Comecei
a construir esta obra muito especialmente pelas razões que a seguir
especifico:
●
problemas de saúde, decorrentes de 78 anos de ADN (Afastamento da
Data de Nascimento), retiveram-me em casa mais tempo do que era
habitual;
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estava a atravessar um período anormalmente longo de abstinência de
leitura;
●
tinha apanhado um grave enfartamento televisivo;
●
só recentemente tirara a carta de Internauta de Tráfego Local, pelo que
não me poderia aventurar a grandes e complicadas navegações na NET;
●
assim, para passar o tempo e não deixar enferrujar, ainda mais, os
poucos neurónios remanescentes restava-me o recurso à escrita.
Aconteceu, porém, que não só a musa inspiradora da minha recente
produção apoética não respondeu aos meus insistentes apelos, mas também
que verifiquei ter-se esgotado o meu material de consulta, com a
publicação do livro sobre gralhas e calinadas.
Nesta conformidade, privado do auxílio da deusa, sem apoio documental e
já sem idade para semear, cultivar e colher o cereal, cujo grão colocado
entre as minhas mós cerebrais lhes permitiria produzir escrita mesmo
que, como usualmente, de má qualidade, e farto de olhar para as teclas
do computador, onde pensava ler, no intervalo de intermináveis
paciências de cartas, umas perguntas irónicas (“Afinal para que
é que servimos? É só para mandar mensagens?, é?”), estava quase a chegar à
conclusão de que não encontraria um género que me permitisse escrever
sem as preditas ajudas, quando, um dia, me veio de repente à cabeça a
seguinte ideia com o seu quê de maligno.
Mas, antes de a explanar, vou abrir um parêntese. Sendo a minha mãe
professora primária, ensinou-me a ler aos quatro anos e, aos cinco, já era
um leitor assíduo das aventuras do Capitão Meia Noite e das peripécias
cómicas do Serafim e Malacoéco, publicadas no semanário infantil “O
Mosquito”, e um activo consumidor do que me passasse diante dos olhos.
Mantive essa minha apetência por quase tudo que fosse legível, em várias
línguas, exceptuando a grande maioria dos textos constantes dos livros
liceais, com especial predilecção, que ainda hoje mantenho, pela
narrativa em prosa. No entanto, tendo produzido, ao longo da minha já
longa vida, muitas páginas de texto, nunca me atrevi a escrever uma
estória por mais simples que fosse. E o curioso é que cheguei a ser um
razoável, prolixo e conhecido contador de anedotas.
Voltando ao penúltimo parágrafo. “E se eu experimentasse inventar e
escrever qualquer coisa?”, perguntei ao teclado, no intervalo de
duas mensagens. Andava eu a espremer as meninges para ver se saía uma
ficçãozinha, quando, numa noite do princípio de Janeiro deste ano de
2015, comecei a ouvir o enorme e dispendiosíssimo estardalhaço provocado
pelo foguetório do encerramento das Festas de São Gonçalinho. Revoltado
por ouvir queimar tanto dinheiro sem proveito para ninguém, a não ser
para o fogueteiro, quando o País está em crise e há tanta gente
necessitada de ajuda, até mesmo entre os devotos mais acérrimos do
Santinho casamenteiro, liguei o computador e construi o primeiro módulo
desta obra que, como não poderia deixar de ser, intitulei “Foguetes de
São Gonçalinho”.
A partir daí, o estaleiro entrou numa fase de razoável produção
quantitativa, mas apercebi-me, a determinado momento, que estava a mudar
de estilo arquitectónico, pois “O Senhor Vasconcelos” e “Caça e Pesca”
eram relatos de histórias reais, logo não se enquadravam no género
ficção. Assim, restavam-me duas opções: ou procedia à sua demolição –
ou seja, apagava-os –, ou avançava para a modalidade de propriedade
horizontal, com dois artigos matriciais, destinando o rés-do-chão e o 1º
andar às Ficções e afectando o 2º andar, recuado e assutado, às
Recordações. Porque me ensinaram a ser poupado e não desperdiçar,
optei pela última hipótese.
Passados seis meses, tirados os andaimes, instaladas as infra-estruturas
e estando já em estado aceitável as intermináveis pinturas e outros
acabamentos, entendeu o mediador Henrique J. C. de Oliveira que tinha
chegado a altura de pôr a obra no mercado da leitura, na minha página do
espaço “Aveiro e Cultura”.
Durante as chamadas férias estivais, na Costa Nova – como se fosse
possível ter férias quem não trabalha? –, para ocupar os fins de manhã e
princípios de tarde e lembrando-me de uma sugestão do meu amigo Jeremias
Bandarra – “Tu que passaste por tantas coisas, porque é que não as
pões no papel?” –, resolvi-me a ampliar e remodelar o andar
reservado às Recordações, obras estas que já me andavam, talvez,
na cabeça, se bem que a nível subliminar, desde a fase de projecto,
porquanto tinha previsto alicerces, pilares e demais estruturas que
pudessem vir a suportar este aumento de carga.
Entrando na fase referente ao pouco usual adjectivo que consta do título
deste prólogo, constatei, após várias leituras atentas, o seguinte.
Começando pelo fim. Os últimos capítulos poderão ser considerados
demasiadamente laudatórios. Mas, tal como se passa na auto-análise, onde
o analista é influenciado pelo analisado, também, na auto-biografia, a
escrita do biógrafo tende, normalmente, a beneficiar o protagonista. Ou,
apresentando uma justificação menos filosófica e mais sincera: se eu não
me gabar agora, quem é que o irá fazer mais tarde?
No que respeita à primeira parte, apesar de não ser muito criativo e de
ser de prosa curta e pouco enfeitada – estilo este que decorre da minha
tendência para a síntese que tão útil me tem sido ao longo da vida,
excepto, quando estudante universitário de Línguas e Literaturas tinha
de apresentar trabalhos para professores para quem o número de páginas
era relevante –, já posso afirmar que produzi ficção, ultrapassando esta
minha fronteira da escrita. No entanto, o antigo supracitado estudante,
treinado para a leitura crítica e exigente, não pode deixar de constatar
que o trabalho do novel e incipiente escritor de contos – onde, por
vezes, a intertextualidade é por demais evidente, pelo que a
originalidade estará mais na forma como se conta do que no próprio
conteúdo – não merece mais do que um medíocre, só não sendo um
mau, na medida em que o predito crítico, tendo, também, formação
filológica, entende que a língua portuguesa não foi assim tão mal
tratada. Mesmo assim, direi, para terminar, não só que me deu muito
prazer elaborar e escrever estas estorietas que poderão vir a ser lidas
na NET e numa edição, para familiares e amigos, de uma vintena de
exemplares, mas também que cada uma delas, para mim, vale mais do que
um romance muito bem congeminado, com pretensões ao Nobel, mas que só
tenha tido existência na cabeça do seu potencial autor.
26.05.2015
e
05.09.2015 |