Entrou no grande e luxuoso estabelecimento de relojoaria e
joalharia, dirigiu-se a um dos empregados e disse:
– Bom dia, o assunto que aqui me traz é invulgar, mas, como irá ver,
vi-me obrigado a vir incomodá-los.
– Faça o favor de se sentar e diga-me em que lhe poderemos ser úteis.
– Ora bem, eu sei que, por contrato, a vossa empresa não pode prestar
assistência a relógios que não sejam da marca que representa e, muito
menos, fazê-lo com contrafacções. Acontece que a minha mulher possui
esta imitação que lhe foi oferecida pelo patrão, quando estiveram, há
dois anos, em Macau, numa Feira Internacional de Calçado, relógio pelo
qual tem uma enorme estima. Há uns meses, pediu-me para substituir a
pilha, o que fiz com uma comprada nos chineses. Ontem, o relógio parou
e, quando foi aberto, verificou-se que a pilha estava oxidada. A minha
mulher, com receio de que a oxidação pudesse ter afectado a máquina,
pediu-me para vir ao representante da marca não só para trocar a pilha
por material fiável, mas também para que se procedesse a um exame, para
verificar se seria necessária uma limpeza ou reparação. Assim, aqui
estou eu pedindo que seja aberta uma excepção e prontificando-me a pagar
o que for considerado conveniente.
– Não se importa de me mostrar o relógio.
Tirou-o da caixa, abriu-o, examinou-o e disse:
– Meu caro senhor, trata-se realmente de uma imitação, mas muito boa,
porque, à primeira vista, pareceu-me autêntico. O nosso gerente está
ausente e só ele é que pode tomar uma decisão nesta matéria. Logo que
chegue, falarei com ele. Se passar cá pelas 15H00, dir-lhe-emos alguma
coisa. Muito bom dia e até logo.
Mal o cliente saiu, dirigiu-se ao gabinete do proprietário e
explicou-lhe o que se estava a passar:
– Senhor Gonzaga, trata-se nitidamente de um caso de infidelidade. A
mulher engana-o com o patrão e não podendo receber ostensivamente
prendas caras, diz ao marido que se trata de uma imitação. Mas não tenho
dúvida absolutamente nenhuma de que isto é o nosso autêntico Mercury
Ladies Blue Ribbon.
– Mostre-mo, Fonseca. Realmente tem razão. Olhe que há coincidências
levadas dos diabos. Na semana passada, telefonou-me uma senhora, de quem
fiquei com as coordenadas, muito interessada nesta raridade. Acha que o
fulano nos venderá o relógio?
– Não tem cara de ser muito esperto. Bem conversadinho, penso que sim.
– Então poderemos ter em mãos um excelente negócio, obtendo um bom e
rápido lucro sem grandes formalismos, como me pareceu ser desejo da
potencial cliente. À tarde, traga-me o homenzinho. Este assunto, como é
evidente, fica entre nós e prometo que não me esquecerei de si, Fonseca.
Quando o cliente chegou, foi-lhe comunicado que o gerente gostaria de
falar com ele e que o receberia no gabinete.
– Muito prazer em conhecê-lo, faça o favor de se sentar. Aqui tem o seu
relógio com uma pilha nova e a revisão feita. Pedi-lhe para falar comigo
por causa desta peça que é uma imitação notável. Sou um especialista e
confesso-lhe que nunca vi nada assim. Acontece que tenho uma boa
colecção de contrafacções e gostaria de lhe juntar esta, oferecendo-lhe,
em troca, o nosso Femina Super 2015 , cujo preço de balcão é de
220 euros.
– Desculpe, mas há aqui qualquer coisa que não está bem explicada. Como
eu já disse ao seu colaborador a minha mulher tem muita estimação pelo
relógio e...
– Estou perfeitamente a par da situação, mas não me vai levar a mal se
eu tentar convencê-lo a vender-me o relógio, que muito valorizaria a
minha colecção. Em negócios, tudo, excepto a honra, tem um preço e eu
vou fazer-lhe uma proposta irrecusável: 1 000 euros.
– Ó meu caro senhor, o relógio vale meia dúzia de dólares. Não me esteja
a meter bichos na cabeça... Se fosse eu a decidir, vendia-lho de
imediato, pois 1 000 euros dar-me-iam muito jeito. O caso é que o
relógio não é meu e não quero ter mais problemas, dos que já tenho, com
a minha mulher.
– Mas não haverá nada que a sua esposa muito deseje e que se pudesse
sobrepor à estimação pelo relógio.
– Deixe-me lá pensar... Ora bem, nós temos um plasma de 62 polegadas que
a Empresa ofereceu à minha mulher, pelo Natal e ela gosta muito de
cinema e de programas musicais. O aparelho tem um bom áudio, mas eu sei
que ela adoraria ter, e eu também, um surround sound, mas isso
custa uma pipa de massa, quase uns 2 500 euros, segundo vi, há dias, num
folheto publicitário e eu estou desempregado e não tenho dinheiro para
lhe satisfazer esse desejo.
– E se eu lhe der essa importância?
– Não está a falar a sério.
– Olhe que estou.
– Bem, nesse caso, arriscaria as mais que possíveis chatices. E até me
veio agora à cabeça uma ideia que me dará uma desculpa imbatível: o
senhor passa-me um recibo de substituição de pilha e limpeza para provar
que cá estive e eu vou dizer à minha Cátia Vanessa que fui assaltado, no
metro, e que me roubaram o porta-moedas e o relógio.
– Perfeito; Fonseca, vá-me buscar à caixa os 2 500 euros que eu depois
reponho o dinheiro.
– Desculpe, senhor gerente, mas há só mais um pequeno pormenor. Vamos
supor que o senhor se arrepende e se queixa que eu lhe vendi um relógio,
comprovadamente falso, por uma importância exorbitante. Assim, agradecia
que me passasse, para meu descanso, uma declaração de que me comprou uma
imitação pela referida importância.
– Se é esse o problema, vai deixar de existir, porque eu já lhe estou a
passar o documento. Aqui está, com o dinheiro.
– Muito obrigado. Deixo-lhe a imitação com a respectiva caixinha.
Saiu e, no passeio fronteiro ao centro comercial, encontrou-se com uma
jovem que lhe perguntou:
– Então, correu bem?
– A primeira fase foi perfeita. Toma o relógio, a declaração e os 2 500
euros.
– Estão a demorar.
– Não, já estou a ver o empregado acompanhado de alguém que deve ser o
responsável pela Segurança. Falamos logo, adeus.
– Cavalheiro, sou o major Pereira Fernandes, comandante da Segurança
deste centro comercial. Faça o favor de me acompanhar.
– Mas o que é que se passa? Há algum problema?
– Sabe bem que há. Não complique a situação.
Dirigiram-se à ourivesaria e, mal entraram no gabinete, o gerente
gritou:
– Com que então, vigarizou-me, vendendo-me uma falsificação barata por um
balúrdio.
– Não estou a entender. Estive uma hora a explicar-lhe, na presença do
seu empregado, que o relógio era falso. O senhor disse-me que era essa a
razão pela qual o queria comprar, redigindo e assinando um documento,
onde declarava o que acabo de referir e, agora, vem-me dizer que eu o
vigarizei!
– Mas o relógio que eu vi era autêntico e você vai pô-lo, aqui, a bem ou
a mal.
– Senhor Gonzaga, perguntou o major, essa declaração existe? Caso a
tenha assinado, não vejo em que possa fundamentar uma queixa, pelo que o
aconselho a que cheguem a um acordo.
– Sou da opinião do senhor major e proponho-me efectuar uma reunião, a
sós, com o senhor António Pedro du
Bois-Lamothe e Gonzaga, proprietário deste estabelecimento, estando
convicto de que chegaremos rapidamente a uma conclusão que interesse a
ambos.
O proprietário aquiesceu e após a saída de Fonseca e do major perguntou:
– Vai dar-me o relógio ou o dinheiro?
– Nem uma coisa, nem outra, porque, mesmo que o quisesse fazer, não
poderia, pois estão, tal como a sua declaração, em poder da minha
mulher.
– Então qual é o acordo a que chegaremos?
– Vai ver, pedindo-lhe que me ouça com atenção. Como já deve ter
reparado, sou um profissional e acrescento que sou proprietário duma
organização de âmbito mundial, onde tenho investido muito dinheiro, dado
que não trabalho só com a sua marca, mas também com as mais prestigiadas
do ramo da relojoaria, para além de me dedicar, ainda, à ourivesaria.
Assim, para além das imitações, sou obrigado a possuir os originais, o
que, como compreende, implica a aplicação e imobilização de capitais
muito importantes. Nesta conformidade, o Projecto Mercury
Ladies Blue Ribbon não poderia, nunca, apontar só para um lucro de 2
500 euros que não seriam suficientes, nem para pagar as despesas com
esta operação que envolveu não só viagens e estadia de duas pessoas para
estudar a situação no local e executar a acção planeada, mas também
trabalhos de preparação e investigação. A propósito, esqueça o contacto
da cliente interessada no relógio, o número telefónico pertencia a um
telemóvel descartável e o e-mail já não existe.
– Mas, afinal, o que é que pretende?
– Só mais um momento, pois estou a terminar. Sei que o senhor investiu
muito tempo, dinheiro e prestígio para ser o representante, no país, de
uma das mais prestigiadas marcas da relojoaria mundial, estatuto que
pressupõe, no entanto, uma conduta exemplar que não se compagina com a
compra de um relógio por 2 500 euros, quando o seu valor de mercado se
situa nos 5 870 euros, a um ingénuo marido desempregado a quem a mulher
engana com o patrão. Se este, chamemos-lhe eufemisticamente, negócio
viesse a ser conhecido pela sua representada, não duvida que perderia,
para sempre, a sua querida e valiosíssima representação. Portanto, o
objectivo principal desta minha operação é receber 150 000 euros,
comprometendo-me a devolver a sua declaração e a não tornar público este
assunto. Este dinheiro deverá sair da sua conta pessoal, não aceitando
que me diga não ter disponibilidade para tal, porquanto conseguimos
entrar nas suas contas bancárias e sabemos que vendeu, ontem, aplicações
financeiras no valor de 275 000 euros. Meu caro senhor, dou-lhe um
quarto de hora para ordenar, pela NET, a transferência para uma das
minhas contas, cujo número lhe darei durante a operação, dos 150 000
euros. Seguidamente, permitir-me-á confirmar, através da utilização do
seu computador, que a transferência teve êxito, comprometendo-me a que
sua declaração de compra será entregue, durante a minha presença nesta
loja, na sua caixa de correio deste centro comercial. Para finalizar,
quero informá-lo que as nossas conversas, por uma questão de segurança,
têm sido gravadas, mas a respectiva cassete ser-lhe-á entregue
juntamente com a sua declaração de compra.
Nota final – O senhor António Pedro du Bois-Lamothe e Gonzaga
continua a ser o representante, no seu país, de uma das mais
conceituadas marcas mundiais de relógios.
18.02.2015 |