Felicidade tinha acabado de aparar a netinha, no final de um parto
complicado da sua filha Deolinda, o qual só acabara bem, porque contou
com a ajuda da Quinhas Natividade, vizinha com treze filhos nascidos,
dos quais sete se mantinham vivos.
Com a criança bem agarrada nos braços, ajoelhou diante da imagem de São
Gonçalo, colada numa das paredes do casebre, e disse:
– Ó minha rica menina, meu anjinho,
meu mais que tudo! Prometo-te que, com a ajuda do nosso São Gonçalinho,
nunca te deixarei passar pelas misérias que eu e a pobre da tua mãe
temos sofrido.
Felicidade, nada e criada na Beira-mar, tinha vindo ao mundo com um
defeito numa perna, aleijão esse que lhe valera, desde muito cedo, ser
crismada, inocente, mas cruelmente, pela criançada do Bairro, como a
Dadinha Manquelitó.
Acabada a escola primária, foi aprender costura para casa da dona
Zefinha do Adro, começando por tirar alinhavos, fazer recados e
limpezas, mas revelando, cedo, a predestinação para a arte de bem
agulhar. Esta habilidade valeu-lhe um convite para fazer calças, na
alfaiataria do senhor Quim Teles, promoção que lhe permitia trazer mais
uns tostões para casa da tia, que tinha tomado conta dela, após a falta
da mãe, morta de tísica e de saudades do seu homem, emigrado à procura
de melhor vida, em França, donde nunca mandara nem dinheiro, nem
notícias.
A idade fizera de Dadinha uma cachopa jeitosa, com tudo no sítio, mas a
perna marota não apropinquava namorados, mau grado todos os seus
esforços, principalmente nos bailes dos Bombeiros Novos, onde ela,
exímia bailarina, pois a dançar não mancava, levava o par a imaginar, em
pé, aquilo que gostaria de praticar noutra posição. Os pedidos, preces e
promessas a São Gonçalinho, afamado curandeiro de doenças de ossos e
muito mais renomado Santo casamenteiro, não tinham tão pouco resultado:
nem a perninha se tinha endireitado, nem nenhum rapaz a tinha namorado.
Até que um dia, o primo Felismino, a quem a mulher com quem vivia tinha
trocado por outro, lhe começou a arrastar a asa. Era mais velho dezoito
anos, mas ela já ia nos trinta e um e, farta de esperar, aceitou o homem
enviado por São Gonçalinho, agradecendo-lhe com uma sacada de cavacas
lançadas da platibanda da capela, no dia da Festa.
Casaram-se e procuraram ser felizes. Mas o Mino Falta de Ar, que tinha
sido moço numa marinha da Corte de Cima, amanhada pelo marnoto Jaquim
Quiço, e que, depois da tropa, arranjara emprego numa Cerâmica do Canal
do Cojo, contraíra uma silicose que, após o ter impossibilitado para o
trabalho, evoluíra para a tuberculose que o viria a matar.
Deste casamento nasceu uma filha, produto final de consanguinidades
imemoriais, num bairro onde todos eram primos e primas. A Deolinda,
pleonasticamente bonita, não fechava bem, no dizer do Tó Bocas, a tampa
da caixa dos pirolitos. Não conseguiu acabar a escola primária, não
sabia lidar com o dinheiro e falava num português q.b. com forte
pronúncia renteleira.
A Dadinha Manquelitó, a quem os anos e a viuvez tinham mudado o nome
para Ti Felicidade, começou a ter problemas, primeiro, com o enfiar da
agulha, depois, com a certeza dos pontos e o manejar da tesoura. E não
era só a vistinha, essa insuficiência foi sendo minorada com óculos da
Feira dos 28; era também a tremura das mãos, por vezes incontrolável.
Com o tempo, deixou de poder coser e cortar a direito, pelo que o patrão
acabou, com muita pena, por a despedir. Começou a andar aos dias pelas
casas, mas era tal a frequência das peças partidas que nenhuma senhora
solicitava, já, os seus serviços.
A crise económica que assolava o País e a exiguidade dos proventos
–
pensões de viuvez e de invalidez, calculadas a partir de contribuições
diminutas a que os patrões não tinham conseguido fugir
–
não lhe
permitiram manter, por muito tempo, a casita herdada da mãe, tendo de se
alojar num alpendre, situado nas traseiras de um armazém de sal do Canal
de São Roque, cedido pelo Ricardo Algibé a troco da limpeza e guarda das
instalações.
Um dia, Felicidade pensou que se tinha levantado um poucochinho o
cerrado nevoeiro há muito caído sobre si: a Deolinda fazia limpezas, num
bar da Praça do Peixe.
Todavia, dentro de pouco tempo, a névoa voltou a adensar-se. A Linda
começou com desejos, enjoos e vómitos provocados por um ucraniano,
grelhador no predito estabelecimento, anseios e incómodos esses que só
passaram no fim do Verão, com o nascimento da netinha da Felicidade.
O Outono veio seco e o Inverno começou muito frio. Numa noite de
Janeiro, Felicidade estava desesperada. A neta chorava de fome e frio; a
filha, com gripe e cheia de febre, delirava palavras incompreensíveis.
Tentou impedir a entrada do vento glacial, calafetando com trapos e
papéis as frinchas do postigo e a soleira da porta, mas com o avançar da
noite a temperatura continuava a descer. De repente, teve uma ideia
–
no
armazém havia um aquecedor a gás. Foi buscá-lo, contudo, antes de o
acender, pensou em voz alta:
– O que resolvo eu com uma noite de calor? Amanhã, a minha neta não
deixará de ter fome, a minha filha será a mesma desgraçada e eu
continuarei a não poder valer-lhes.
O rebentar de um morteiro lembrou-lhe que era a última noite das Festas
de São Gonçalinho. Olhou para a imagem do Santo e veio-lhe à ideia:
“Ó minha rica menina, meu anjinho, meu mais que tudo! Prometo-te que,
com a ajuda do nosso São Gonçalinho, nunca te deixarei passar pelas
misérias que eu e a pobre da tua mãe temos sofrido.” Sempre tinha
sido uma mulher de palavra. Decidiu, nesse momento, cumprir a sua parte
da promessa, pensando que o estouro do foguete tinha sido um sinal do
seu Santinho. Abriu o gás e, ao ouvir o primeiro estralejar da girândola
final, acendeu o fósforo. O estouro da explosão fundiu-se com o estrondo
do foguetório, fazendo pensar, a quem ouviu, que a Mordomia desse ano se
tinha esmerado, pois não havia memória de tão potente fogo de artifício.
No dia seguinte, à tardinha, na Praça junto aos Arcos, comentavam-se os
dois acontecimentos, gabando a maior parte dos presentes a grandiosidade
dos festejos, especialmente da foguetaria, lamentando alguns a tragédia
que se tinha abatido sobre aquela infeliz família. O Zé Canhoto, quando
se despediu para ir às batatas, disse:
– Tenho, cá para mim, que o São Gonçalinho se sentiria muito mais
honrado se, em vez de terem mandado ao ar tantos milhares de euros,
tivessem utilizado essa barcada de massa para ajudar os pobres do nosso
bairro, evitando desgraças como a de ontem.
– Vai-te embora, água bórica! És um má língua! Põe-te a pau com essas
bocas, porque o São Gonçalinho é vingativo!
Foi a resposta que ouviu, com um sorriso triste de... infelicidade.
15.01.2015 |