VEIO
parar às minhas mãos, não sei já como, um caderno manuscrito de 198
páginas de papel antigo,
pautado a água, com as dimensões de 145mm ao alto e 95mm de largura, com
os dizeres seguintes
na 1.ª página, a servir-lhe de rosto: − 1.º Caderno | Apontamentos de Viagem
| 13 de Abril de 1860 | Gerardo Pery | Beira alta e Beira baixa |. Apenas estão utilizadas 116
páginas, com cursivo miúdo, bem rasgado e corrente.
A viagem abrange o percurso de Lisboa, pelas Beiras,
até Proença-a-Nova. Ao cimo de cada página ficou apontado o nome do
principal acidente populacional ou corográfico, de que nela se fala. Por esse índice peregrinante
se observa a passagem do Autor: (3 e 4) Serra do Dianteiro,
(5 e 6) Oliveira do Bairro, (7 e 8) Palhaça, (9 a 15) Vagos,
(16 a 20) Aveiro, (21) Albergaria [Velha], (22 e 23) Oliveira
de Azeméis, (24) Sever, (25) Serra da Freita, (26) Serra de
Cambra, (27) Serra da Gralheira, (28) Pecegueiro, (29) Albergaria Velha,
(30) Marnel, (31) Águeda, (32) Serra das Talhadas, (33) Vouzela, (34) Banho [S. Pedra do Sul], (35
a 39)
Viseu, (40 a 46) Mangualde, (47) Penalva do Castello, (48)
Chãos, (49) Fornos d'Algodres, (50 a 52) Gouvêa, (53 e 54)
Serra da Estrella = alto da Santinha, (55) Folgosinho, (56) Caverna de
Viriato, (57) Linhares, (58 e 59) Rio Mondego,
(60 a 62) Guarda, (63) Jarmello, (64 e 65) Belmonte, (66
a 72) Manteigas, (73 a 88) Serra da Estrella, (89) Cêa, (90) Sabugueiro,
(91) Carregal, (92) Tondella, (93) Valle de Besteiros, (94 e 95) Serra do Caramullo,
(96) St.ª Combadão,
(97) Arganil, (98 e 99) Góes, (100 e 101) Pampilhosa, (102)
Fajão, (103 a 105) Fundão, (105 a 111) Castello Branco,
(112) Villa Velha de Ródão, (113 a l15) Pórtas de Rodão, (116) Proença a
Nova. Por estas indicações se vê quantas
diversões e reviravoltas o autor dos apontamentos fez, o
/
268 / que não devemos estranhar, se notarmos a sua qualidade técnica de topógrafo.
Interessa apenas a transcrição da parte que abrange as terras da região
de Aveiro até às entradas na Beira Alta em direcção a Viseu, por
Vouzela e S. Pedro do Sul
{Págs. 2 a 23), zona comparada às «encostas da serra de Cintra».
Oficial do Exército, GERARDO PERY, com A. J. Pery
e C. da Costa, levantou de 1860 a 1865 a Carta Geographica de Portugal,
publicada por ordem de Sua Magestade, sob a Direcção do Conselheiro Filippe Folque,
«General de Brigada graduado e Director do Instituto Geographico».
Foi, assim, no começo
deste período de elaboração da Carta, que GERARDO PERY fez a sua viagem
de estudo e tomou as
notas destes «Apontamentos». Reconhecem-se nelas as observações do
geógrafo (acidentes geográficos, geológicos, mineralógicos, etc.), no
meio de referências, por vezes poéticas «véo branco de uma casta donzella»,
ao avistar a Serra da
Estrela com neve; «lençol branco extendido na serra [da FreIta]»,
ante a cascata do Caima), à paisagem e às culturas agrícolas; apreciava
os «valles amenos e deliciosos», a envoltura do arvoredo no panorama,
como a de Montemor-o-Velho, com as árvores debruçadas no caminho do Mondego,
a verem passar o belo rio; fez reparos de arte na arquitectura dos
monumentos, nos quadros das igrejas, nas riquezas artísticas destas, e
não desprezou curiosas e pitorescas coisas de etnografia e tradições
locais.
Não agradarão, por certo, algumas das observações
à importância da vida e condições de povoações visitadas, sobretudo as
críticas a Aveiro, Ílhavo, Ovar; é bom lembrar que estas visitas foram feitas em 1860, isto é, há 89 anos, e, se compararmos o que Gerardo Pery afirmou, em realidades de então,
com o que essas terras hoje são, nas realidades actuais, concluir-se-á,
sem dúvida, pela verdade do seu aproveitamento e do progresso
resultante.
*
Parti de Lisboa pª Coimbra a 13 d'Abril, na malla-posta; nesta tão cantada terra, estive até ao fim deste mez.
Descreverei Coimbra e as suas bellesas, noutra occasiaõ; agora começarei
a apontar unicamte o q vi depois q sahi d'alli.
D'alli foi trabalhar á serra do Dianteiro, que fica duas legoas pª Nordeste de Coimbra; esta serra pertence ao
mº levantamento
do Bussaco, assim como todas as outras serras
/
269 /
q se estendem até Poiares. Duas legoas pª o poente, fica
Penacova, jto ao Mondego, tendo ao N. os grandes penedos
d' Albarqueira; Lorvão está escondido n'um profundo valle, com o seu
famoso mosteiro; a antiga villa esconde a sua
decadencia, por isso q só se vê qdo se está ao pé. Na baixa
desta serra pª o poente, n'um extenso valle se achão algas, pequenas
povoações, entre ellas a fregia da Figra.
É atravessada esta serra pIa antiga estrada de Coimbra a
Viseu, q é o caminho mais curto, mas pessimo, porque até
Mortagoa passa por serras asperas, e terreno mto cortado.
Na encosta O. da serra está assente a povoação do Dianteiro,
Roxo, &c, todas ellas pobres e insignificantes. Esta mª encosta,
é quasi toda coberta de pinhaes.
Do alto desta serra gosa-se uma vista excellente, descobrindo-se em dias claros, toda a costa até
Ovar, e pª baixo
da Figueira. Pª o nascente estende-se a vista até á serra
d' Estrella, que vi coberta de neve na parte mais elevada,
scintillando aos raios do sol como o véo branco de uma casta
donzella. Mais proximo, observa-se um terreno mto accidentado,
formado de cabeços arredondados, o q denota formações schistosas, e q. se assemelha a
um mar encapellado. Pª S.E vê-se o alto Pico de Trevim na serra da Lousãa, que é a mª
elevada das serras proximas da costa. Ao poente,
gosa-se a vista de passaro, o valle do Mondego até Montemór-Velho, bordado por duas fileiras de povoações, como
que formando alas pª verem passar esse bello rio. Ao N. o
Bussaco e mais longe o Caramullo limitam o horisonte.Do
Dianteiro até Coimbra, a estrada passa por terrenos mto ferteis e aprasiveis, por valles amenos e deliciosos, onde se
vêem escondidas, no meio do arvoredo numerosas habitações. = Sahi de Coimbra pª Vagos em
1 de Maio. Fiquei
essa noite em Oliveira de Bairro, em casa do secretario da
Administração. A estrada até á Mealhada atravessa um terreno cheio de
pinhaes, areento, e só proprio pª tal cultura.
Da Mealhada até á Ponte da Pedra, segue o Valle do Certima, Rio que tem a sua origem na serra do Bussaco. Um
pouco abaixo da Ponte da Pedra, aparta-se a estrada pª Aveiro. Oliveira de Bairro, está situada n'uma pequena elevação,
a 1/2 legoa do Certima. Toda esta porção de terreno, desde
Olivª, até Murtedo, é denominada a Bairrada, e produz principalmente um vinho de excellente qualidade, e que é muito
procurado. Nestes ultimos annos tem havido grande falta,
pois que o oidium não tem poupado aquelles sitios. Tem
duas ou trez casas abastadas, a villa d'Olivª. D'Oliveira
até á costa, só se vêem pinhaes éxtenços, seguindo pª o Sul
até á Figueira.
Fui aqui perfeitamente tratado, pelo menos, de boa
vontade. No dia seguinte fui ficar à Palhaça. É um lugar que
/
270 / fica na antiga estrada de Coimbra a Aveiro; fui ficar a uma
estalagem soffrivel; mas no dia seguinte pela manhã, foi procurar-me um sugeito, que me obrigou a ir almoçar com elle. Era o Morgado
de Monternór-Velho, Raposo. Soube depois que era doido. Foi-me
mostrar as suas fasendas, e lá me
contou uma cousa que a ser verdadeira, é bastante notavel. Disse-me elle,
que tinha observado nos annos anteriores
n'um valle, que corria pª o Poente, e onde se cultivava arros até certa altura; que [n] umas vinhas que estavam na encosta do Sul,
se desenvolvia a molestia com mta mais força, na parte
da vinha q ficava proxima aos arrosaes; em qto na outra porção, o mal
era mto menor, a p[on]to de escaparem mtas cêpas. A linha N.S que
passasse pela extremidade superior dos arrosaes, era a linha divisoria,
entre a vinha atacada e a sãa.
D'aqui se pode concluir que o vento predominante, N, impellindo as
emanações putridas dos arrosaes sobre as vinhas, auxiliava ou augmentava a
causa do mal. Talvez desta simples observação, se colhessem gdes
resultados, se fosse repetida em grande escala. − Os arredores da Palhaça são mto
ferteis, e abundam em agoa. É um terreno areento e mto solto, mto
proprio pª certas culturas, especialmente pª hortas. − No dia seguinte
marchei pª Vagos, onde estive até ao fim do mez de Maio. Fomos aIli
mto obsequiados, pelo Duarte Vidal, e pIo Antº Maximo. Vagos está
situada, sobre uma pequena elevação do terreno que borda a ria de Vagos.
A ria é navegavel até meia legua a cima da Villa, onde chamão o lugar do Bóco. Na parte opposta e fronteira a Vagos está
a Villa de Sousa. Na mma margem direita da ria, e 400m abaixo de Vagos está a fabrica da Vista-Alegre. Esta fabrica pertence aos Ferreira Pintos, e os seus productos são porcelanas
e vidros. É já bastante antiga, mas agora está em decadencia.
Tem uma bella Igreja, onde se acha a notar a capella-mór,
toda de marmore, e de elegante architectura.
O terreno em torno de Vagos é
mto abundante de pyrite de ferro, que
decompondo-se e transformando-se em carbonato, se muda de novo em
oxydo de ferro, que apparece nas
areas onde a agua se acha depositada pr algum tempo. Perto de
Mira se
achou um veio de lPyrite e alguma lignite, mas de nenhuma importancia:
−Todo este terreno é dé areia que à força de mto trabalho se tem podido
converter em terra cultivavel. Todos os annos vão conquistando um pedaço
d'arêa ás dunas que s'extendem até ao mar na largura de 1 a 1/2 légoa. A
principal producção é centeio milho e batata. Todo este terreno até
Mira, é povoadissimo; e pª se sustentar esta gente, é neccessario tirarem á força de trabalho, um parco producto, d'uma
terra ingrata. Um beIlo exemplo, do que pode o trabalbo, é a Gafanha. É uma povoação, composta de casas espalhadas desde a barra d'Aveiro, até á foz da ria de Vagos.
/
271 /
Ha 70 annos, apenas havia n'aquelle sitio uma ou duas casas de
pescadores, ou mais propriamente, palheiros ou casas de
madeira, aonde se recolhem na epoca das pescarias. Semeou-se
primeiro pinhal, n'aquelles sitios que nem uma unica planta produziaõ. O
pinhal segurou as arêas; os primitivos habitadores, foram cultivando
alguma porção de terreno, que estrumavão copiosamente com as plantas
maritimas de q abunda a ria e a que chamão moliços; e isso mostrou a
possibilidade de se cultivar aquelIa immensa extenção d'areal. Além da
má qualidade de terreno q. esta pobre gente tem de cultivar, accresce
uma difficuldade que se poderia remediar
com alguma despesa: e é q. os ventos impelIem as arêas pª as terras
cultivadas, neutralisando deste modo o trabalho empregado. Semeando
penisco e matto, por conta das Camaras, seria um beneficio geral que se
faria. − A navegação da
ria de Vagos, é só feita por barcos pequenos de quilha chata; mas
antigamente dava mais fundo. Ha memoria do sitio onde se construiam
embarcaçoes grandes. Meia legoa pª N.O de Vagos, ha uma CapelIa dedicada
a N. Snrª. Ao poente da CapelIa, vêem-se em pé umas paredes antigas, q.
a tradição diz ser a casa d'um Eremita, ou Capella onde antigamente
estava a Snrª. Diz a tradicção, q. deu á costa jto áquelle ponto, um
navio estrangeiro; e q. o Capitão d'elle se salvára abraçado áquelIa
imagem. Fez depois voto de levantar alli uma Capella á Snrª q. tam
milagrosamente o salvou, e viver como Eremita, na mª CapelIa. É porem de
notar q. a Imagem é de pedra; o q. augmenta o milagre, porq. parece q.
em vez de o salvar, o devia perder: depois o Eremita morreu; e passados
tempos um fidalgo, não sei em q. apuros prometteo faser uma capella nova
pª a Senhora. Veio pª esse fim com um criado, caminhando sempre a
direito, e qdo chegou á ria, passou como se tal não existisse, e o
criado teve de ir rodear 2 legoas pª a poder passar. Alem deste milagre, ha outro;
que depois de feita a capelIa, mudaram pª lá a Senhora; mas todas as manhãas a iam achar na antiga capella; repetido isto tantas vezes,
lembraram-se de passar tambem o corpo do Eremita pª a nova Capella;
desde entaõ a Senhora deixou-se hospedar na casa nova.
Pelo Espirito Santo, é a Senhora de Vagos, objecto d'uma
grande romagem, a que concorre immensa gente. Vem o prior de Cantanhede
com o Santissimo, mas é forçoso vir pelas arêas: no dia do Espirito
Santo, sahe a procissão da Igreja da Villa pª a Capella; depois segue-se
a distribuição do bodo, que consiste em carne pão e vinho, resultado d'algumas
promessas. É curioso ver 6 carros carregados do comer pª distribuir aos
pobres. No outro dia, o prior de Cantanhede vai dizer missa á Igreja de
Vagos, e senta-se na Cadeira, lê banhos, como se fosse prior da freg.ia
Concorre a esta
/
272 /
romaria gente de todos os povos ao Sul de Vagos até ainda
álem de Cantanhede; porem d'Ilhavo a Aveiro, vai mto pouca
gente.
A uma legoa de Vagos, no caminho d'Aveiro, encontra-se
Ílhavo. É uma Villa mto grande, e q. tem tantos fogos como Aveiro, porem pobre, como todas as terras de pescadores.
É afamada pellas bonitas raparigas q. tem; mas eu qdo por lá
passei, não vi uma q. o fosse.
Aveiro onde estive alguns dias, é uma Cidade insignificante, que nem merecia as boas estradas q. já possue; e o
dinheiro q. se tem gasto na barra. É atravessada pla ria,
sobre a qual, ha duas pontes soffriveis. A ria d'Aveiro é navegavel
até à Cidade, para embarcações grandes; cahiques, etc. Tem um commercio
mto fraco, q. logo se avalia
pela alfandega, q. possue a cidade; q. não é mais que um pequeno armazem.
Qto a Edificios é pouco abundante; tem
o novo Lyceo, bom edificio, elegante e bem construido, mas
inutil pª Aveiro. A cousa mais notavel q. tem a Cidade é a Capella do Convento
de S. Joanna, e o Tumullo da Infanta
Santa. A Capella é pequena, mas bem adornada, e possue
bellos quadros a oleo. Tem no altar-mor, 4 ou 6 quadros, historiando a
vida da Santa. O tumullo é uma obra magnifica; é tudo de bello mosaico antigo, d'um preço inextimavel.
Perde porem grande parte do seu brilho, pela casa em q. está
collocado, que é excessivamte baixa, e cujo tecto parece estar
esmagando o tumulo. É sustentado o tumulo por 4 anjos de primoroso
trabalho. Os paramentos da capella são mto ricos, tanto pelo bello
bordado, como pelo valor intrínseco, pois q.
são de tela de seda e prata, bordados a oiro, alguns ornados
com pedras preciosas.
Ha uma Igreja bastante antiga, de q. me não lembra o
nome, mas q. é junto ao Convento, onde está na Capella mór, um jasigo,
onde parecem repousar as cinzas da celebre Catharina d'Athaíde, por quem Camõens tanto padeceo; a data da
morte desta, coincide com a historia, pois que é de 1500 e
tantos. N'um altar á esquerda, e o primeiro jto á porta principal, vê-se um quadro em madeira, q. parece ter sahido das
mãos do Grão Vasco.
Parece que Aveiro no tempo dos Romanos, era onde
hoje está o Lugar de Cacia; ha entre a Mortosa e Villarinho; um campo denominado da
Matança, onde parece ter havido uma grande
batalha, q por terem ficado muitos mortos
no campo, se ficou chamando − da Matança.
Parece depois ter mudado Aveiro a sua posição, pª
Esgueira, q. ainda no fim do seculo passado era a maior
povoação d'aquella comarca. Toda esta porção de terreno, é doentia, devido á grande quantidade de marinhas, e alguns
arrosaes, que principalmte circundam Aveiro. Da Cidade
/
273 /
[VoI. XIV - N.º 56 - 1948]
parte uma estrada q está em construcção, q. contorna a ria, atravessa a
ria de Vagos, por uma bella ponte de madeira, e segue até á Costa-nova,
que é composta d'algas casas, edificadas jto á torre da barra; e que talvez sejão o nucleo d'alguma
povoação importante, visto o augmento de população q. tem havido na
Gafanha, e as novas conquistas q. cada anno este povo faz ás areias.
Perto da Costa-nova, estão os Palheiros, encostados á ria de Mira. Teêm-se construido alli ha pouco tempo boas casas de madeira, pª o tempo
dos
banhos. É a Pedrouços d'Aveiro.
Sahi d'Aveiro pª Oliveira d'Azemeis no dia 3 de Junho.
Fui ficar a Albergaria Velha, pª aproveitar a estrada nova até esta ultima Villa. A estrada passa pr
Esgueira, e Cacia,
atravessa o Vouga, por meio d'uma miseravel ponte de madeira; que
felizmte vae ser substituida por uma de ferro; − passa pr
Angeja, e
segue pª Alberg.ª. Foi no lugar do Sobreiro, junto a Albergª, q. pela
primeira vez vi as videiras q dão o vinho verde, trepando pelos
castanheiros, carvalhos, etc. É a partir da margem direita do Vouga que
começa a zona onde se produz o vinho verde. Tambem começam a apparecer
com mais abundancia os castanheiros, q até alli não tinha visto.
Ficámos essa noite em Albergaria, continuando no dia
seguinte pª Oliveira d'Azemeis. Offerece um contraste excellente com
aquelle q eu tinha percorrido, todo este terreno que se estende de
Albergª-Nova até Olivª. Da Branca por diante a paisagem é bellissima.
Terrenos mto ferteis, abundantes d'agoa, e mto arborisados; dando
immenso realce á paizagem as videiras enlaçando-se com os castanheiros e
carvalhos. O Pinheiro da Bemposta, sobretudo, é um sitio delicioso. Do
Pinheiro até Oliveira d'Azemeis a estrada
passa por um terreno mto accidentado, pr profundos valles,
que descem d'uma pequena cumiada que corre no sentido N.S. Chegado a
Oliveira d'Azemeis, fômos pª uma estalagem, indecente pª uma villa
como aquella. Oliveira está situada n'uma collina, ou antes extremo d'um
contraforte da cordilheira q. de Romariz se extende até Ossella.
É uma villa moderna, e q. tem augmentado mto depois que se fez a estrada nova.
A unica cousa notavel que tem, é o Edificio da Camara Municipal, construido
ha poucos annos. Os arredores da Villa são mto pittorescos, e mui
ferteis. A 2 legoas pª o Nascente, está a Villa de Macieira de Cambra,
encostada á serra da Freita. A 2 pª o Poente fica Ovar, terra de
pescadores, e pr isso pobre. É uma villa grande a pto de ter mais fogos que Aveiro. Perto
acaba a ria que vai a Aveiro. D'Oliveira fui estacionar na quinta do
Linheiro, proximo de Sever, q. pertence ao Administrador do Concelho.
Está Sever, situada n'um valle, na encosta da Serra de Cambra, ou da
Snrª. da
/
274 /
Saude, e a 1/2 legoa do Rio Vouga. Toda esta encosta é um
terreno mto cortado plas vertentes q. descem da serra, mas os
valles são mto productivos. A principal producção é milho,
vinho, e castanha; tambem fabricam mta manteiga, e de boa
qualidade. Toda a encosta offerece um bello aspecto, por
juntar á bellesa d'um terreno mto cortado, o ser mto arborisado, de castanheiros e oliveiras. No alto da serra ha algumas povoações, pobrissimas. As casas são construidas de
pedra solta, e cobertas de colmo. No inverno, fica a serra
ás vezes mais de oito dias coberta de neve, mas raras vezes
dura mais tempo. As encostas do N, desta serra são tambem
mto productivas; o valle de Cambra é riquissimo até Ossella; é formado pelo rio Caima, que tem a principal nascente na
serra da Freita, a peqª distia d'Albergª das Cabras; forma a sahida da
nascente, e ao descer do alto da serra, uma magnifica cascata de perto
de 50 metros d'altura, e q se vê ao longe, como um lençol branco extendido
na serra.
Mais pª o Sul desta, ha outra nascente notavel, no sitio
denominado das Fragas, que cahindo de grde altura, dá tambem origem a uma cascata, formando o rio Teixeira, q se vai
metter no Vouga, defronte de Arcosello. O levantamento da serra de
Cambra, composta de formações schistosas corre
na direcção N.15. O. Ao N desta serra este levantamento
é mto pronunciado. Vê-se uma serie de grandes cabeços
seguindo sempre a mma direcção até Romariz. Porem, nesta
serra de Cambra, este levantamto crusa-se com o da serra da
Freita, e da Gralheira, une-se com elle, por um braço ao N.
do Povo da Junqueira, que se prolonga pª O, até pr cima
d'Ossella. Pela pte ms alta da serra da Freita, onde está o
Povo de Albergª das Cabras, passa a estrada do Porto a Viseu, que,
seguindo pª esta ultima Cidade, atravessa a serra da Gralheira, passando
por Manhouce. Esta ultima povoação está na encosta O. da Gralheira, no
meio de fragas e penedias horríveis. Ha proximo deste outros povos, collocados no cimo dos
penedos como ninhos d'aguia, e pª onde se trepa
com bastante difficuldade, por degráos feitos na rocha. N'estas
povoações qdo morre alguem, o unico meio q. teem pª o descerem, é atarem o cadaver a uma escada de mão, um homem
agarrar-lhe pr baixo, outro pr cima, e descerem-n'o com toda
a percaução; já um morto matou dois vivos, pr q estando mal
preso á escada, desatou-se, e cahio sobre o homem q. ia
segurando a escada, fazendo-o precipitar do rochedo; e o mmo aconteceu ao que vinha superior.
É uma estrada perigosa
e cheia de precipícios, sobre tudo á descida da Freita pª Chave onde pr
mtas veses se tem despedaçado algas cavalgaduras. A 1/2 legoa ao Sul de Sever, está jto ao Vouga a aldea
de Pecegueiro; é neste ponto que acaba a navegação do Vouga, onde ha uma ponte
na estrada d' Albergaria-Velha pª Vouzella.
/
275 / Do Peccgueiro pª cima não é navegavel
o rio pela mta rapidez da
corrente, e por se tornar n'alguns pontos bastante caudaloso.
A N.O e a 1/2 legua de Sever, no Valle formado pelo rio Máo, está em
exploração a mina do Braçal. Os productos da mina, são chumbo, e alguma
prata. Mais pª Nordeste do outro lado da serra que separa este rio do Caima, ha outra mina denominada do Palhal, cujo minerio se compoe de
cobre e prata.
Do Linheiro marchei a fazer quartel pr alguns dias em Albergª Velha.
− É uma Villa, cuja origem, como o nome o mostra, foi uma casa mandada
faser na estrada de Coimbra ao Porto, pela Rainha D. Thereza, pª servir
d'Albergue, aos viandantes pobres e doentes; dava-se-Ihe de comer, cama
e luz. Em torno desta casa, − que ainda hoje existe, e serve de prisão,
− edificárão-se outras, até que chegou a ponto de merecer o foral de
Villa. É agora cabeça de Concelho. Ao Sul está junto ao Vouga o lugar de
Serem, que por alguns manuscriptos antigos, se vê ter sido grande
povoação do tempo dos Romanos, assim como o Marnel, que fica alem do
Vouga, n'um valle formado por um ribeiro que desce da serra das
Talhadas. Parece provavel que ao MarneI chegasse um braço do mar, ou que
o mmo Vouga, dé-se ali profundidade bastante pª grandes navios, porque a
bacia que se nota defronte do MarneI, indica bem ter sido produsida por
uma força sup.or á de que é capaz o ribº que por elle passa. Alem
disso, é permittido suppor que o mar chegava até este ponto, porque é
sabido que as dunas d'areia, e a grande caldeira d'Aveiro teêm-se
formado pouco a pouco, e que, o que agora é terreno cultivado e povoado,
foi ha milhares d'annos, costa e dunas a seu turno. É mais provavel q.
o MarneI seja ainda mto anterior aos Romanos. De ser ali porto de mar n'outros tempos, a uníca prova que existe, é a existencia de nomes
de certos sitios, que como outros muitos o tempo tem conservado, e a tradicção trasido através de grande n.º
de seculos.
D'Albergaria fomos pª o Sardão; logar proximo d'Agueda, e na
margem opposta do Rio Agueda. Este rio desce da serra do Caramulo, e
d'inverno enche mto. Toda a sua baixa e margens, é mto productiva, de
milho. Já aqui se não encontra a videira que dá o vinho verde. D'aqui
seguimos pª Vousella, e no outro dia fomos ficar a Viseu. A estrada pª Vousella, a uma legoa d'Agueda, começa a subir á serra das Talhadas, que corre na direcção
O.20.N. Neste ponto crusão-se os tres
levantamentos, do Caramullo, da Gralheira, e da serra de Cambra. Abunda
em nascentes d'agua (assim como as vertentes da serra de Cambra) q vão
formar o rio Alfosqueiro q se junta com o Agueda abaixo do lugar da
Castanheira.
/ 276 /
No cimo deste Valle e nas faldas da serra do Caramullo, vê-se a povoação
de Campia, n'um sitio mto pittoresco. Na serra, está na encosta do S.
o lugar das Talhadas, mais adiante na mma estrada, os lugares de
Bemfeitos, Entreaguas, Ponte-fóra, etc. A 1/4 de legoa de Vousella,
passa-se por Villarigo, povoação mto antiga; ainda se vê o antigo castello n'um
alto jto á povoação. Vousella está situada nas faldas do extremo N. da
serra do Caramullo, passando-lhe junto o rio ZelIa.
LUÍS CHAVES |