Zé Miguel pousou a colher, pegou no comando da TV e parou a
imagem. Levantou-se, dirigiu-se ao quarto, procurou, na carteira, o
impresso dos Jogos da Santa Casa, trouxe-o para a cozinha, conferiu a
chave do Euromilhões, em rodapé no ecrã, e começou a tremer. A mulher
olhou para ele, viu-o muito pálido e perguntou:
– Estás a sentir-te mal? O que se passa? A televisão está avariada?
Fala, homem!
– Lola, saiu-nos o Euromilhões.
– Estás a brincar.
– Nunca falei tão a sério, em toda a minha vida. Vê com os teus próprios
olhos.
Glória pegou no boletim e verificou que os números eram iguais aos da
televisão.
– Que bom, Zé! Vamos poder comprar o T3 com que sempre sonhámos.
– Um T3? Poderemos comprar um palácio!
– Então é assim tanto dinheiro?
– Lola, são 80 milhões de euros. Se descontares os 20% para o Estado,
ainda ficam 64 milhões.
– Mas terá saído só a nós?
– Não sei, mas já vou ver na Net.
– Não pode ser, estamos sem computador. O Zezinho levou-o para estudar,
na casa dos primos, neste fim de semana.
– Ó diabo... espera, mas não há problema, o meu novo telefone tem NET.
Olha... só há um totalista e em Portugal.
– Formidável! Mas agora temos que ter cuidado para que ninguém saiba da
nossa sorte, antes do tempo. Até calha bem o nosso filho não estar, este
fim de semana, em casa, porque um garoto dificilmente guardaria um
segredo tão importante. A primeira ideia dele seria gabar-se, junto dos
amigos, que tinha dinheiro para comprar um telefone andróide, um super
computador, um I-PAD, uma consola e todos os jogos que lhe apetecesse.
– Lola, com essa conversa fizeste-me lembrar de uma coisa: tenho que
dizer isto, rapidissimamente, ao Azeite e ao Vinagre.
– Eu sei que são os teus melhores amigos, mas isso não lhes dá o direito
de serem uma excepção, de se sobreporem à própria família. Aliás,
aproveito a ocasião para te dizer uma coisa que me anda aqui
atravessada, há uma data de tempo. Lá por eles terem um metro e noventa
e tal e mais de cem quilos, e tu teres só um metro e sessenta e oito e
sessenta e seis quilos, não gosto nada do nome de Galheteiro para o trio
e, muito menos, que te chamem o Meiinho.
– Calma, Lola, vou explicar-te porque tenho de dizer-lhes, ainda esta
noite, que nos saiu a massa. No sábado, durante o jantar mensal do
Galheteiro, eu, o Tomané e o Xico, resolvemos fazer uma chave igual comum
para o Euromilhões, jogando, cada um, uma aposta por sua própria conta.
Acontece que, na terça-feira, não acertámos nem num número, mas eu tive
um palpite e registei o mesmo boletim também para sexta-feira. Assim, um
deles pode lembrar-se da nossa aposta comum e, sabendo que o prémio saiu
em Portugal, concluir que fui eu ou o outro amigo o feliz contemplado.
– Tens razão, mas tens a certeza não só que venham a esta hora cá a
casa, mas também que guardem segredo.
– Certezinha absoluta. É que eu, agora, sou como os super-heróis da
banda desenhada. Tenho um super poder – o poder do dinheiro. O teu
marido vai passar a ser o Capitão Euro e vai entrar, já, em acção.
As duas conversas telefónicas foram praticamente iguais:
– Eh pá, precisava que cá viesses a casa, hoje, depois da telenovela.
Não, não posso dizer-te o motivo, mas para mim é de extrema importância
e tu vais ver que não te vais arrepender. Não, não tragas a patroa, é
uma reunião extraordinária do Galheteiro. Espero por ti, não faltes. Até
já.
Chegaram ao mesmo tempo. O Tomané, que morava mais longe, tinha dado uma
boleia ao Xico. Sentaram-se à mesa da sala de jantar e Lola foi para o
quarto ver um concurso televisivo. O Xico disse:
– Estou pior que estragado, vocês já viram o azar que nós tivemos no
Euromilhões: na terça-feira, não fizemos nem a gaita de uma estrela e,
hoje, teríamos o primeiro prémio.
– A razão do meu convite é exactamente essa. Eu joguei na mesma chave
para os dois dias. E chamei-vos aqui, por duas razões: primeira, como
colaboraram na elaboração da aposta, vou agradecer-vos, oferecendo cem
mil euros a cada um; segunda, durante uns tempos, ninguém, para além de
nós e da Lola, pode saber que me saiu a massa. Tenho que mudar o meu
filho para um colégio com segurança, porque a partir de agora pode vir a
ser vítima de um rapto. Tenho que mudar para outra casa, nesta não tenho
privacidade e as comodidades são poucas. Enfim, tenho que tomar muitas
precauções e decisões antes que se saiba que eu tenho não uma pipa, mas
uma adega de dinheiro. Logo, quero garantir o vosso silêncio sobre este
assunto e, para tal, darei mais um milhão e quatrocentos mil euros a
cada um, se só falarem no assunto, quando eu disser. Se um de vocês der
à língua, o outro também não vê nem um tuste.
– Ó Meiinho, podes contar comigo.
– E comigo também. E, agora, é preciso comemorar.
Zé Miguel foi à cozinha buscar uma garrafa de espumante ao frigorífico e
uns aperitivos, passando pelo quarto para dizer que estava tudo a correr
como previsto. Fizeram-se os brindes da praxe, falou-se dos projectos
reais – compra de casa e de um carrito, criação de empresas, onde cada
um pudesse tirar proveito das suas competências, melhoria das condições
de vida, férias no estrangeiro, etc. Entretanto já circulava uma
garrafósia de uísque, tendo-se passado para projectos, cujo grau
de mirabolância aumentava na razão inversa ao do nível da garrafa que,
ao fim de pouco tempo, ficou vazia.
– Meiinho, esta botelha nem espremida dá mais uma gota; não há uma
pingoleta prá sossega e prá viagem?
– Vinagre, tenho aí um xiripiti que é cá uma pomada que até dá
vida a um morto. Trouxe-o lá de cima, de Chaves, quando lá estive, no
Natal. Mas é um bocado forte... é aguardente de mel.
– Aguardente de mel? Conheço muitas espécies de mel: de eucalipto, de
urze e por aí adiante, mas não sabia que havia mel de videira! As
abelhas devem chegar ao fim do dia cá com uma serapilheira!
– Vamos tomar um fundinho, pois não se pode beber muito... isto é como o
álcool da farmácia, tem 70 graus. Cheguem cá os copos.
– Eh pá, é tão docinho como o licor de pêssego que fazia a minha avó e
escorrega que é uma maravilha, parece que vai de patins. Não sejas unhas
de fome, ó milionário, e enche os copos cá ao pessoal.
Zé Miguel encheu os copos, com mão pouco segura, deitando algum líquido
fora. Depois de beber o primeiro trago, as vozes dos amigos começaram a
chegar-lhe indistintas, viu a sala começar a andar à roda, levantou-se
com enorme esforço, com os olhos a fecharem-se-lhe, dirigiu-se para a
casa de banho, aos bordos contra as paredes do corredor, caiu de
joelhos, mesmo à beira da sanita, começou a vomitar, ouviu muito longe,
uma voz que gritava pelo seu nome, sentiu umas mãos a agarrar-lhe a
cabeça e apagou-se.
Acordou com um tubo na garganta e uma agulha espetada no braço, vendo
que havia pessoas inclinadas sobre ele. A cabeça estava vazia. Com o
tempo, começou a lembrar-se da tainada e, de repente, veio-lhe à ideia o
Euromilhões, pensando, de imediato, onde poderia estar o impresso e
entrou em pânico. Ter-se-ia perdido no meio da confusão? Ouviu uma voz
feminina dizer:
– Senhor doutor, o doente está a ficar muito excitado e a tentar tirar o
tubo da garganta.
– Já não é necessário. Pode desentubá-lo, enfermeira.
Mal conseguiu falar, Zé Miguel disse:
– Preciso de falar, urgentemente, com a minha mulher.
– Tenha calma, o senhor precisa é de sossegar, porque esteve quase a ir
desta para melhor. A sua sorte foi ter vomitado e o INEM ter chegado a
tempo.
– Mas, senhor doutor, eu tenho de falar, já, com a minha mulher. É um
assunto de extrema importância e urgência. CHAMEM A MINHA MULHER.
– Bem, enfermeira, antes que isto se complique, vá chamar a senhora que
está na sala de espera. E o senhor, ou deixa de gritar e se controla, ou
eu tenho de ser eu a fazê-lo, com uma injecção.
– Senhor doutor, prometo que, depois de falar com a minha mulher, faço
tudo o que quiserem.
Glória entrou, beijou o marido, agarrou-lhe a mão e disse-lhe com a boca
encostada ao ouvido:
– Tem calma Zé, estás com bom aspecto. Já chega de sustos e confusões.
– Lola, onde está o bilhete do Euromilhões?
– Tivemos muita sorte. Estava caído junto da sanita, dentro do impresso
da aposta, amarfanhados, quase do tamanho de uma bola de pingue-pongue,
o que foi bom, porque ficou protegido da porcaria do vomitado. Agora,
está aqui, encostado à tua cara, dentro do meu sutiã, de donde nunca
mais sairá, até ao dia em que formos, a Lisboa, receber o prémio.
– E o Tomané e o Xico?
– Não ficaram como tu, mas nenhum deles estava em condições de conduzir.
No caminho para o Hospital, fui entregá-los às mulheres a quem disse, na
frente deles, que a reunião tinha sido por causa de uma proposta
profissional, que te tinha sido feita e à qual tinhas de responder, até
amanhã, e tu quiseste ouvir a opinião dos amigos.
– Fizeste muito bem, Lola. Agora sou um super-herói e também tenho uma
Super Mulher, tal e qual como o Super Homem!
03.03.2015
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