Ester
tinha herdado, da tia Virgínia, um serviço para doze pessoas – jarros,
copos de água, de aperitivos, de vinho branco, de vinho tinto, taças de
espumante e cálices de digestivos
– que esteve guardado, durante alguns
anos, no sótão, porquanto não só a fragilidade, mas também a beleza e,
ainda, o elevado valor das peças de cristal da Boémia – constava que
tinham sido trazidas para Portugal por uma família judia que fugira
das SS hitlerianas – exigiam um móvel espaçoso e condigno que os
reduzidos rendimentos do agregado familiar, em começo de vida, não
permitiam adquirir.
Entretanto, o marido, Fernando de nome e Nando KO de merecida alcunha,
tinha arranjado um gancho pós-laboral como treinador de boxe no ginásio
do bairro e a Ester tinha sido promovida a escriturária de 1.ª classe,
pelo que o orçamento do casal acabou por permitir, com a ajuda de um
terceiro prémio do Totoloto, que se equipasse a sala comum, primeiro com
um terno de sofás e depois com a sonhada cristaleira.
No
primeiro sábado após a chegada do móvel, Ester instalou o serviço nas
três prateleiras iluminadas, requinte luminotécnico com que se pretendia
vir a potencializar a inveja de futuras visitas, tendo sido decidido
que, nesse domingo, o almoço seria comido, não na habitual mesa da
cozinha, mas na sala junto à cristaleira.
Estavam a
acabar a sopa, quando o Fernando disse, depois de ouvir o cuco do
relógio:
– O da 1
e 5 vem adiantado.
O da 1 e
5 era o autocarro dos serviços de transportes urbanos, com paragem de
zona junto ao passeio do apartamento, situado no rés-do-chão. Palavras
não eram ditas e começou a ouvir-se um inusitado tilintar proveniente do
móvel. Os copos, especialmente os cálices, bailavam uma animada dança de
mau agouro, que se prolongou durante os quatro minutos em que o motor do
autocarro se manteve a trabalhar, em ponto morto, para acertar a hora de
partida.
Ao fim de
uma semana e largas dezenas de autocarros, Ester averiguou que o
tremelicar dos cristais tinha provocado estragos: dois cálices e um copo
de vinho branco estavam nicados. Resolveu queixar-se sem, contudo, dizer
nada ao marido, temendo o tipo de reclamação que o temperamento bilioso
do peso pesado poderia provocar.
Na
segunda-feira, pediu ao Chefe de Secretaria para entrar às 15H00 e
dirigiu-se, após o almoço, à sede da empresa de transportes, onde foi
recebida por um senhor muito simpático, miudinho e bem apessoado que lhe
disse duvidar que as trepidações de um autocarro pudessem provocar, à
distância de 3 metros e com uma parede de permeio, os anunciados
estragos. Todavia, face à convicta insistência de Ester e, segundo ele,
para provar à reclamante e cliente que, desde a privatização dos
transportes, o pessoal se interessava a sério pelos utentes, ao
contrário do que acontecia no tempo dos Serviços Municipalizados,
prontificou-se a enviar alguém para averiguar a pertinência da
reclamação.
– Pode
ser hoje, às 17H00?
– A essa
hora não está ninguém em casa. Só se for depois das seis.
– Minha
senhora, para lhe mostrar que isto, agora, é outra louça e apesar de ser
já depois da minha hora de saída, eu próprio lá estarei, às 18H15.
– Muito
obrigada e até logo.
No
caminho para o serviço, tentou comunicar a visita ao marido, mas as suas
chamadas, repetidas insistentemente durante a tarde, nunca obtiveram
resposta, mau grado não se ouvirem os sinais de interrompido ou
desligado. A cada chamada não atendida, aumentava o seu nervosismo,
porquanto não queria receber o Inspector sem o Nando estar presente.
Chegada a casa, telefonou, mais uma vez, ouvindo o toque do telemóvel
pousado na mesa da cozinha. Chamou para a sede da empresa de transportes
para tentar adiar a visita, tendo-lhe sido dito que o senhor Inspector
estava ausente e incomunicável.
Em
princípio, o Nando costumava passar por casa antes do treino, mas, nesse
dia, tinha ido ao Porto, visitar dois clientes importantes. Com o passar
dos minutos, Ester começou a sentir que a ansiedade ia atingindo um
nível difícil de suportar, engolindo mais um anseolítico, para além dos
dois usuais, mas sem nenhum resultado sensível.
Quando
ouviu a campainha, ingeriu o comprimido SOS. Abriu a porta, mandou o
senhor entrar, dirigiram-se à sala, mostrou os copos falhados, convidou
o Inspector a sentar-se num dos sofás individuais e instalou-se no
duplo, tentando acalmar-se falando do tempo e da crise económica, mas
esperando, cada vez mais impacientemente, a chegada do autocarro das 18H35 que, para cúmulo, não chegou à hora.
Então,
Ester sentiu que começava a ouvir e falar com dificuldade, que a vista
lhe faltava e desmaiou, debruçada no braço do sofá. O Inspector
assustou-se, mas tendo participado, por dever profissional, num curso de
primeiros socorros, pôs em prática os conhecimentos. Deitou Ester no
sofá, chamou o 112, abriu a braguilha das calças de Ester, que estavam,
na sua opinião, muito apertadas na cintura, tentou, sem resultado,
tomar-lhe o pulso, pelo que lhe arregaçou a camisola de lã, encostou o
ouvido ao peito da mulher que começava a vir a si, soltando gemidos e
revirando os olhos, e sentiu que, de repente, levantava voo, vendo, a
dois dedos dos seus, dois olhos a chispar e ouvindo uma voz furiosa
gritar:
– Que
raio é que se está a passar nesta casa?!
Antes que
pudesse responder, foi atingido por um violentíssimo murro que o
projectou contra a parede, felizmente ao lado da cristaleira.
Acordou
deitado no sofá, viu duas pessoas inclinadas sobre ele e a Ester
aninhada nos braços de um calmeirão. Um dos Inemes, identificado pelo
estetoscópio pendurado ao pescoço, perguntou-lhe:
– Que
diabo de coisa é esta? Telefonam-nos a dizer que estava uma senhora
desmaiada e afinal encontramos um homem sem sentidos e com a cara feita
num bolo? Pode dizer-nos qual é o seu papel nesta história?
– Senhor
doutor, eu só estava à espera do autocarro das 18H35!
23.01.2015 |