Ao sentar-se à mesa do Café, Hildebrando viu um telemóvel igual ao seu,
pousado numa das cadeiras. Alguém o tinha esquecido. Que fazer?
Entregá-lo a uma das empregadas, ir à esquadra situada mesmo ao lado?
Lembrou-se de que, sabendo trabalhar com o aparelho, poderia marcar o
número de alguém que conhecesse o proprietário. Premiu a tecla 2 para
marcação rápida e, passados segundos, ouviu:
– Diz, filha.
– Não é a sua filha...
– O que é que aconteceu à minha filha, um acidente?
– Não, minha senhora, a sua filha perdeu o telefone e eu achei-o.
– E onde está o senhor?
– Num Café, defronte dos Correios.
– A minha filha trabalha nos Correios, mas a esta hora já saiu. Se
pudesse esperar um pouco, eu pedia ao meu marido para passar por aí.
Entretanto, Hildebrando viu entrar uma jovem que se dirigiu a ele,
dizendo:
– Esse telefone é meu.
– E eu estou a falar com a sua mãe.
Esclarecida a situação, Leonor desfez-se em agradecimentos, fez questão
de pagar, pelo menos, o café e, ao fim de cinco minutos, começou a
simpatizar com Hildebrando, ligando instintivamente o seu sistema de
charme.
– Então o que faz?
– Trabalho em design gráfico, mas pretendo dedicar-me à moda.
– Olha que interessante e eu que gosto tanto de revistas de moda.
Ao fim de um quarto de hora, Leonor auto-convidou-se para novo encontro,
utilizando esta técnica mais meia dúzia de vezes, porquanto, mau grado
ter posto toda a sua capacidade insinuante em acção, não conseguia que
Hildebrando tomasse a iniciativa. Criado segundo as normas do RDM
(Regulamento de Disciplina Militar) pelo pai, sargento da GNR, falecido
recentemente num acidente, Hildebrando não se tinha ainda libertado dos
princípios do cumprimento do dever acima de tudo e que as decisões são
para ser tomadas pelos superiores.
Começaram a trocar frequentes SMS que terminavam, sempre, por bjs. Ao
fim de um mês, Leonor começou não só a estar farta de beijinhos
unicamente no mostrador do telemóvel, mas também a duvidar da
masculinidade do jovem e resolveu-se a tirar a prova real, numa ida a
uma discoteca. Depois de uma tarrachinha, sentiu, rápida e
intensamente, que as suas suspeitas não tinham o menor cabimento. Às
duas da manhã, saíram e ele levou-a a casa, parando o carro defronte da
porta. Na hora da despedida, ela estendeu-lhe os lábios, cerrou os olhos
e sentiu a pele picante da face direita que lhe tinha sido pudicamente
oferecida, mas a boca continuou o seu destino prioritário rumo aos
beijos húmidos que, não tendo sido fáceis de começar, se mostraram muito
mais difíceis de terminar.
Tendo, assim, sido estabelecido oficialmente o namoro, o mesmo entrou na
fase institucional: noites de terça, quinta, sábado ou domingo
(dependendo dos jogos do Benfica), feriados e de dias santos, à tarde.
Com o andar do tempo, as restantes noites passaram a ser eventualmente
utilizadas. Local
–
porta e corredor da entrada da casa da Nonô. Um dia,
a mãe da jovem, D.ª Mariana, disse ao marido:
– Zé, não ando nada descansada com o namoro lá em baixo. A rua é escura,
a lâmpada da entrada é fraquinha, a Nonô, tanto quanto eu saiba, não
toma a pílula e se o rapaz for tão mexeriqueiro como tu eras, algum dia
temos problema.
– E que é que tu queres que eu faça? Que leve uma cadeira e vá lá para
baixo ler o jornal?
– Não, mas como isto já dura há dois anos e meio, podíamos dizer-lhes
que viessem, cá para cima, conversar e ver televisão cá com a gente.
O convite foi feito, a Leonor aceitou sem grande entusiasmo e o
Hildebrando, como era seu hábito, respondeu:
– Com certeza, D.ª Aninhas, a senhora é que sabe.
Os pais sentavam-se no sofá e os namorados nas suas costas, atrás da
mesa que passou a ter uma nova utilidade
–
camuflagem. As despedidas, no
rés-do-chão, tornaram-se mais prolongadas. Os meses passavam, saiu uma
máquina de café a Leonor, numa rifa, e o seu querido Brando passou a
tomar a biquinha, lá em casa.
– Vai um cheirinho, amigo Hildebrando?
– O senhor é quem manda, senhor Zé Nunes.
– O Benfica ganhou, vai uma caliçada de Porto?
– Se o senhor o diz.
Na véspera do 5º aniversário do namoro, que seria comemorado com um
jantar, em casa da Nonô, Zé Nunes, contabilista de uma empresa de
alimentação, bebidas e produtos domésticos, disse à mulher:
– Aninhas, temos de deitar contas à vida. Eu sei que a nossa filha, com
esta idade e antecedentes, já não arranja com facilidade melhor do que
este. Mas já lá vão muitos anos e euros. São os cafezinhos, são os
digestivos, são as cigarrilhas e, ultimamente, o Canal Benfica. Falando
em termos económicos, ou se casam, ou corremos o risco de o Brandinho se
pôr a andar e de este investimento ser contabilizado como prejuízo.
Conversa com a Nonô e explica-lhe algumas das técnicas em que eras
altamente especializada.
– Eu! Pobre de mim, que era uma menina mal acabada de sair do Colégio de
Fátima e que caí nas mãos de um malandrão que a sabia toda. Mas indo ao
que interessa. Já falei com a Nonô, várias vezes, e ela tem feito os
possíveis e os impossíveis, mas o Brando é incapaz de tomar decisões e
muda de assunto, quando lhe cheira a conversa sobre casamento.
– Ah, então deixa-o comigo que o vou pôr numa posição em que não lhe
deixo nenhuma hipótese de se escapar. Amanhã, depois da jantarada, leva
a Nonô para a cozinha e vais ver se eu, em cinco minutos, não lhe dou a
volta.
Assim foi feito. Mal ficaram a sós, José Fernandes disse, depois de
encher os cálices do Porto e de terem acendido as cigarrilhas:
– Amigo Hildebrando, já nos conhecemos, há cinco anos, e sabe que, tanto
eu como a minha mulher, para além de termos dado provas de que somos
seus amigos, o consideramos como um filho. Acontece que o tempo vai
correndo e nós não queremos deixar a nossa Nonô desamparada e
gostaríamos de conhecer os nossos netos e vê-los crescer. A minha filha
já vai fazer trinta e você trinta e três, os anos vão passando cada vez
mais depressa, vocês não se casam e nós estamos a ficar muito
preocupados. Sei que você é uma pessoa de bem e que não me vai levar a
mal se eu, de homem para homem, lhe fizer uma pergunta: você anda aqui
para casar com a minha filha ou para o que é?
Hildebrando, a quem não agradava minimamente ter que vir a assumir as
responsabilidades decorrentes de um matrimónio, sentindo-se bem na
actual situação e posto inesperadamente perante um dilema, logo sem
terceira alternativa, respondeu, calmamente:
– É «para o que é», senhor Zé
Nunes.
31.01.2015 |