Ficções e Recordações - 2015

Antinomia

A minha primeira visão de Antinomia foi a de uma cidade situada nas duas margens da foz de um rio. Vim a saber que estas duas partes eram diametralmente opostas, explicando-se assim o topónimo.

A Zona Setentrional tinha sido edificada na encosta de um monte de natureza argilosa, vendo-se, nos subúrbios, pequenas parcelas de terreno, características da agricultura de subsistência. Junto ao mar, situavam-se o porto de pesca, fábricas de conservas e os estaleiros de construção naval. Existia uma zona industrial, onde predominava a cerâmica que utilizava a matéria-prima fornecida pelos barreiros locais.

A Zona Meridional era plana e, na orla litoral, desenrolava-se uma extensa praia de areia fina, abrigada do vento dominante pela elevação existente a norte. Para o interior, estendia-se uma fértil região de latifúndio e de grandes explorações pecuárias.

A Norte, estavam instalados os Bancos e os Centros Comerciais e havia uma Escola Industrial e Comercial, cujas principais valências apontavam para a pesca, cerâmica, construção naval e serviços administrativos.

A Sul, situavam-se os hotéis, a grande restauração, a área de animação, as zonas verdes com equipamento desportivo para actividades de lazer e um parque de campismo e caravanismo. O comércio restringia-se a lojas de especialidade ou conveniência. A nível de ensino, havia um Liceu vocacionado para a formação de estudantes que pretendessem seguir para a o ensino superior.

Estes contrastes eram também uma constante no que respeitava às instituições: Companhia de Sapadores Bombeiros/Associação dos Bombeiros Voluntários; Clube Desportivo/Grupo Recreativo e Cultural; Associação dos Pescadores/Clube de Caça; Filarmónica Velha/Banda Nova; Grupo Folclórico/Centro de Danças Modernas; Orfeão Popular/Coral Polifónico.

E mantinham-se a todos os níveis. Na Zona Setentrional, as pessoas não se preocupavam muito com a religião, apoiavam os partidos de esquerda e festejavam os dias de São Pedro, Padroeiro dos Pescadores e de São Esperidião, Patrono dos Oleiros. Na Zona Meridional, a religião católica tinha muitos seguidores, votava-se à direita e comemoravam o dia do Protector do Turismo, São Francisco Xavier.

No entanto, existiam dois capítulos em que não se registava nenhuma discrepância entre os antinomenses: grande capacidade de trabalho e defesa intransigente dos interesses da sua terra.

Citavam-se dois acontecimentos paradigmáticos deste bairrismo. Quando o Governo Central tentou impedir a exploração dos barreiros locais, invocando razões de protecção do meio ambiente, sabendo-se que o verdadeiro motivo residia em beneficiar outra região cerâmica rival ou na altura em que a Autoridade Marítima pensou concessionar uma vasta área da praia do sul, o que implicaria o pagamento de taxas pelos utentes que pretendessem instalar tendas, guarda-sóis ou meros pára-ventos, a cidade reagiu em uníssono, paralisando faseadamente todas as actividades económicas, até que as referidas intenções foram revogadas.

Estes antagonismos acarretavam alguns problemas, mas também constituíam o motor de um notável desenvolvimento económico e consequentemente de um nível de vida que, ao longo dos tempos, foi atraindo pessoas provenientes de outras zonas menos prósperas, muitas delas situadas no interior do país. Esta imigração diluiu o ancestral clima de antagonismo que se manteve, porém, inalterado entre os antinomenses de velha cepa. Por exemplo, continuava a ser impensável um casamento entre uma meridional e um setentrional ou vice-versa. Os poucos enlaces de que havia memória tinham sido antecedidos de fugas para terras distantes.

Um dia, foi diagnosticado um linfoma ao filho mais novo, ainda criança, do Administrador de uma das Zonas da cidade, tendo sido prescritos tratamentos de quimioterapia, imunologia e radioterapia, após os quais se verificou que a doença tinha reaparecido, de forma muito agressiva, pelo que só restava um recurso: transplante de células estaminais. Não tendo sido considerado eficaz o auto-transplante nem sendo possível, por incompatibilidade, a utilização deste tipo de células provenientes de nenhum familiar, restava, como uma única hipótese, encontrar um dador compatível e disponível. 

Após uma pesquisa de âmbito nacional, sem resultados, um dos médicos intervenientes no processo lembrou-se de que, no ano anterior, tinha tido em mãos um problema semelhante, quando ainda trabalhava no hospital de uma cidade vizinha e foi consultar esse processo, tendo verificado que um dos voluntários, então examinados, tinha não só muitas possibilidades de ser compatível, mas também que era natural e residente em Antinomia.

Comunicou este precioso achado ao seu chefe de equipa e teve a surpresa de o ouvir dizer que poderia surgir uma incompatibilidade extra-clínica intransponível: o doente e o potencial dador pertenciam a duas das mais antigas e prestigiadas famílias da cidade, residindo, todavia, uma na Zona Norte e outra na Zona Sul. Assim, foi decidido ouvir em primeiro lugar o pai da criança, a quem foi dito:

– Meu caro senhor, temos uma boa notícia para si, pois cremos ter encontrado uma pessoa, que ainda não foi consultada, por razões óbvias, mas que potencialmente pode ser o dador das células estaminais que podem salvar o seu filho. Trata-se do filho do seu colega Administrador da Zona...

Neste preciso momento, começou a soar, ruidosa e intempestivamente, uma campainha, a do meu despertador, que me impediu de conhecer o final desta estória. Ainda tentei reatar o sonho, mas mau grado todos os esforços, não o consegui. Resta-me a hipótese de, uma destas noites, efectuar uma nova visita onírica a Antinomia, para conhecer o desenlace.

30.03.2015