado Grupo
que, todos os anos, começou a levar à cena peças, no salão de festas da
Junta de Freguesia.
Dada a falta de cultura geral e os reduzidíssimos conhecimentos teatrais
dos intervenientes, todos gente da terra, e muito especialmente do seu
director artístico, as representações revestiam-se de uma grande
ingenuidade, chegando ao ponto de, nos primeiros tempos, serem lidas as
notações constantes dos textos. Assim, por exemplo, uma personagem
entrava em cena e dizia: “Entra António pela porta da direita alta e
diz com voz alegre. Bom dia, Deus esteja nesta casa e o diabo em casa
dele.” Ou então uma outra saía exclamando: “Adeus minha mãe,
adeus meu pai, vou partir desta casa, onde já não sou amada, para não
mais voltar. Sai Joana, chorando, pela esquerda baixa.”
No que respeita aos espectáculos, ensaiados durante o inverno e com
estreia obrigatória no início da Primavera, eram sempre dramalhões de
faca e alguidar, capazes de fazer chorar os corações mais empedernidos,
ou revestiam-se de uma violência extrema que fazia tremer os mais
valentes e, muitas vezes, continham gaffes incríveis ou
terminavam com broncas enormes, das quais relatarei quatro exemplos,
entre os muitos possíveis, especificando o nome das peças, onde
pretensamente se verificaram.
1. A Bandeira Roubada
A acção decorria durante a 3ª Invasão Francesa. O português
Porta-Bandeira tinha sido desapossado do estandarte, durante a Batalha
do Buçaco, e a peça começava, no acampamento português, com o Conselho
de Guerra, em que o jovem Alferes era condenado à exautoração e à morte
por fuzilamento. Entretanto, um irmão do jovem oficial, simples soldado
raso, ofereceu-se para ir resgatar a bandeira, salvando, assim, a vida
do seu mano, proposta que foi aceite.
No segundo e último acto, o voluntário conseguiu infiltrar-se entre as
forças gaulesas e, quando vinha a sair, com a actual bandeira nacional
bem cingida ao peito, sobre a camisa da farda do camuflado usado pelas
tropas de Infantaria portuguesa do século 20, apareceu-lhe, saindo de
uma porta do cenário, que por acaso era o mesmo do acampamento
português, um oficial do exército do Marechal Massena, fardado de GNR,
com capacete e espadalhão à cinta, que, apontando-lhe uma pistola de
alarme vociferou: “Alto aí!”.
O português deu mais dois passos, mas não ouvindo o esperado tiro que o
haveria de matar, estacou de perfil, em posição de hieróglifo egípcio,
agarrando, na mão direita, o algodão em rama embebido na tinta vermelha
que haveria de espremer, na fonte direita, por onde sairia a bala
assassina. Entretanto, o oficial francês, que continuava a apertar,
repetida e angustiadamente, o gatilho sem provocar o disparo, tirou o
carregador, tornou a colocá-lo, mas a arma mantinha-se encravada, para
seu desespero e do português, que não sabia o que fazer, já que a peça
teria de terminar com a sua abnegada e gloriosa morte. Na assistência,
começavam a ouvir-se os primeiros sinais de impaciência, até que surgiu
a solução salvadora, quando se ouviu uma voz vinda da última fila: “Eh
Xico, amanda-lhe ca espada!”
O francês, que na vida real era o Xico da Rosária, não se fez rogado.
Desembainhou, avançou para o português com a lâmina ao alto, sem saber
bem o que fazer, porque nunca tinha ensaiado tal situação e, temendo
aleijar o amigo – a espada era a sério –, encostou-lhe os copos, ao
flanco esquerdo, gritando com voz tenebrosa: “Matei-te!” O
português deu um grito e exclamou, caindo redondo e sangrando
abundantemente da fonte virada para o público: “Morro por ti meu
irmão e pela nossa querida Pátria! Viva Portugal!”. Entretanto, o
pano caía, mal se ouvindo o Hino Nacional tocado por uma grafonola,
entre-cenas, e abafado por uma risada homérica da assistência.
2. Suprema Desonra
Ezequiel, agente com uma boa carteira de seguros e, segundo
constava, senhor de uma confortável situação económica, tinha enviuvado
aos 46 anos, ficando com o filho Humberto, de 21 anos, pouco amigo de
trabalhar, mas esforçado pinga-amor. Ao fim de 18 meses, voltara a
casar-se com a vizinha Lucília, ela também viúva recente, mas bastante
mais nova, pois ainda não chegara aos trinta. Passados dois anos,
Lucília tinha conquistado, na cozinha e no leito, a total confiança do
marido, possuindo mesmo o estatuto de titular nas suas contas bancárias.
Está feito o resumo da intriga, até à última cena que a seguir se
descreve, incluindo, pela influência que tiveram no final deste
espectáculo, os ensaios de palco.
O Ezequiel chegava a casa, ao fim de um dia de trabalho, chamava pela
Lucília e pelo filho, ninguém lhe respondia, via uma carta, sobre a mesa
da sala, abria-a, lia-a e tomava conhecimento de forma inesperada e
dolorosíssima de uma declaração da mulher em que esta confessava longa e
detalhadamente, ao longo de várias páginas, que, há mais de um ano,
vinha mantendo relações incestuosas com o Beto, com o qual tinha fugido,
depois de almoço, para o estrangeiro, levando não só todas as economias
do casal, mas também as jóias da falecida mulher do marido e, ainda, o
automóvel familiar. Perante estes factos, Ezequiel exclamava:
“Estou desonrado, a única solução
é a morte!” Seguidamente, abria a gaveta de um aparador, tirava
uma pistola e suicidava-se, acabando, assim, a peça.
Aconteceu, todavia, que, por duas vezes, a pistola não se encontrava na
gaveta, porquanto outros actores a tinham tirado para pregarem uma
partida ao Fernando, actor que desempenhava o papel de marido enganado
e, quando o Ezequiel, no fim da longa tirada, a não encontrou, teve que
andar à procura da arma, recolocá-la na gaveta e ler de novo a carta, já
que o ensaiador entendia que o tiro devia ser disparado, na sequência da
longa fala para aproveitar e potenciar a tensão emocional do monólogo.
O Fernando resolveu evitar a repetição da brincadeira e, sendo
serralheiro, cedo arranjou uma solução. Já que a mulher não queria ter a
pistola em casa, mesmo sendo de alarme, com medo que o filho, ainda
criança, desse com ela e lhe mexesse, fez uma chave e, no fim dos
ensaios, metia a arma na gaveta, fechava-a e ninguém, a não ser ele, lhe
poderia mexer.
No dia da estreia, tudo estava a correr às mil maravilhas,
principalmente ao Fernando, que pela primeira vez desempenhava um papel
de protagonista e, chegado o momento culminante, embalado e antegozando
os já próximos aplausos, que se anteviam fartos e gerais, exclamou com
uma voz profunda, triste e com tons de grande dignidade ofendida: “Estou
desonrado, a única solução é a morte!” Seguidamente, abriu a gaveta,
tirou a pistola, levou-a à cabeça, disparou e, ao som das primeiras
palmas, pôs a pistola de novo na gaveta, fechou-a com duas voltas, meteu
o porta-chaves no bolso das calças e deixou-se cair nas tábuas, ante a
surpresa do público que, na sua grande maioria, conhecia a história e
pensou que se tratava de uma variante cómica, mas não achou piada
nenhuma, manifestando-se com apupos e uma monumental pateada.
3. Inês de Castro
Não se tratava da tragédia “Castro” da autoria de António
Ferreira, mas de uma versão popular de autor desconhecido. No 1º Acto,
D. Afonso IV, acompanhado por Pêro Coelho, Álvaro Gonçalves e Diogo
Lopes Pacheco, vem a Coimbra, ao Paço de Santa Clara, e depois das
acusações reais e das súplicas da jovem, Pêro Coelho mata Inês com três
punhaladas. Diga-se que este actor era conhecido pelo mau feitio e
tinha uma alcunha – Quim Borradas – com a qual embirrava solenemente,
reagindo a ela por vezes de forma violenta.
No 2º Acto, D. Pedro entra no Paço, regressando de uma partida de caça,
de espingarda ao ombro, com alguns pássaros pendurados no cinto e
cantarolando:
Ora dizem mal,
Ora dizem mal dos caçadores,
Por matarem os melros e os pardais,
Mas os teus olhos,
Os teus olhos bela Inês
Ainda matam,
Ainda matam muito mais.
Seguidamente, não vendo nem ouvindo a sua amada que era costume esperar
por ele, pergunta:
– Ignês, Ignês, que é dela? Onde estás tu que não te acho?
A esta pergunta respondeu lugubremente uma voz, entre-cenas, num arremedo
de coro de tragédia grega:
– Está morta e bem matada, com três punhaladas que lhe deu o Quim
Borradas.
O autor deste equívoco jurou e trejurou, mais tarde, não ter cometido
aquele erro por brincadeira, provocando uma grande risada na
assistência, e que tinha sido traído pela rima – punhaladas-Borradas.
Fosse porque razão fosse, o espectáculo acabou pessimamente, pois quando
ouviu a alcunha maldita e toda a gente a rir-se, Quim esqueceu-se que
era Pêro Coelho, entrou no palco e gritou à boca de cena:
– Vão-se rir para o inferno e chamem Borradas ao raio que vos parta a
todos. E mais não digo porque está aqui o senhor prior, mas não perdem
pela demora. (E virando-se de costas para o público, continuou:)
E vocês corram o pano, porque eu não represento mais, nem hoje, nem
nunca.
4. O Zé do Telhado
Na noite de estreia, já se tinha começado a fazer o trabalho de
caracterização, faltava um dos membros da quadrilha, figura secundária,
não falava, quase que mero figurante, mas fazia falta a determinado
momento para carregar uns sacos com o produto de um roubo. Quando já se
estava para mandar alguém a casa do faltoso para se saber o que se
estava a passar, chegou um mensageiro, o Nocas, que aceitava este
epíteto, mas que dava por paus e por pedras quando o apodavam de Seca
Adegas. O Francelino tinha tido um acidente de motorizada e estava no
hospital. Onde é que haveriam de arranjar um substituto, a menos de meia
hora do início do espectáculo? De repente, alguém lembrou:
– Só se for o Nocas.
– Eu? Vocês estão malucos; eu não sei representar.
– Não tem nada que saber. Entras no palco, não dizes nada nem fazes nada
e estás sempre ao pé de mim; quando eu te disser, pegas num saco e sais
comigo.
– E se eu me engano...
– Não enganas nada; deixa isso por minha conta.
– Só se ninguém souber que sou eu... tenho vergonha que depois façam
pouco de mim, que me chamem o ladrão e eu não gosto que me chamem nomes.
– Isso não é problema, pede-se ao caracterizador para te pôr uma
bigodaça e umas grandes barbas e para carregar um bocado nas tintas,
puxa-se-te o chapéu para os olhos e ninguém saberá de quem se trata.
– É capaz de ser uma solução. Vamos a isso que se faz tarde.
Assim foi feito, mas a existência de um actor desconhecido gerou uma
enorme curiosidade entre o público. Puseram-se as mais variadas
hipóteses, já se faziam apostas, até que o segredo do novel actor foi
traído por um gesto instintivo e muito característico nele: chupar o
dedo polegar. Uma vizinha dele, sentada na primeira fila, reparou e
disse:
– Olha, é o Nocas!
– Pois é; realmente é mesmo o Seca Adegas! (Confirmou o marido em voz
alta.)
Então o caldo entornou-se. O Seca Adegas, de cabeça perdida, até
porque não gostava dos vizinhos, veio até à ribalta e vociferou:
– E você seu grande [Piiiiii], se fosse com a [Piiiiii] da
sua mulher chamar nomes para a [Piiiiii]… que vos [Piiiiii].
Seguidamente atirou o chapéu ao chão, arrancou os adereços capilares e
foi para a tasca do costume fazer jus à alcunha.
11.06.2015 |