Lancha Santa-Joana e sua viagem cómico-marítima

Nos anos setenta, os Serviços Municipais de Turismo de Aveiro beneficiaram de grandes e importantes transformações e actualizações. Foram transferidos do n.º 95 da av. Dr. Lourenço Peixinho (perto do Automóvel Clube de Portugal), onde estiveram desde as Festas do Milenário, em1959 – a localização era muito má, porque, nada havendo que  os atraísse, raramente lá passavam turistas –, para o Edifício Fernando Távora, bem no centro da cidade. Foi admitido, pela primeira vez, pessoal de recepção, falando francês e inglês e com conhecimentos sobre a cidade e a região. Começou a participar-se nas grandes Feiras Internacionais de Turismo. Para além da FIL, em Lisboa, nas dos países potencialmente emissores de turistas: Madrid, Barcelona, Bilbau, Paris, Montreux, Berlim,  Londres e Milão. E iniciou-se a colaboração com os hoteleiros, no que concerne às visitas, no final e princípio do ano, aos agentes de viagens espanhóis da Galiza (Vigo, Pontevedra, Santiago de Compostela, Corunha, Ourense e Lugo) e ao longo da Estrada Europeia 80 (Salamanca, Valladolid, Burgos e San Sebastian).

Lancha Santa Joana, com lotação para 80 passageiros. Quando deixou de ser utilizada para passeios turísticos, passou a fazer o transporte de passageiros entre São Jacinto e o Forte da Barra.

Considerando as novas circunstâncias, tentou-se efectuar passeios na Ria, sem ser da maneira artesanal que até aí se praticava, a qual possibilitava que uma pessoa pudesse reservar, gratuitamente, os barcos para todos os fins de semana do verão e que, depois, fosse desistindo sem qualquer penalização financeira. E, por incrível que pareça, havia quem o fizesse com uma das lanchas, em muitos dos sábados de Julho e Agosto. Assim, a lancha maior (CITA 1), com lotação para vinte e sete pessoas, passou a sair do Canal Central, durante a época alta, todos os dias, com destino à Pousada, onde chegava à hora do almoço. Antes da partida, os turistas assistiam, na cave do edifício, à projecção de um diaporama que foi substituído por um filme também sobre a região. Podiam ainda ver os manequins com trajes regionais (Tricana de 1860, Salineira, Camponesa de São Bernardo, Fogueteiro com Gabão e Marnoto) e o artesanato cerâmico exposto em dois grandes armários. Já não me recordo do preço do bilhete, mas lembro-me de que o aluguer total desse barco, para ir e vir a São Jacinto, era 200 escudos (€ 1); portanto, para ir à Pousada, em regime de aluguer, deveria ser 250 escudos (€ 1,25); logo, o bilhete para o circuito em causa não deveria andar muito longe de 10 escudos ((€ 0,05).

Cedo, porém, se concluiu que não era a maneira ideal de tirar o melhor proveito do nosso produto de eleição: a Ria. Os turistas vinham, muitas vezes, desiludidos, porque não tinham visto muito do que lhes tinha sido mostrado no filme, dado que, por exemplo, os moliceiros já se viam obrigados a trabalhar mais para norte, porquanto as obras do porto  tinham provocado a extinção das praias de moliço de fronte da Pousada, na medida em que as correntes de enchente, sendo mais fortes, as tinham assoreado com areia, e o maior teor de salinidade da água tinha impossibilitado a existência do moliço, vegetação de águas  salobras. Todavia, a lancha em causa não poderia ir muito mais para norte, com qualquer maré, porque calava quase metro e meio, devido à peça de protecção do hélice. Por outro lado, no que respeita aos agentes de viagens a quem propúnhamos a comercialização do circuito, surgia um grande e insuperável problema: uma camioneta  transportava mais de cinquenta pessoas e as nossas duas lanchas maiores tinham uma lotação global só de quarenta e sete passageiros. Isto para não falar de outros inconvenientes: por exemplo, para fazer sair essas duas lanchas eram necessários cinco tripulantes, dois timoneiros, dois ajudantes de manobra e um mecânico, e só os dois primeiros é que pertenciam ao quadro da Comissão Municipal de Turismo, os outros vinham dos Armazéns Gerais  e  nem sempre estavam disponíveis; os assentos da lancha de 20 lugares (CITA 2) eram virados de costas para as janelas e na embarcação não havia instalações sanitárias; etc. etc. etc.

Nesta conformidade, foi deliberado fazer construir uma embarcação capaz de viabilizar um circuito comercializado por operadores nacionais e estrangeiros e que pudesse ir e vir, com qualquer maré, até à Torreira, destino este escolhido pelas seguintes razões: era um local, onde ainda se  podia frequentemente ver moliceiros a apanhar moliço; pelo caminho, haveria muitas hipóteses de encontrar pescadores na faina; na praia, estava um barco de xávega, o “Óscar Miguel”, do patrão e arrais João da Calada, embarcação em que eu acompanhei, devidamente autorizado pela Capitania, nos anos 80, uma equipa de televisão francesa, numa ida ao mar; e com um pouco de sorte, até se poderia assistir a um lanço deste “2 remos”, que já foi queimado, e ver os bois a alar as redes na praia. Outra vantagem da Torreira, destino do circuito que acabou por se realizar,  com grande êxito, durante anos, é que existiam vários restaurantes e para vários os preços.

A execução do projecto da lancha foi entregue a um perito arqueador naval do Ministério da Marinha, chamado, se a memória me não falha, Torcato Araújo da Rocha, que se deslocava frequentemente a Aveiro, em serviço, e que eu, por acaso, conhecia, dado que, quando cá vinha, frequentava o mesmo café que eu, acompanhando um comum amigo. A decoração de interiores ficou a cargo do “designer” aveirense Jorge Trindade. Fiz algumas sugestões, ditadas pela experiência que tinha de acompanhar turistas na Ria e pelo conhecimento da “carreira” Aveiro-Torreira, as quais foram aproveitadas: calado máximo de 0,60 m, dois motores comandados à distância, lotação bastante maior do que a de um autocarro, grande visibilidade para os ocupantes, casas de banho para os dois sexos, barco totalmente cabinado, instalação sonora e bar.

Vou entrar, agora, no terceiro e mais apelativo assunto referido no título deste artigo. A lancha, que veio a ter o nome de “Santa Joana”, foi construída nos Olivais Sul, em Lisboa, e, dadas as suas dimensões, características e equipamento, poderia vir para Aveiro pelos próprios meios. Acontecia que, na altura, o Presidente da Comissão Municipal de Turismo era o oficial náutico, capitão Luís António Moreira Tavares, que fez questão de ser ele a trazer o barco. Convidou o seu colega e amigo Manuel Craveiro Guerra para fazer parte da tripulação, completada com um maquinista que conheciam dos tempos em que tinham andado ao bacalhau. Posso dizer, sem receio de ser desmentido, que nunca nenhuma lancha de turismo teve tripulantes com esta qualidade: dois capitães que não só comandaram bacalhoeiros mais de três décadas, mas também andaram largos anos em navios de comércio no norte da Europa e no Mediterrâneo e um primeiro maquinista com  currículo semelhante; só se fosse num iate de um rei do petróleo! Fui convidado para participar como passageiro, mas não aceitei, porque, por um lado, não sabia se enjoava, dado que a minha experiência marítima se limitava a, quando estudante liceal, ter ido, num rebocador, buscar um navio ao largo da Barra e, por outro lado, sempre tive a convicção, apesar de já ter feito dois cruzeiros na Grécia, sem ter sentido nenhum constrangimento, que se o ser humano tivesse sido programado para se deslocar na água, em locais em que não pudesse atingir a terra a nado, teria umas guelras acopladas ao sistema respiratório. Os meus dois amigos lobos-do-mar tentaram convencer-me, dizendo-me que a viagem só se faria com mar calmo, que a lancha era inafundável, mas eu respondi-lhes que os esperaria na Meia Laranja da Barra, para fazer  o resto da viagem.

Após terem sido efectuados os necessários registos na Capitania do Porto de Lisboa e realizadas as provas de mar, decidiram partir ao nascer do sol, para poderem fazer as 133 milhas, até ao porto de Aveiro, durante o dia, na medida em que a embarcação não estava equipada para navegação marítima nocturna. Assim foi feito e, quando vinham ao Bugio, o capitão Luís António, que estava ao leme, ouviu um barulho estranho e pediu ao maquinista para ir ver se algo se tinha passado com os motores. A resposta foi de que as duas máquinas estavam a trabalhar normalmente. Tinham resolvido navegar com terra à vista, mas tal não era possível, porquanto tinha caído um pesado nevoeiro e a visibilidade era muito reduzida. Ao fim de umas horas, o capitão Guerra estranhou ainda não terem chegado ao Cabo Raso e chamou a atenção do colega para tal facto. O capitão Luís António retorquiu que também estava a estranhar, mas que a agulha apontava o rumo pretendido. Navegaram mais uma hora e, como o Cabo Raso continuava a não surgir, decidiram rumar 90 graus para leste. Mas, ao fim de duas horas, não tinham conseguido, tal como o gajeiro da Nau Catrineta, “ver areias de Portugal”. Acabaram por encontrar, no meio do nevoeiro, um barco de pesca artesanal, a quem perguntaram “qual era proa”, ou seja, para onde estava virada a proa da embarcação. Viram confirmadas as suas mais que suspeitas: a bússola tinha um desvio de muitos graus oeste, pelo que, à partida de Lisboa, tinham ido pelo mar fora direitos à Terra Nova. Veio-se a saber que a avaria tinha sido provocada por um curto-circuito produzido por um dos parafusos da moldura da bússola e que tinha sido esse o barulho ouvido à saída da Barra. Porque já era tarde, entraram em Peniche e só vieram no outro dia para Aveiro, numa viagem sem nevoeiro, nem problemas, nem história.

Eu lá estive à espera, na Meia Laranja, até começar a escurecer. Esta peripécia permitiu-me brincar com esses grandes profissionais, excelentes pessoas e bons amigos de quem tenho saudades, dizendo-lhes que isso da bússola tinha sido uma grande estória, porque a verdade, para mim, era outra: os capitães de bacalhau só conhecem um rumo à saída da barra de Lisboa: o da Terra Nova.

29 de Fevereiro de 2020

Diamantino Dias

 

29-02-2020