Em meados do século passado, o abastecimento de peixe ao interior do
País era assegurado pelos peixeiros que compravam a sardinha e o
carapau, nas lotas, e, depois, faziam as chamadas corridas em direcção
às aldeias, onde vendiam porta a porta, ou às vilas em que se realizavam
feiras e mercados periódicos.
Normalmente, as viaturas utilizadas eram furgonetas de caixa aberta ou
pequenas camionetas, sendo característica, comum e importante, a
velocidade, porquanto quem primeiro chegasse, em especial às feiras, era
quem escolhia os melhores sítios, podendo, até, começar a vender mais
caro, enquanto não chegassem os concorrentes. A tripulação era
constituída pelo condutor e vendedeiras, cujo número variava em função
do destino: se era para uma volta pelas aldeias, bastava uma, se era
para as feiras, poderiam ser duas ou mais.
Numa aldeia da serra da Lousã, vivia um abastado peixeiro, Manuel
Mateus, cuja idade já não pedia madrugadas ao volante, nem corridas em
estradas de mau piso, só de curva e contracurva, e a conta bancária
permitia que contratasse pessoal para fazer o trabalho, iniciado pelos
pais com um macho – em cujos alforges era transportado o peixe – e
continuado por ele e pela mulher, primeiro, com uma carroça puxada por
um garrano e, mais tarde, com veículos motorizados.
Um dos seus condutores era o Zé Moreira, que tinha voltado da tropa com
carta de condução de pesados e ligeiros, mas pouca vontade de se agarrar
de novo à enxada, para cavar, de sol a sol, a troco de vinte e cinco
escudos a seco ou vinte escudos com direito à refeição do meio-dia. Era
um rapaz trabalhador, inteligente, com vontade de progredir na vida e
cedo se apercebeu que os preços especulativos, a que se vendia o peixe,
lhe permitiriam fazer, com rapidez, uma grossa maquia. O problema era
comprar a furgoneta. Depois de muito falar com o pai, pequeno
agricultor, conseguiu convencê-lo a ser fiador num empréstimo bancário.
De seguida, foi falar com o patrão.
– Ti Manel, tenho pensado muito na vida e pensei começar a trabalhar por
conta própria...
– A fazer o quê, Zé?
– Patrão, eu estava a pensar no negócio do peixe, porque já o conheço.
– Então e o carro?
– Já tenho uma carrinha em segunda mão apalavrada e o meu pai vai ficar
por mim no Banco.
– Acho bem rapaz, vai para a frente que eu também comecei por baixo e
era mais novo do que tu. Só te digo uma coisa. Faz as tuas voltas, mas
não te metas nas minhas.
– Mas então como é que eu poderei trabalhar, se o patrão, com as suas
três furgonetas mais a camioneta, faz todas as aldeias em redor.
– Esse problema é teu. É verdade, espero que me dês tempo para arranjar
quem te substitua.
– Com certeza, patrão.
Três semanas depois, Zé Moreira começou a trabalhar, procurando não
entrar na zona de Manuel Mateus, mas cedo verificou que tal era
impossível, porquanto, excepto algumas aldeias longínquas e quase
desabitadas, tudo estava incluído nas voltas do ex-patrão, restando-lhe
só as feiras, o que era manifestamente insuficiente. Assim, passou a
vender na sua antiga volta, tendo sido recebido com satisfação pelos
habitantes que gostavam dele e tinham começado a embicar com o seu
substituto.
Pouco tempo depois, recebeu um recado de Manuel Mateus para ir falar com
ele.
– Zé, estou muito arrenegado contigo. Então eu avisei-te para não
entrares na minha zona e tu andas a fazer a volta do norte!
– Ti Manel, eu bem tentei, mas com o que sobrava eu não podia fazer face
aos encargos com o Banco, comprar o peixe e o gasóleo e pagar as
outras despesas que vossemecê bem conhece.
– Tivesses feito essas contas antes de te meteres neste negócio.
Aviso-te, pela última vez, para não te meteres nas minhas voltas, se não
tens que te ver comigo.
– Ti Manel, tem que compreender que todos temos direito à vida e que
alguns sítios, a que agora chama seus, também já foram doutros.
Vossemecê já tem muito e estas territas, onde eu trabalho, não lhe fazem
grande falta. Deixe que lhe diga que, agora que tenho guitarra e que a
sei tocar, ninguém me vai impedir de o fazer.
– É o que veremos Zé, mas, se continuares na tua, vais aprender que não
basta ter guitarra e saber tocá-la. Que também é preciso ter unhas para
o fazer. Vai-te embora e pensa bem no que te estou a dizer.
O Zé veio para casa a matutar no assunto e, concluindo que estando
dentro da lei nada de mal lhe poderia acontecer, continuou com as
vendas, onde já o estava a fazer.
Oito dias depois, Manuel Mateus comprou uma furgoneta nova, igual à do
Zé Moreira, contratou um condutor e um ajudante, sendo este um
brutamontes local especialista em pancadaria, e disse-lhes:
– A partir de amanhã, todos os dias, às quatro horas da madrugada, vocês
vão estar perto da carrinha do Zé Moreira. Quando ele arrancar, seguem-no;
se ele for para a lota da Figueira ou para outra qualquer, também vão;
se ele fizer uma compra, compram exactamente o mesmo peixe, custe o que
custar; quando ele partir, vão atrás dele; quando ele parar para vender
às portas, vendem a menos dez tostões a dúzia; se ele for para uma
feira, descarregam para o meu carro que lá estiver; se ele se vier
embora sem vender tudo, vocês carregam, de novo, mais ou menos o mesmo
peixe e seguem-no, para o caso de ele vir para as vendas pelas portas;
se ele vier para casa, descarregam no meu armazém. E, agora, ouçam mais
uma coisa muito importante: nunca lhe respondam, diga ele o que disser,
nem se metam, nem se peguem com ele.
Esta perseguição tornou insustentável, dentro de muito pouco tempo, a
situação económica de Zé Moreira. Só vendia nas feiras que eram muito
poucas e o fundo de maneio, que provinha da parca bolsa do pai,
esgotou-se rapidamente. Desesperado, foi queixar-se à Guarda, mas quando
lhe perguntaram se os perseguidores o tinham insultado ou lhe tinham
feito ameaças, teve que dizer que não. Em seguida, foi consultar um
advogado que lhe explicou que era um problema de concorrência, pelo que
não se poderia tomar nenhuma atitude.
Por fim, Zé Moreira teve que se desfazer da furgoneta e voltar para os
trabalhos agrícolas, jurando que, um dia, se havia de vingar, e o pai
foi obrigado a vender um pinhal e a melhor terra de semeadura, para
pagar ao Banco e demais credores do filho. A notícia desta desavença
acabou por chegar ao conhecimento dum primo afastado do Zé, emigrado, há
muitos anos, no Brasil, o qual, na sua juventude, tinha tido problemas
com Manuel Mateus, os quais começaram com horários de rega e acabaram à
sacholada.
A carta de chamada veio e Zé foi trabalhar como motorista, numa empresa
de Santos de que esse parente era sócio, a qual se dedicava ao
transporte de produtos alimentares para o interior do país. O entretém
de Zé, durante essas longas e monótonas viagens, era congeminar planos
para se vingar da pulhice que lhe tinha sido feita. Trabalhando noite e
dia, foi conseguindo juntar dinheiro, parte dele enviado para Portugal
para pagar o que tinha ficado a dever aos pais.
Quando verificou que tinha capacidade financeira para encarar a hipótese
de trabalhar por conta própria, comprou um velho camião, com a ajuda do
parente, que apreciava bastante a sua capacidade de trabalho e vontade
de ser alguém, e, ao fim de uns anos, tornou-se dono de uma
pequena frota que lhe conferiu um novo estatuto social, deixando de ser
o Zé Moreira, para ser o senhor Santos Moreira. Entretanto, tinha feito
um bom casamento que aumentou largamente a sua capacidade económica.
Nesse momento, os planos de vingança já se tinham refinado, passando da
criação de uma empresa de distribuição de pescado moderna e bem equipada
que arrasasse o negócio do Manuel Mateus, plano este que tinha o grande
inconveniente de exigir a sua presença, pelo menos numa primeira fase,
para a sua aparição como grande benemérito, com direito a placas, na
terra natal, donde partira sem cheta e endividado, marcando bem, desta
maneira, a sua actual superioridade sobre o Manuel Mateus, pessoa
malquista por grande número de conterrâneos. Informou-se e soube que os
principais anseios da Paróquia e da Freguesia eram, respectivamente,
substituição do telhado da igreja e arranjo do altar-mor e construção de
um Centro de Dia. Feitas as contas, estes encargos eram viáveis, pelo
que resolveu vir à terra para falar com o Pároco e com o Presidente da
Junta, mas sem se fazer anunciar.
Chegado a Lisboa, alugou um automóvel topo de gama e dirigiu-se à
aldeia, onde nunca mais tinha voltado, depois da morte dos pais. Quando
chegou a meio da tarde, viu várias pessoas vestidas de preto e concluiu
que deveria haver um enterro. Parou o carro e perguntou a uma rapariga
quem tinha morrido, tendo-lhe sido respondido que tinha sido o Ti Manel
Peixeiro.
De repente, apercebeu-se de que não poderia concretizar um dos grandes
objectivos da sua vida: vingar-se da sacanice que lhe tinha sido feita.
E sentiu um grande vazio e frustração. Fechou o vidro fumado da janela,
seguiu até ao largo das Alminhas e fez meia volta saindo da aldeia, onde
já nada o prendia, a caminho de Lisboa, com a intenção de apanhar o
primeiro avião para o Brasil, pensando que, mais uma vez, tinha tido a
guitarra na mão, mas que quem tinha tido unhas para tocar os últimos
acordes tinha sido o Manuel Mateus.
07.04.2015 |