Ficções e Recordações - 2015

Prefácio posfaciado

Comecei a construir esta obra muito especialmente pelas razões que a seguir especifico:

problemas de saúde, decorrentes de 78 anos de ADN (Afastamento da Data de Nascimento), retiveram-me em casa mais tempo do que era habitual;

estava a atravessar um período anormalmente longo de abstinência de leitura;

tinha apanhado um grave enfartamento televisivo;

só recentemente  tirara a carta de Internauta de Tráfego Local, pelo que não me poderia aventurar a grandes e complicadas navegações na NET;

assim, para passar o tempo e não deixar enferrujar, ainda mais, os poucos neurónios remanescentes restava-me o recurso à escrita.

 

Aconteceu, porém, que não só a musa  inspiradora da minha recente produção apoética não respondeu aos meus insistentes apelos, mas também  que verifiquei ter-se esgotado o meu material de consulta, com a publicação do livro sobre gralhas e calinadas.

Nesta conformidade, privado do auxílio da deusa, sem apoio documental e já sem idade para semear, cultivar e colher o cereal, cujo grão colocado entre as minhas mós cerebrais lhes permitiria produzir escrita mesmo que, como usualmente, de má qualidade, e farto de olhar para as teclas do computador, onde pensava ler, no intervalo de intermináveis paciências de cartas, umas perguntas irónicas (“Afinal para que é que servimos? É só para mandar mensagens?, é?”), estava quase a chegar à conclusão de que não encontraria um género que me permitisse escrever sem as preditas ajudas, quando, um dia,  me veio de repente à cabeça a seguinte ideia com o seu quê de maligno.

Mas, antes de a explanar, vou abrir um  parêntese. Sendo a minha mãe professora primária, ensinou-me a ler aos quatro anos e, aos cinco, já era um leitor assíduo das aventuras do Capitão Meia Noite e das peripécias cómicas do Serafim e Malacoéco, publicadas no semanário infantil “O Mosquito”, e um  activo consumidor do que me passasse diante dos olhos. Mantive essa minha apetência por quase tudo que fosse legível, em várias línguas, exceptuando a grande maioria dos textos constantes dos livros liceais, com especial predilecção, que ainda hoje mantenho, pela narrativa em prosa. No entanto, tendo produzido, ao longo da minha já longa vida, muitas páginas de texto, nunca me atrevi a escrever uma estória por mais simples que fosse. E o curioso é que cheguei a ser um razoável, prolixo e conhecido contador de anedotas.

Voltando ao penúltimo parágrafo. “E se eu experimentasse inventar e escrever qualquer coisa?”, perguntei ao teclado, no intervalo de duas  mensagens.  Andava eu a espremer as meninges para ver se saía uma ficçãozinha, quando, numa noite do princípio de Janeiro deste ano de 2015, comecei a ouvir o enorme e dispendiosíssimo estardalhaço provocado pelo foguetório do encerramento das Festas de São Gonçalinho. Revoltado por ouvir queimar tanto dinheiro sem proveito para ninguém, a não ser para o fogueteiro, quando o País está em crise e há tanta gente necessitada de ajuda, até mesmo entre os devotos mais acérrimos do Santinho casamenteiro, liguei o computador e construi  o primeiro módulo desta obra que, como não poderia  deixar de ser, intitulei  “Foguetes de São Gonçalinho”. 

A partir daí, o estaleiro entrou numa fase de razoável produção quantitativa, mas apercebi-me, a determinado momento, que estava a mudar de estilo arquitectónico, pois “O Senhor Vasconcelos” e “Caça e Pesca” eram relatos de histórias reais, logo não se enquadravam no género ficção. Assim, restavam-me  duas opções: ou procedia à sua demolição – ou seja, apagava-os –, ou avançava para a modalidade de propriedade horizontal, com dois artigos matriciais, destinando o rés-do-chão e o 1º andar às Ficções e afectando o 2º andar, recuado e assutado, às Recordações. Porque me ensinaram a ser poupado e não desperdiçar, optei pela última hipótese.

Passados seis meses, tirados os andaimes, instaladas as infra-estruturas e estando já em estado aceitável as intermináveis pinturas e outros acabamentos, entendeu o mediador Henrique J. C. de Oliveira que tinha chegado a altura de pôr a obra no mercado da leitura, na minha página do espaço “Aveiro e Cultura”.

Durante as chamadas férias estivais, na Costa Nova – como se fosse possível ter férias quem não trabalha? –, para ocupar os fins de manhã e princípios de tarde e lembrando-me de uma sugestão do meu amigo Jeremias Bandarra – “Tu que passaste por tantas coisas, porque é que não as pões no papel?” –, resolvi-me a ampliar e remodelar o andar reservado às Recordações, obras estas que já me andavam, talvez, na cabeça, se bem que  a nível subliminar, desde a fase de projecto, porquanto tinha previsto alicerces, pilares e demais estruturas que pudessem vir a suportar este aumento de carga.

Entrando na fase referente ao pouco usual adjectivo que consta do título deste prólogo, constatei, após várias leituras atentas, o seguinte.

Começando pelo fim. Os últimos capítulos poderão ser considerados  demasiadamente laudatórios. Mas, tal como se passa na auto-análise, onde o analista é influenciado  pelo  analisado, também, na auto-biografia, a escrita do biógrafo tende, normalmente, a beneficiar o protagonista. Ou, apresentando uma justificação menos filosófica e mais sincera: se eu não me gabar agora, quem é que o irá fazer mais tarde?    

No que respeita à primeira parte, apesar de não ser muito criativo e de ser de prosa curta e pouco enfeitada –  estilo este que decorre da minha tendência para a síntese que tão útil me tem sido ao longo da vida, excepto, quando estudante universitário de Línguas e Literaturas tinha de apresentar trabalhos para professores para quem o número de páginas  era relevante –, já posso afirmar que produzi ficção, ultrapassando esta minha fronteira da escrita. No entanto, o antigo supracitado estudante, treinado para a leitura crítica e exigente, não pode deixar de constatar que o trabalho do novel e incipiente escritor de contos –  onde, por vezes, a intertextualidade é por demais evidente, pelo que a originalidade estará mais na forma como se conta do que no próprio conteúdo –   não merece mais do  que um medíocre, só não sendo um mau, na medida em que o predito crítico, tendo, também, formação filológica, entende que a língua portuguesa não foi assim tão mal tratada. Mesmo assim, direi, para terminar, não só que me deu muito prazer elaborar e escrever estas estorietas que poderão vir a ser lidas na NET e numa edição, para familiares e amigos, de uma vintena de exemplares, mas também que cada uma delas,  para mim, vale mais do que um romance muito bem congeminado, com pretensões ao Nobel, mas que só tenha tido existência na cabeça do seu potencial autor.

26.05.2015 e 05.09.2015