(do livro a publicar Nossa
Terra, Nossa Gente)
ALMINHAS DAS ENCRUZILHADAS
SEMPRE para mim tiveram um encanto especial essas
«alminhas» das encruzilhadas dos nossos caminhos
rurais.
Retábulos ingénuos de humildes pintores anónimos, simples curiosos de
aldeia sem mestres e sem escola, esses retábulos ora se erguem ao alto
de cruzes de madeira ora para ali estão quase esquecidos a dormir o sono
dos séculos em nichos de pedra rústica ou em capelinhas com pequenas
grades de ferro que a crença popular das gentes de outrora ergueu e
construiu com devoto enternecimento.
Ainda hoje, quando adrego de passar por algumas, avizinho-me logo e
quase sempre encontro figuras bíblicas diferentes ou interpretadas de
modo diverso ao redor da figura principal do quadrinho místico, modesto
símbolo de religiosidade.
Nesta, que agora vejo, ao lado de santos e santas da corte do céu, com
carões medonhos e muito cómicos, voam almas errantes e anjinhos de asas
brancas num firmamento azul-cinza com uma estrela prateada.
Naquela, que vi há pouco, em rudes alegorias, com
S. José e a Virgem
Maria, aparecem também labaredas do fogo do Purgatório a castigar, para
exemplo, grandes pecadores.
E naquela outra, muito mais completa, de mistura com santos, com
almas errantes e com o fogo do Purgatório, estão uma vaquinha, um
burrinho, ovelhas e cordeirinhos brancos ao lado de bons pastores de
bordão ao alto e chapéus nas mãos, respeitosos − bíblicos pegureiros de olhar parado e manso que
parecem dormir de olhos abertos na grande noite
dos tempos.
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E Herodes? E Pôncio Pilatos? E Caifaz? E os outros
que colaboraram na tragédia ou que, por qualquer razão, nela foram envolvidos, como, por exemplo, os dois ladrões?
− Também às vezes lá estão pintados, com barbas ou como
calha.
Todas essas «alminhas», bem
observadas, têm, para certas
pessoas, qualquer coisa de tragi-cómico. O «pintor-artista» não teve, para as figuras, o sentido das proporções, o equilíbrio das linhas e das formas e, via de regra,
as feições dessas
figuras bíblicas são medonhas, com os olhos fora do lugar,
a boca de esguelha, por vezes os pés virados ao contrário!
E há cordeirinhos tão mal pintados que até parecem cães... ou outros
bichos!
Contudo esses símbolos rudes de modestos pintores anó'nimos ao serviço da crença popular emprestam ao cenário
rural o encanto que toca a nossa sensibilidade.
Ao redor, o silêncio tem qualquer coisa de místico e de lendário a
envolver a paisagem aliciante. E, dentro, nos nichos das «alminhas», o
pó dos séculos, só o pó dos séculos, de mistura com o silêncio inspirador das
grandes lendas a recordarem grandes tragédias na história da
humanidade...
povos que lutam e sofrem, poderosos que mandam, prepotentes, almas errantes, fogo do Purgatório, anjinhos de asas
brancas, santos e santas da corte do céu, uma vaquinha, um burrinho, ovelhas e cordeirinhos, pegureiros bíblicos de olhos
mansos, cândidos pescadores das margens do lago de Tiberíade, S. José e a Virgem Maria... e Jesus de Nazaret pregado numa cruz
− naquele trágico monte Gólgota − a cabeça pendida sobre
o magro peito e entre dois ladrões, a sofrer, a sofrer... quase há dois mil anos!...
ERMIDAS
Mas nem só as «alminhas» tocam a nossa sensibilidade
e são motivo do nosso enternecimento. Também as velhas ermidas − capelinhas aninhadas nos povoados da província
ou encaixilhadas no pitoresco da paisagem −, velhinhas de séculos... umas
de construção simples, outras de linhas artísticas, algumas branquinhas de cal, a luzir, e outras de paredes
sem caliça e as pedras à mostra, musgosas... heras a trepar até o
telhado, lá em riba a sineta de bronze e, aos lados da
secular e modesta porta de castanho ou carvalho − que já foi
nova e pintada − dois buracos com um grotesco ferro em cruz
por onde a nossa curiosidade costuma espreitar lá para dentro
a mirar o altar − o céu dos humildes −, os santinhos e o púlpito... que, via de regra, assenta sobre um grande pedregulho de granito no
chão da capelinha.
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Tudo muito simples. Muito simpático. Muito enternecedor.
Ermidas!... Poesia do céu plantada na terra. Pingos de fé a luzir na
paisagem. Luz mística a embalar os corações, a erguer-se nos espíritos
dos crentes genuflexados, a
aureolar de santidade as almas boas, a orvalhar de doçura, os lares
dos humildes.
Ermidas!... Capelinhas de S. Caetano, de Santa Luzia, da Senhora do
Rosário, de S. Braz, da Senhora das Dores, da Senhora de Almieira, de
S. Sebastião, da Senhora da Saúde, de S. Gonçalinho, da Senhora do
Amparo, do Senhor Bom Jesus, das Almas d'Ariosa, da Senhora dos Remédios,
do Senhor da Pedra, da Senhora do Monte... e muitas mais com seus
padroeiros − ídolos, todos, das multidões sofredoras e crentes desta
linda terra portuguesa.
CRUZEIROS
E então os cruzeiros?!
Colunas ao alto com braços de granito abertos em meio dos adros... São os cruzeiros da nossa terra. Cruzeiros das
nossas aldeias e das nossas vilas. Cruzeiros das nossas vidas...
Sombras esguias a projectarem-se, adro além, sobre o arrelvado ou o pó
dos caminhos, ao cair suave e nostálgico
das tardes de Outono, à hora melancólica das avé-marias... Sons
metálicos a cantar no espaço. Cabeças descobertas. Corações a rezar.
E do poente multicor e sanguíneo vêm as derradeiras fímbrias de sol
− luz
a alumiar a vida − reticências cósmicas
do dia a findar...
Então, sim, as místicas silhuetas dos cruzeiros rurais,
− cruzeiros das
nossas aldeias − cruzeiros de pedra de braços abertos, feitos de sonho,
de fé, de tragédia e de lenda... são bem o símbolo do sofrimento e da
resignação. Sublime resignação!
Braços abertos a implorar perdão aos céus! Aquele bom e digno perdão nazarénico do grande Sacrificado de uma causa santa, a bem da
Humanidade, de que nos fala a Bíblia...
Aveiro, Novembro de 1948.
LAUDELINO DE MIRANDA MELO |