Ficções e Recordações - 2015

O puto maravilha

Os Arrojados possuíam, no norte da Ria de Aveiro, uma minúscula exploração agro-pecuária que pouco mais rendia do que o suficiente para a subsistência do agregado familiar: o casal, Aurélia, a filha mais velha, a quem sobrava em vigor corporal e genica para o trabalho o que lhe minguava em capacidade mental, e o Zé Tó, de fraca figura física, mas com dotes intelectuais que cedo se manifestaram e se tornaram notórios, a partir dos primeiros dias de escola primária e de catequese, levando não só o professor a aconselhar com insistência os pais a que fizessem os possíveis para que o rapaz continuasse os estudos, mas também o pároco a sugerir uma ida para o Seminário.

O Zé Tó completou brilhantemente o ensino secundário, na Murtosa e, em seguida, matriculou-se no Departamento de Contabilidade da Universidade de Aveiro, tendo os progenitores feito o sacrifício de lhe alugar um quarto, na cidade, após o primeiro mês de aulas, porquanto os horários escolares nem sempre eram compatíveis com os dos transportes públicos.

Até ao Natal, Zé Tó fez jus à sua fama, obtendo excelentes notas, mas sendo a primeira vez que saía debaixo das saias maternas, começou a ser facilmente atraído pelas muitas e variadas solicitações que a cidade e o meio estudantil lhe proporcionavam. Experimentou as quintas-feiras da Praça do Peixe, gostou e, dentro em breve, passou a frequentar aquela zona de animação nocturna, de segunda a quinta, só não continuando, nos fins de semana, porque os ia passar na casa paterna.

Mas a vida da night exigia uma disponibilidade financeira que ultrapassava largamente a reduzidíssima mesada do novel borguista, pelo que o Zé Tó se viu obrigado, para apanhar mais algum dinheiro aos pais, primeiro, a inventar despesas escolares – livros, fotocópias, manutenção do computador, etc. – e, depois, a fazer poupanças nas despesas obrigatórias.

Começou pela alimentação, substituindo muitas das refeições da cantina universitária por sandes feitas com mimos que a mãe lhe dava ao domingo: umas enguias fritas, umas chouriças, uns queijinhos, umas caixitas de marmelada. Mas tudo isto em pequenas quantidades que estavam longe de garantir o suficiente para uma alimentação razoável, pelo que, física e intelectualmente, se começou a ressentir.

Em seguida, anulou a matrícula e consequentemente deixou de frequentar as aulas. Mas, com o tempo, começou a acentuar-se a sua dependência do álcool, pelo que, cada vez, passou a necessitar de mais bejecas e shorts mais fortes e frequentes, para se desinibir e se sentir satisfeito.

Como último e desesperado recurso para arranjar dinheiro, não pagou a renda do quarto, mas o senhorio, ao fim de quinze dias de desculpas mais ou menos esfarrapadas, e crendo saber que algo de anormal se passava, pois o inquilino deitava-se tardíssimo, quase sempre embriagado, e passava os dias na cama, logo, não ia às aulas, telefonou ao pai do rapaz, dando-lhe a conhecer a dívida e as suas mais que dúvidas.

Manuel Arrojado apressou-se a vir a Aveiro, inteirou-se da situação, pagou o que devia, pegou no filho e levou-o de volta a casa, sendo sua primeira e instintiva intenção aplicar-lhe um correctivo ancestral, partindo-lhe uma vara nas costas, receita de que tinha tomado conhecimento pessoal, no já longínquo dia em que, depois de uma farra, tinha resolvido convidar os amigos para um passeio, de madrugada, no moliceiro do pai, provocando danos na bonita proa, numa atracagem a favor do vento e da corrente, mas contra as normas da navegação à vela.

No entanto, durante a viagem de comboio, reflectiu sobre o assunto, concluindo que o filho, ainda por cima debilitado por quatro meses de noitadas, bebedeiras e deficiente alimentação, não tinha capacidade nem para aguentar um par de estalos bem dados, pelo que um correctivo severo poderia provocar pesadas e irreversíveis consequências. Assim, resolveu fazer uma avaliação dos estragos e tentar a sua reparação, limitando o castigo a fortes e frequentes reprimendas verbais.

Chegado a casa, Zé Tó foi recebido pela mãe Dolores, lavada em lágrimas e profundamente magoada pelo facto de o filho dilecto ter traído a confiança que nele tinha depositado e especialmente por não ter sabido corresponder aos sacrifícios que toda a família tinha feito para fazer dele alguém, com um estatuto social largamente superior a todos os seus antepassados.

Logo que possível, o pai levou-o ao médico de família que lhe proibiu terminante e definitivamente a ingestão de bebidas alcoólicas e receitou as drogas necessárias para, por um lado, o ajudar a suportar a falta de álcool e minorar a ansiedade e, por outro lado, permitir uma rápida recuperação do organismo muito agredido e debilitado. Considerando que o período de adição se tinha limitado a pouco mais de quatro meses, disse pensar que o tempo necessário para uma recuperação eficaz seria relativamente rápido.

Durante uns tempos, o Zé Tó só saía de casa tarde da noite, para evitar encontrar os vizinhos com quem tinha vergonha de falar, já que o seu problema se tinha tornado conhecido. Foi visitado, mais do que uma vez, pelo padre e pelo antigo professor primário que lhe fizeram ver que não havia falta, por mais importante que fosse, que não pudesse ser perdoada, e que o mais grave não era cair, era não se levantar ou pelo menos não tentar fazê-lo.

Com o correr dos dias, a vida regrada, a boa alimentação e a ajuda do bom tempo do Verão aceleraram-se as melhoras e Zé Tó passou a conviver e a ajudar nas tarefas mais simples da quinta. Sentia-se, porém, um peso morto, dado que o seu trabalho pouco ou nada representava na economia doméstica. Assim, passou a enviar currículos, a fim de tentar arranjar um emprego compatível com as suas aptidões.

Em princípios de Setembro, na Festa do São Paio da Torreira, onde tinha ido com a família pagar uma promessa feita pela mãe, que prometera despejar um jarro de vinho sobre a cabeça do Santo, caso o seu filho melhorasse, encontrou um antigo condiscípulo da escola secundária, a quem muito tinha ajudado na disciplina de Matemática, e contou-lhe as suas desventuras e actual situação.

Acontece que o pai deste amigo tinha um escritório de contabilidade em Estarreja e, a pedido do filho, ofereceu emprego ao Zé Tó, que aceitou de imediato. Ao fim de poucos meses, o patrão, impressionado com a invulgar capacidade intelectual do jovem, sugeriu-lhe que se matriculasse, de novo, na Universidade. Após ter falado com os pais, inscreveu-se e passou a frequentar as aulas, agora com o estatuto de trabalhador estudante, suportando as respectivas despesas com o seu próprio salário e com uma força de vontade blindada contra todas as tentações.

27.04.2015