Um velho amigo, internauta conhecedor e aventureiro, disse-me ter fortes
suspeitas, só não dizendo a certeza, penso eu, por uma questão de
modéstia ou, talvez, por ter receio de ter que explicar como tinha
obtido esse conhecimento, de que a NASA, Agência Espacial Norte
Americana e a ESA, Agência Espacial Europeia, terão investido, séria e
conjuntamente, num projecto não virado para o espaço interplanetário,
mas para a dimensão Tempo que visava a colocação de um módulo com
tripulantes no Passado.
Existindo a tecnologia necessária para essa retro-viagem, o primeiro
problema terá sido a definição de um alvo consensual, sendo a Guerra da
Secessão e a Revolução Francesa os dois acontecimentos considerados
respectivamente como os mais importantes pelas duas Agências, não se
tendo, no entanto, chegado, por razões óbvias, ao necessário consenso.
Por fim, procurou-se uma efeméride de dimensão mais abrangente,
integrada no espaço cultural dos dois continentes, mas situada fora do
seu âmbito geográfico, tendo-se optado pelos últimos dias de Cristo.
O lançamento efectuou-se, tendo-se verificado um ligeiro erro de
pontaria: uma antecipação de setenta e dois dias exactos. Considerando
que a data de regresso não poderia ser alterada sem se correrem sérios
riscos, a tripulação, um americano e um francês, viu-se obrigada a
definir novos objectivos, tendo-se definido que o tempo-nauta americano
tentaria acompanhar Cristo e o francês os Apóstolos.
Por uma razão primordialmente onomástica, Pierre sentiu-se atraído pelo
seu falso homónimo – como é sabido, o nome do Apóstolo era Simão e não
Pedro –, com quem estabeleceu uma relação tão boa que acabou por ser seu
hóspede. O chefe dos Apóstolos vivia num pátio com portaria, perto do
local onde atracava as suas barcas e onde moravam também outros
pescadores. Pierre foi testemunha frequente do péssimo relacionamento
existente entre a porteira, de nome Zípora e de alcunha a Refilona, e
todos os seus locatários, especialmente com Pedro, mau grado os esforços
efectuados por este para agradar a uma mulher de pelo na venta, mal
agradecida e nascida para fazer da vida dos outros um inferno.
O pescador Simão Pedro nunca se esquecia, depois de um dia de trabalho,
de levar uns mimos para Zípora, mas a recepção, independentemente da
forma de que se revestia, era sempre azeda. Eis alguns exemplos:
– Para a próxima, se me trouxeres peixe, entra pela porta dos
fornecedores, para a entrada não ficar empestada com este fedor.
– Cherne! Da última vez espetou-se-me uma espinha na goela e vi-me
aflita.
– Não podes dizer aos teus pescadores para amanharem e escamarem o peixe
lá no lago; aqui em casa, fica tudo uma porcaria e quem tem de limpar a
entrada sou eu.
– Cuidado com os amigos que trazes cá para casa. Estas reuniões começam
a ser faladas pela vizinhança. Estou farta de te avisar; não te
acreditas em mim, mas algum dia vais ter problemas com as companhias,
principalmente por causa do teu amigo Judeu.
Por incrível que pareça, Simão só perdeu a cabeça, no dia em que Zípora
lhe disse:
– Sempre peixe fresco... ainda ao menos se me trouxesses umas caras ou
línguas de bacalhau...
A resposta, dada a sua crueza, nem eufemisticamente se pode mencionar.
Terminada a missão, o módulo temporal voltou ao Presente sem problemas,
não se compreendendo, segundo o meu amigo, a razão porque, mau grado o
seu indesmentível êxito, esta viagem ao passado ainda não foi
devidamente publicitada.
Mas voltemos à personagem principal desta história. Nos últimos anos da
vida de Cristo, Pedro liderou e dinamizou os Apóstolos e apoiou o
Mestre. Depois da morte de Jesus, exerceu uma longa, profícua e
diversificada acção evangelizadora, especialmente em Antioquia e Roma,
onde viria a ser preso e crucificado por ordem de Nero. Quando chegou ao
Paraíso, foi levado até Deus que lhe demonstrou não só o Seu apreço pela
obra realizada em prol da fundação, divulgação e implantação da Igreja
Católica, mas também o Seu desejo de lhe poder retribuir tanto trabalho,
sacrifício e dedicação.
– Basta-me ter sido recebido por Vós, para me sentir totalmente
recompensado de todos os meus trabalhos e sacrifícios.
– Mas tu foste um grande amigo e servidor do Meu Filho, em quem sempre
acreditaste se exceptuarmos aquelas três negas depois da última Ceia.
– Esses três momentos de fraqueza hão-de atormentar-me até à Eternidade.
Mas, nessa noite, eu não estava nos meus melhores dias.
– Não penses mais nisso, porque há muito que foste perdoado. Agora vamos
dar uma volta para te mostrar o Paraíso.
– Senhor, posso fazer uma pergunta? Como se processou a minha entrada?
Ninguém me perguntou nada!
– O teu caso é especial. Sabendo da tua chegada, dei instruções para que
tivesses um tratamento VIP. Normalmente as almas são atendidas por um
Arcanjo que verifica se reúnem condições para entrar. Quando há muita
gente, especialmente por altura de genocídios, guerras ou epidemias,
tem-se reforçado o serviço com mais um ou dois Arcanjos e, até agora,
não tem havido problemas. Quando se formam bichas, o que infelizmente é
raro, e há almas a quererem passar à frente, chama-se o GOEA (Grupo de
Operações Especiais dos Arcanjos), bastando duas ou três espadeiradas de
fogo para que tudo fique na paz do Senhor.
– Mas, Padre Eterno, estamos no princípio, e a Vossa Igreja só tem
algumas dezenas de anos. Como será daqui a mil ou dois mil anos? Tendo o
Vosso Reino milhões de milhões de habitantes, bastará este tipo de
serviço?
– Tenho tudo previsto. Se compreendesses a linguagem que só irá ser
utilizada dentro de mil e novecentos anos, até te poderia dizer quantos
Gigabytes terá o Nosso Servidor, afectado ao Serviço de
Portaria.
Realmente
Gigabytes e Servidor eram palavras que não diziam
nada a Pedro. Mas portaria fez-lhe tocar uma campainha na
circunvolução cerebral onde se situa o mecanismo da Vingança. Daí que
tenha perguntado:
– Posso saber se se encontra, nestas Divinas Instalações, a alma de uma
mulher chamada Zípora?
– Essa resposta é facílima de dar para Mim que sou omnisciente. Mas para
te provar a eficiência do Nosso Serviço de Arquivo e Localização, vamos
perguntar ao Arcanjo Chefe.
A informação foi que Zípora se encontrava no Purgatório a cumprir uma
expiação de dois mil e quinhentos anos, só dando entrada no Paraíso,
precisou Deus, no dia 29 de Fevereiro de 2536.
– Para mal dos meus pecados, eu conheci Zípora que realmente tinha um
feitio danado, mas era uma mulher séria e trabalhadora. Uma punição de
dois mil e quinhentos anos... Não se pode dizer que tenhas tido mão
leve, Meu Deus.
– Vais aprender que dois mil e quinhentos anos são uma bagatela,
comparados com os novecentos octilhões de anos que eu previ como prazo
de duração, quando arquitectei e construi o actual Universo.
– Voltando ao início da nossa conversa. Mantém-se de pé a Vossa proposta
de satisfazer um desejo meu.
– Com certeza.
– Então eu gostava de ser o Porteiro do Céu.
– Desejo concedido. Arcanjo, dá as chaves a São Pedro.
Desde então, São Pedro tem vivido feliz, antecipando a visão de Zípora,
quando chegar e vir que o Porteiro é o seu antigo locatário, e
congeminando não só o que lhe irá dizer, no momento da chegada, mas
também os detalhes da recepção que, por acaso, será feita na porta dos
fornecedores, à hora da chegada do abastecimento semanal de peixe.
15.02.2015 |