A minha primeira visão de Antinomia foi a de uma cidade situada nas duas
margens da foz de um rio. Vim a saber que estas duas partes eram
diametralmente opostas, explicando-se assim o topónimo.
A Zona Setentrional tinha sido edificada na encosta de um monte de
natureza argilosa, vendo-se, nos subúrbios, pequenas parcelas de
terreno, características da agricultura de subsistência. Junto ao mar,
situavam-se o porto de pesca, fábricas de conservas e os estaleiros de
construção naval. Existia uma zona industrial, onde predominava a
cerâmica que utilizava a matéria-prima fornecida pelos barreiros locais.
A Zona Meridional era plana e, na orla litoral, desenrolava-se uma
extensa praia de areia fina, abrigada do vento dominante pela elevação
existente a norte. Para o interior, estendia-se uma fértil região de
latifúndio e de grandes explorações pecuárias.
A Norte, estavam instalados os Bancos e os Centros Comerciais e havia
uma Escola Industrial e Comercial, cujas principais valências apontavam
para a pesca, cerâmica, construção naval e serviços administrativos.
A Sul, situavam-se os hotéis, a grande restauração, a área de animação,
as zonas verdes com equipamento desportivo para actividades de lazer e
um parque de campismo e caravanismo. O comércio restringia-se a lojas de
especialidade ou conveniência. A nível de ensino, havia um Liceu
vocacionado para a formação de estudantes que pretendessem seguir para a
o ensino superior.
Estes contrastes eram também uma constante no que respeitava às
instituições: Companhia de Sapadores Bombeiros/Associação dos Bombeiros
Voluntários; Clube Desportivo/Grupo Recreativo e Cultural; Associação
dos Pescadores/Clube de Caça; Filarmónica Velha/Banda Nova; Grupo
Folclórico/Centro de Danças Modernas; Orfeão Popular/Coral Polifónico.
E mantinham-se a todos os níveis. Na Zona Setentrional, as pessoas não
se preocupavam muito com a religião, apoiavam os partidos de esquerda e
festejavam os dias de São Pedro, Padroeiro dos Pescadores e de São
Esperidião, Patrono dos Oleiros. Na Zona Meridional, a religião católica
tinha muitos seguidores, votava-se à direita e comemoravam o dia do
Protector do Turismo, São Francisco Xavier.
No entanto, existiam dois capítulos em que não se registava nenhuma
discrepância entre os antinomenses: grande capacidade de trabalho e
defesa intransigente dos interesses da sua terra.
Citavam-se dois acontecimentos paradigmáticos deste bairrismo. Quando o
Governo Central tentou impedir a exploração dos barreiros locais,
invocando razões de protecção do meio ambiente, sabendo-se que o
verdadeiro motivo residia em beneficiar outra região cerâmica rival ou
na altura em que a Autoridade Marítima pensou concessionar uma vasta
área da praia do sul, o que implicaria o pagamento de taxas pelos
utentes que pretendessem instalar tendas, guarda-sóis ou meros
pára-ventos, a cidade reagiu em uníssono, paralisando faseadamente todas
as actividades económicas, até que as referidas intenções foram
revogadas.
Estes antagonismos acarretavam alguns problemas, mas também constituíam
o motor de um notável desenvolvimento económico e consequentemente de um
nível de vida que, ao longo dos tempos, foi atraindo pessoas
provenientes de outras zonas menos prósperas, muitas delas situadas no
interior do país. Esta imigração diluiu o ancestral clima de antagonismo
que se manteve, porém, inalterado entre os antinomenses de velha cepa.
Por exemplo, continuava a ser impensável um casamento entre uma
meridional e um setentrional ou vice-versa. Os poucos enlaces de que
havia memória tinham sido antecedidos de fugas para terras distantes.
Um dia, foi diagnosticado um linfoma ao filho mais novo, ainda criança,
do Administrador de uma das Zonas da cidade, tendo sido prescritos
tratamentos de quimioterapia, imunologia e radioterapia, após os quais
se verificou que a doença tinha reaparecido, de forma muito agressiva,
pelo que só restava um recurso: transplante de células estaminais. Não
tendo sido considerado eficaz o auto-transplante nem sendo possível, por
incompatibilidade, a utilização deste tipo de células provenientes de
nenhum familiar, restava, como uma única hipótese, encontrar um dador
compatível e disponível.
Após uma pesquisa de âmbito nacional, sem resultados, um dos médicos
intervenientes no processo lembrou-se de que, no ano anterior, tinha
tido em mãos um problema semelhante, quando ainda trabalhava no hospital
de uma cidade vizinha e foi consultar esse processo, tendo verificado
que um dos voluntários, então examinados, tinha não só muitas
possibilidades de ser compatível, mas também que era natural e residente
em Antinomia.
Comunicou este precioso achado ao seu chefe de equipa e teve a surpresa
de o ouvir dizer que poderia surgir uma incompatibilidade extra-clínica
intransponível: o doente e o potencial dador pertenciam a duas das mais
antigas e prestigiadas famílias da cidade, residindo, todavia, uma na
Zona Norte e outra na Zona Sul. Assim, foi decidido ouvir em primeiro
lugar o pai da criança, a quem foi dito:
– Meu caro senhor, temos uma boa notícia para si, pois cremos ter
encontrado uma pessoa, que ainda não foi consultada, por razões óbvias,
mas que potencialmente pode ser o dador das células estaminais que podem
salvar o seu filho. Trata-se do filho do seu colega Administrador da
Zona...
Neste preciso momento, começou a soar, ruidosa e intempestivamente, uma
campainha, a do meu despertador, que me impediu de conhecer o final
desta estória. Ainda tentei reatar o sonho, mas mau grado todos os
esforços, não o consegui. Resta-me a hipótese de, uma destas noites,
efectuar uma nova visita onírica a Antinomia, para conhecer o desenlace.
30.03.2015 |