JOHN OTTIS, O SOBE E DESCE

John Ottis nasceu em Farmington, Connecticut, USA, mas, ainda jovem, emigrou para a Europa, para uma terra chamada «Cidade das Salinas», onde tem vivido nos últimos quarenta e seis anos.

Sendo especialista em transportes e acessibilidades, trabalhou, desde sempre, para a Entidade de Administração Local (EAL), num edifício onde estavam instalados os Serviços Culturais, a Biblioteca e um Salão de Reuniões Multifuncional.

Ao longo dos anos, John conheceu muitas pessoas, desde a gente humilde da terra até às mais altas entidades religiosas, militares e civis do País; e viu e ouviu muitas e variadas coisas, algumas extremamente importantes, cuja divulgação poderia ter causado verdadeiros cataclismos sociais, económicos e políticos e não só a nível local. Mas John foi sempre de uma discrição sem mácula.

Por vezes, foi, também, boé da fixe, com alguns casais, principalmente, de estudantes do Liceu vizinho, que o alcunharam de Sobe e Desce, permitindo, distraidamente, breves paragens, entre andares, para lhes propiciar rápidas, mas gostosas e intensas curtições.

Funcionário administrativo da velha guarda, trabalhou, sempre, sem olhar a horários e nunca gozou férias, só folgando, nos raros domingos e feriados em que não se realizavam reuniões da mais variada índole – culturais, cívicas ou políticas --, no predito Salão. Nunca participou em greves, nem fez exigências de nenhuma espécie; alimentação e assistência era tudo do que necessitava para cumprir a sua função.

Há uns tempos atrás, não se sentiu bem; o primeiro sintoma foi uma ligeira falta de vista, mas, mesmo assim, disse para com os seus botões: “Aguenta-te, Johnny, há quem precise de ti”. E continuou a trabalhar, mesmo às escuras, sem ver as pessoas que transportava, até ter sido reparada a anomalia.

No entanto, um problema mais grave veio a ser, mais tarde, diagnosticado: teria que ser operado para lhe enxertarem uma prótese. Como não seria a primeira vez, não ficou assustado. Todavia, durante essa intervenção, ouviu uma conversa e, essa sim, preocupou-o seriamente: o edifício onde trabalhava estaria prestes a ser sujeito a profundas remodelações; e o John Sobe e Desce corria o risco de vir a ser substituído por uma trabalhadora mais nova, saudável e eficaz, chamada Escada Rolante.

Perante tais notícias que, ao princípio, não passavam de meras hipóteses, mas que, com o andar do tempo, foram ganhando o estatuto de certezas, John ficou extremamente zangado com a Administração, porquanto entendeu que estavam a ser injustos e ingratos para com ele, na medida em que, ao longo de quase meio século, tinha trabalhado muito e para além do que lhe seria normalmente exigível. Jurou vingar-se. Depois de muito pensar sobre o assunto, ao fim de alguns dias, fez um prisioneiro entre o 1º e o 2º andar. Foi enviada um Equipa de Intervenção Especial para libertar o refém, o que foi conseguido, mau grado a resistência tenaz, passiva e obstinada de John, mas só após porfiados esforços.

Depois deste acontecimento, o Administrador, considerando que John se poderia tornar perigoso para a comunidade, quiçá, um assassino, e aproveitando a ocasião para dar um exemplo a todos os servidores da EAL, decidiu punir, severamente, o subversivo funcionário, condenando-o a uma pena de seis meses de coma eléctrico.

Acontece que, presentemente, o supracitado edifício alberga uma “Academia Sénior”, cujos associados – sexagenários, septuagenários e octogenários – andam muito tristes, já que gostam muito do seu Joãozinho que, até então, os tinha ajudado, diária e eficientemente, a deslocarem-se para as salas, onde frequentam aulas, nos 1º, 2º e 3º andares, fazendo-os esquecerem-se das suas artroses, tendinites e outras maleitas congéneres.

Nesta conformidade, esta “Academia” tornou-se curiosa, indesejável, involuntária e, paradoxalmente, inválido-fóbica, na medida em que pessoas com problemas nos membros inferiores não podem participar nas várias actividades académicas, já que a substituta do velho João não tem sido a anunciada, nova e eficaz Escada Rolante, mas a antiga, amaldiçoada, assassina, assustadora, aterrorizadora, cansativa, demoníaca, difícil, estuporada, extensa, horrenda, infernal, infindável, maquiavélica, mastodôntica, medonha, monstruosa, odiosa, pavorosa, repugnante, temerosa, terrífica, tremenda... e filha de uma grande arquitecta

escadaria

 

Moralidade desta estória

Quando a Administração não quer colaborar,

A vida não é fácil para quem não pode trepar.
 

      Mote para uma canção (a)

 

Tudo o que precisas é de manutenção,

Meu velho Ottis e meu amigo João!

 

(a) A receita proveniente dos mais que possíveis direitos de autor será destinada a subsidiar o pagamento dos encargos com a manutenção do funcionário John Ottis, o Sobe e Desce, para a malta, e Joãozinho amigo, para os associados da Academia.

 

NOTA DO AUTOR: Quaisquer semelhanças entre acontecimentos ou personagens escritos nesta mini-ficção e a vida real são profundamente intencionais.

7 de Janeiro de 2016

Diamantino Dias

 

07-01-2016