Júlia Fradoca, chegada aos setenta anos, fez uma análise da sua situação
e constatou o que já sabia há muito:
● situação familiar: sem nenhum parente;
● saúde: artroses nos joelhos, hérnia discal e tensão alta;
● habitação: quarto alugado por 50 € mensais;
● rendimentos: pensão de velhice e invalidez, de 262 €;
● conclusão: não podia trabalhar e tinha 212 €, por mês, para comer,
vestir-se e comprar os medicamentos imprescindíveis para o coração.
Decidiu que teria de arranjar maneira de ganhar mais algum dinheiro, se
queria continuar a sobreviver.
Começou por tentar a mendicidade, mas cedo verificou que a vida não lhe
seria fácil naquele sector, porque, no bairro onde morava, toda a gente
era pobre e, na grande cidade, os melhores lugares estavam ocupados
pelas máfias da Europa Central e de Leste, cujas carrinhas chegavam, de
manhã, para distribuir as mulheres e as crianças pelos respectivos
locais de trabalho e voltavam, à noitinha, para as levar para os
acampamentos e bairros de lata da periferia. Durante o dia, os homens
iam recolhendo os rendimentos e fiscalizando se havia concorrência feita
por outros pedintes que, a verificar-se, levava à expulsão dos intrusos
por métodos nem sempre pacíficos.
Tentou, a seguir, os contentores do lixo e teve nova decepção. Por um
lado, a crise reflectia-se, até, nos conteúdos dos recipientes –
plásticos, papéis e pouco mais; por outro lado, as já referidas máfias
controlavam também o ramo, açambarcando a recolha não só de cartão, nas
zonas comerciais, mas também de electrodomésticos e roupas, nos bairros
de gente mais abastada. Desistiu, quando foi parar ao hospital com uma
intoxicação alimentar provocada por uma embalagem de almôndegas, fora de
prazo, encontrada num contentor de uma zona de restauração.
Depois de muito pensar, concluiu que só lhe restava uma saída – o
gamanço, actividade que, mau grado a crise que assolava o país,
continuava a permitir que os seus praticantes se desenrascassem,
podendo mesmo gerar rendimentos elevadíssimos, quando praticada por
profissionais altamente qualificados. Tomada a decisão, reflectiu sobre
a especialidade a que se deveria dedicar, a qual teria de ser compatível
com as suas actuais capacidades. Ser carteirista exigia uma perícia
manual que só se obtinha ao fim de muitos anos de prática. O roubo de
esticão a pé só era possível para pessoas com aptidões para velocistas,
dado que pressupunha uma boa capacidade de arranque e manutenção de
sprints, por vezes prolongados. Assaltos a residências ou a
estabelecimentos requeriam capacidades físicas que ela não possuía.
Durante estas elucubrações, foi levar o lixo ao contentor e, olhando
para o saco com a publicidade de uma conhecida empresa de distribuição,
a solução para o seu problema surgiu-lhe de repente: roubar nos centros
comerciais. A ideia agradou-lhe, já que ela possuía todos os atributos
para a levar à prática com êxito. Trabalhara numa firma de limpezas que
tinha contrato com algumas das empresas mais importantes do sector, pelo
que conhecia bem os futuros locais de actuação, como funcionava a sua
segurança e, até, quais os produtos normalmente com alarme. A sua figura
era discreta, não chamando a atenção. Finalmente, possuía presença de
espírito e não tinha medo de correr riscos, dado que o pior que lhe
poderia vir a acontecer seria ir para a prisão, onde teria, pelo menos,
cama e mesa gratuitas.
Tomada a decisão, passou à fase de preparar o equipamento necessário
para esconder e transportar o material roubado. Coseu quatro grandes
bolsas, no interior da parte da frente duma saia comprida rodada, e com
duas rachas que permitissem o acesso fácil às referidas bolsas. Pôs dois
elásticos fortes a fechar as mangas de um velho kispo e
descoseu-lhe os bolsos exteriores, de maneira a que passassem a
constituir entradas directas para os recipientes da saia. Completou o
uniforme profissional com umas velhas botas de cano alto, que lhe tinham
sido oferecidas por uma patroa muito gorda, e que seriam um óptimo sítio
para colocar pequenos objectos, já que as suas pernas eram do tipo
Olívia Palito.
Iniciada a actividade, cedo se tornou uma especialista, procurando
correr o mínimo de riscos e evitando tornar-se conhecida, pelo que
espaçava, ao máximo, as visitas ao mesmo local, o que não lhe era
difícil, dado o grande número de híperes, súperes e grandes lojas
existentes.
Um dia, teve conhecimento que o maior centro comercial iria comemorar o
15º aniversário da sua inauguração e resolveu estar presente, porque
haveria promoções, muita gente, confusão, logo, boas oportunidades para
uma rentável jornada de trabalho.
Chegou a meio da tarde, pegou num pequeno cesto, dirigiu-se à padaria e
apanhou um saco com dois pães, dado saber que andar pelos corredores sem
nada na mão poderia provocar suspeitas aos seguranças. Em seguida, deu a
habitual volta completa de prospecção, terminada a qual, pensou na
merenda, dirigindo-se à secção de queijos, onde estavam duas marcas a
oferecer provas e comeu quatro tapas. Depois, passou pelo sector dos
avulsos, servindo-se de alguns frutos secos e metendo, nas bolsas, uma
mão cheia de gomas e pequenas embalagens de bolachas. Terminou na
frutaria, provando, repetidamente, uvas, morangos e cerejas.
Satisfeito o apetite, começou a colheita. Primeiro, os produtos para
consumo próprio, principalmente bens alimentares: duas maçãs, duas
peras, uma banana, dois iogurtes, um pacote de manteiga, uma lata de
conserva de sardinha e outra de atum e três embalagens de produtos
fatiados (queijo, peito de frango e fiambre), pondo, no cesto, uma de
chouriço de sangue às rodelas. Em seguida, ocupou-se com o material que,
mais tarde, venderia – duas tabletes de chocolate, uma embalagem de
bolachas baunilha, um conjunto de pilhas, um tubo e uma caixa de creme
facial, um batom para os lábios e um tubo de rímel.
Entretanto, ouviu o anúncio de que iria ser distribuído o bolo de
aniversário e aproveitou para comer uma fatiazinha, após o que decidiu
encerrar o dia de trabalho. Dirigiu-se às caixas e, pelo caminho,
lembrou-se de que necessitava de um pente, tendo feito um pequeno
desvio. Quando pegou no pente, reparou, pelo canto do olho, que um
segurança olhava para ela, pelo que colocou ostensivamente o objecto, no
cesto, e continuou o seu destino, mas dando mais uma pequena volta para
ver se era seguida, o que não aconteceu.
Chegada à caixa, esperou pela sua vez, entregou os pães, o chouriço e o
pente. A caixeira começou a passar a pistola pelos códigos de barras e,
quando chegou ao pente, soou uma campainha e a menina disse-lhe:
– Mas que grande azar que a senhora teve!
– Mas o que é que eu fiz? O que é que está a acontecer?
– Não fez nada, mas, neste dia de aniversário, oferecemos, de 500 em 500
movimentos de caixa, a totalidade da venda e a cliente só tem uma
factura de 1,44 €.
Entretanto, tinha chegado uma funcionária com a farda da loja que se
identificou como sendo a chefe das caixas e disse:
– Mesmo assim, a senhora está de parabéns, porque a sua compra foi a
número 2 000 de hoje e nós temos, em colaboração com a agência de
viagens do nosso Grupo “VER E CONHECER”, um prémio especial para a venda
que coincidisse com o ano em que nos instalámos nesta cidade, ou seja, o
ano 2 000. Assim, acaba de ganhar o nosso grande Jackpot: uma
estadia de uma semana no Caribe, num hotel de 5 estrelas, em regime de
meia-pensão, prémio este que, todavia, não pode ser negociado, tendo de
ser gozado pelo vencedor. Mais uma vez, os nossos sinceros parabéns e
esperamos que continue a ser nossa cliente.
06.03.2015 |