José Ferreira nasceu nos meados da década de quarenta do século passado
e, desde cedo, revelou-se um celibatário convicto e militante, dizendo
frequentemente que, até aos quarenta e cinco, não pensaria casar e,
depois, logo se veria, mas que era capaz de já ser um pouco tarde para
mudar de ideias e estado.
Esta atitude não pressupunha que não se interessasse pelo sexo feminino,
bem pelo contrário, pois rapidamente se tornou um pinga-amor de
reconhecidos méritos, podendo mesmo vir a ter sido Presidente da
Assembleia Geral dos Engatatões, caso esta entidade fosse oficialmente
reconhecida.
Zé Ferreira era alto, bem constituído, senhor de uma força e agilidade
invulgares, moreno, com cabelo ondulado, bigode à galã de Hollywood anos
cinquenta e tinha um cuidado extremo com a aparência, chegando ao ponto
de envernizar as unhas, o que, para a época, era incomum, até porque era
guarda-redes de futebol e praticante de andebol. Assim, não era de
estranhar o êxito que alcançava junto das mulheres.
Curiosamente, mantinha um ficheiro original, ultra-secreto e
perfeitamente organizado, sobre as suas conquistas: três caixas de
arquivo morto, com envelopes A4 de fole, numerados e dispostos por ordem
cronológica, contendo, cada um deles, uma ficha com fotografia, dados
pessoais, elementos exaustivos e pormenorizadíssimos referentes à
relação e, ainda, lembranças, tais como, cartas, prendas e, peça
obrigatória, umas cuecas da arquivada em questão.
Uma manhã, ao chegar à Repartição, Zé Ferreira deparou com uma loura de
olhos azuis, sentada na secretária defronte da sua. Detentor dum
doutoramento em morenas, catedrático em mulatas, e tendo sempre
manifestado um grande desinteresse pelas loiras, não pelo conhecido
preconceito de que as loiras são burras, porquanto a inteligência era o
que menos lhe interessava numa mulher, mas porque tinha a convicção, não
fundamentada pela experiência, de que a fogosidade feminina diminuía na
razão directa da tonalidade do cabelo, ocupando o negro asa de corvo o
primeiro lugar dessa escala e o branco o último, o Zé sentiu-se,
inexplicável e subitamente, naufragar no azul profundo daqueles olhos,
emoldurados por inefáveis estrigas douradas.
Levantou-se, com passo pouco firme foi cumprimentar a nova 1º Oficial,
de seu nome Amélia, apresentou-se, amaldiçoou a circunstância de lhe
terem sido distribuídos serviços externos, logo nesse dia, e prometeu, a
si mesmo, comprovar empiricamente a veracidade da sua Escala de
Fogosidade, caso a colega fosse solteira, o que veio a verificar ser
verdade.
A partir do dia seguinte, começou a pôr em prática as NEP (Normas de
Execução Permanente) do Manual do Engate Descartável: às 12H30,
acompanhar a Amélia até ao restaurante e convidá-la para almoçar (sem
êxito); às 17H30, convite para tomar um cafezinho (resultou,
intermitentemente, só ao fim de uma semana); sugestão para ir dar uma
volta ao Parque (nunca passou do Jardim); tentativa de braço dado
(repelida); ida ao cinema (só ao fim de três meses, à matinée, e
sem toques, nem com os braços, nem no sapato).
Ao fim de meio ano, a Amélia deixara de ser um capricho, mais uma, o
possível envelope A4 n.º 21, para ser uma obsessão, uma paixão, uma
mulher a quem o Zé Rodrigues não se importaria de sacrificar tudo,
inclusive, os seus sagrados votos de solteirão impenitente.
Assim, pôs de parte o predito Manual por que tinha regido, durante
quinze anos, a sua vida amorosa e resolveu seguir o normativo da
Cartilha dos Apaixonados, cujo primeiro artigo prescrevia, para os
homens: “Pedir, explicitamente, de preferência por escrito, namoro à
mulher amada.” BINGO! A doce Amélia (passe a redundância) aceitou, mas
pôs condições, das quais se citam duas: primeira, conhecedora, que era,
da crónica do Zé, exigia a mais estrita fidelidade; segunda, amplas
liberdades, só após a bênção matrimonial. O Zé, para surpresa de todos
os que o conheciam, incluindo ele próprio, aceitou de imediato.
Cumprindo, escrupulosa e sequencialmente, as normas da supracitada
Cartilha, chegou-se, passado um ano, ao art.º 25.º, tendo o Zé, conforme
o preconizado, “pedido a namorada em casamento, de joelhos, após um
jantar regado com espumante, caso as possibilidades do pretendente o
permitam.” No dia seguinte, executou uma tarefa não prevista no livrinho
– queimou o sacrossanto arquivo secreto, incluindo a lingerie,
neste auto de fé.
O casamento realizou-se, dois meses depois, com pouquíssimos convidados:
os pais, o irmão, a irmã e os padrinhos do noivo e os padrinhos da noiva
que a tinham criado, em Coimbra, porquanto era órfã desde criança e não
tinha mais familiares.
Após o almoço, servido numa marisqueira de Aveiro, viajaram num Alfa
para Lisboa. Durante o percurso, Amélia manifestou um desejo ao marido:
não era de temperamento demasiadamente romântico, mas, como ele bem
sabia, gostava de telenovelas e tinha visto uma em que o primeiro jantar
era servido, no quarto, à luz de velas, sendo esta a única iluminação
utilizada durante toda noite de núpcias, pelo que gostaria que tal
acontecesse com eles. Zé aquiesceu de imediato, apercebendo-se das
imensas potencialidades desta proposta luminotécnica.
A noite passou-se normal e satisfatoriamente, constituindo, para ela,
uma sequência de óptimas novidades e dulcíssimas experiências e, para
ele, uma agradabilíssima e variada sessão pedagógica. De manhã, Zé foi
ao quarto de banho e viu, pousada no bordo do lavatório, uma caixinha
que não conhecia. Curioso, abriu-a e ficou estupefacto, quase a deixando
cair, porque, dentro dela, boiando num líquido incolor, estavam as duas
íris azuis que o tinham encantado, formando um ângulo de 45 graus que
fazia lembrar um caricatural sorriso trocista. De repente, compreendeu
tudo, reflectiu sobre a situação, concluiu que uma atitude crítica, mais
ou menos radical da sua parte, não lhe seria útil, bem pelo contrário, e
voltou para a cama.
Pouco depois, Amélia acordou e olhou para ele com um sorriso tímido, nos
olhos castanhos de uma vulgaridade atroz, dirigiu-se à casa de banho e,
passado poucos minutos, voltou com os seus esplendorosos olhos azuis
espelhando uma tristeza apreensiva que decidiu o marido a viver, durante
o dia, com uma mulher de maravilhosos olhos azuis marinhos e, dormir com
outra, com uns olhos de um castanho vegetal, mas quase sempre escondidos
por detrás das pálpebras cerradas pelo sono, o que veio a acontecer sem
problemas e num clima de satisfatória felicidade.
Ao fim de um ano, nasceu um pimpolho rosado, grande e rechonchudo, mas,
para espanto do pai, com uma farta cabeleira castanha. Considerando, por
um lado, que a cor do cabelo dos filhos não se obtém pela média da dos
progenitores, por outro lado, que toda a família do pai tinha cabelo
preto azeviche e, tendo a certeza que não tinha havido mouro na costa,
só restava, tanto quanto Zé Rodrigues sabia, uma hipótese, pelo que
perguntou à mulher:
– Melita, sabes se alguém da tua família tinha o cabelo castanho?
– Toda a gente: a minha mãe, o meu pai e, inclusive, eu. Acontece que
não gostava do meu look, pelo que, logo que tive possibilidades
económicas, comecei a pintar o cabelo de louro, nos últimos tempos, com
redobrada frequência e mais cuidadosos e secretos retoques caseiros, e
pus lentes de contacto azuis. Desculpa se nunca te disse, mas a partir
de determinado momento, não tive coragem para tal, pois tinha medo de te
perder. Mas agora que sabes, se não gostas, Zé...
06.05.2015 |