ENTRE as setecentas e treze
cartas escritas por PEDRO
MÁRTIR de Anguiera e publicadas em Alcalá de Henares pela primeira vez no ano de
1530 com o titulo de
«Opus epistolarium Petri Martyris, Mediolanensis» e
reeditadas na Holanda pelos Elzevires no de 1670, interessa-nos de momento a que ele escreveu ao seu amigo lusitano
AIRES BARBOSA, já por ser dirigida a um ilustre compatriota
nosso, que tanto honrou a sua e a nossa pátria na Espanha
e na Itália, já por se referir em termos curiosíssimos à sífilis,
então grassando ferozmente por toda a Europa e que não poupara o amigo na sua sanha descaroável.
Eis o documento digno de ser lembrado:
P. M. A. M. Ario Lusitano, Graecas Litteras Salamanticae profitenti valetudinario.
− ln peculiarem te nostrae
tempestatis morbum, qui appellatione Hispana
Bubarum dicitur (ab Italis morbus gallicus, medicorum
Elephantiam alii, alii aliter appellant) incidisse praecipitem, libero ad me scribis pede. Lugubri autem elego
calamitatem, aerumnasque gemis tuas, articulorum impedimentum, internodiorum hebetudinem, juncturarum
pmnium dolores intensos esse proclamas: ulcerum et oris foeditatem superaditam miseranda promis eloquentur,
conquereris, lamentaris deploras. Misereor quidem, Ari
amicissime, tui, cuperemque te bene valere, sed minime,
quod te prostemas, ignosco. Angi namque nimium adversis, aut extolli prosperis, sapienti minime
licet, imo et ferendos esse quos cumque jortunae ictus, cohaerenter
ac indefesso spiritu praedicatur: ad animique fortitudinem, omnium lenimen malorum, confugiendum censetur... ld si faeceris, non minus te felicem esse intelliges,
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quod nunc Saturnus te opprimat, a quo morbus iste, quam si
Mercurialibus volitare per aera talaribus daretur.
Vale. Giennio, in nonis Aprilis 1489.
Ou seja em tradução livre:
«Pedro Martir de Anguiera, milanês, a Aires Lusitano,
Professor de Literatura Grega em Salamanca, na doença deste.
Contas-me em prosa corrente e em tom elegíaco que desabou sobre ti um
mal, próprio do nosso tempo, ao qual os espanhóis chamam boubas, os
italianos morbo gálico, outros médicos elefantíase e outros ainda o
designam por diversos nomes. Lamentas a tua desgraça e infortúnio. Gemes
por não poderes mexer os membros senão com dificuldade e choras com as
dores insofríveis das articulações e ligamentos. Como se fosse pouco,
queixas-te amargamente de úlceras e mau cheiro na boca. Tenho, na
verdade, pena de ti; queridíssimo Aires, e desejo-te a volta da saúde,
mas, o que de modo nenhum te perdoo é que te deixes dominar assim pela
doença, pois não é próprio duma alma varonil sucumbir na adversidade ou
rejubilar na prosperidade. Pelo contrário, devemos enaltecer aqueles que
recebem serenamente e com indomável coragem os golpes da sorte, buscando
da fortaleza de ânimo o lenitivo para os seus males. Se assim
fizeres embora neste momento sejas perseguido por Saturno, responsável
por este morbo, sentir-te-ás não menos feliz do que se te fosse dado
voejar pelos ares, arrebatado nas asas de Mercúrio. Saúde! Jaen, aos
cinco de Abril de 1489.»
Principiemos, como é natural na nossa profissão, pelo diagnóstico. Não
conhecemos a carta do português insigne, que provocou a do italiano, não
menos insigne. Mas este
diz o bastante para, em face dos sintomas referidos, podermos aceitar o diagnóstico feito sobre as informações de AIRES BARBOSA, como
certo ou muito provável. Não é, pois, fora de propósito o diagnóstico de
morbo gálico ou de sífilis, nome hoje adoptado em homenagem ao poema
latino do mesmo nome, composto por FRACASTOR, que nunca teria sonhado
que, três séculos volvidos, os seus versos imporiam o nome a uma doença, em verdade, nada poética.
Podemos mesmo acrescentar que a sífilis do compatriota
se encontrava em plena explosão secundária: dores osteocópicas e
articulares
− o impropriamente chamado reumatismo
sifilítico
− as sifilides ulcerosas espalhadas pelo corpo, a fetidez da
boca (talvez devida ao tratamento mercurial) por ventura cheio de placas
mucosas, são a favor do diagnóstico da
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sífilis, diagnóstico fácil e comum naquele tempo em que a doença
alastrava sob a forma epidémica.
PEDRO MARTIR aconselha ao amigo que sofra com resignação e paciência, como convém ao homem forte, conselho
que toda a gente dá, mas ninguém segue. A propósito, lembra-me perguntar: o epistológrafo teria dado iguais provas de estoicismo
quando fora atacado pelo mesmo mal? Pois hão se livra da fama de o haver
contraído... Pelo menos
é o que deixa supor a passagem dum outro escritor coevo
−
OVIEDO EVALDEZ
−: «Este caballero, Mossen Pedro, andaba
tan doliente e
se quexaba tanto que tambien creo yo que tenia los dolores que suelen
tener los que son tocados desta passion(1)...»
Arcades ambo...
A carta termina de modo subtilmente gracioso. PEDRO
MÁRTIR, que pelos vistos acreditava na acção patogénica de
certos planetas, atribui, como muitos médicos do tempo,
a sífilis a Saturno, talvez à sua conjunção com outro planeta
nefasto
−
Júpiter ou Marte
−
porventura, à de 25 de Novembro de 1484, com estes dois no signo do Escorpião, conjunção
que seria a causadora da futura epidemia...
Mas, logo a seguir diz, irónico, que, se o amigo conseguisse dominar o desânimo, seria mais feliz do que se fosse
arrebatado nas asas pedestres de Mercúrio. Parece, realmente, haver aqui
qualquer alusão ao tratamento mercurial.
De facto Mercúrio era ao mesmo tempo um deus, um pIaneta e um metal precioso, já nesse tempo empregado como
específico da sífilis, perdão, do morbo gálico. Os árabes há
muito que o usavam na cura de feridas e dermatoses, não
sendo para admirar que os médicos o experimentassem nas
eflorações cutâneas da nova doença.
O êxito consagrou a experiência.
Outros mais ingénuos atribuíram a descoberta do medicamento a este raciocínio... estupendo: Se Vénus, a deusa do Amor, é a
responsável pelo contágio morbígeno, porque não estará o contra-veneno
em Mercúrio, planeta como ela e que lhe fica tão próximo? Não é isto
evidente? Claro que é...
E aplicaram o mercúrio com resultado brilhante, E desde
então nunca mais se deixou de aplicar, não obstante se ter descoberto o
914, o bismuto e a... penicilina.
Ainda um comentário. Este sobre a data, que está errada,
porque de nenhum modo pode ser a de 1489 e isto por um
punhado de razões.
A expressão morbo gálico ou mal francês
não era
empregada, nem sequer conhecida em 1489 e muito menos
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284 /
em 1488(2), data que vem mencionada na primeira edição das epístolas.
Só começou a ser usada quando os exércitos de Carlos VIII de França, ao
invadirem vitoriosos a Itália no ano de 1494, puseram cerco à cidade de
Nápoles em Fevereiro de 1495.
Foi então que uma epidemia nova ou até aí desconhecida, propagando-se
por sitiantes e sitiados, alastrou-se com incrível rapidez com o auxílio
das Vénus mercenárias, cuja presença nunca faltou nos exércitos em campanha, sobretudo nesses tempos de
fatal promiscuidade dos soldados com cortezãs, vivandeiras e toda a
sorte de mulheres ávidas de dinheiro e de luxúria. O próprio rei dava o
exemplo, tendo-se demorado em Lião, entregue aos caprichos do cego
Cupido. Ora a expedição de Carlos VIII teve lugar em 1494, o cerco
deu-se em 1495, retirando-se o exército vitorioso pouco depois.
Enquanto os napolitanos ficavam, além de derrotados pelas armas, a
bater.se contra a epidemia que atribuíam aos gauleses, donde chamarem Morbo gálico à doença, os vencedores eram por sua vez vencidos pela
mesma, que designavam por Mal napolitano.
Mas, ao fim e ao cabo, parece que o mal era espanhol e fora trazido na
primeira expedição de Colombo pela marinhagem que o teria contraído no
comércio amoroso com as Vénus fáceis da ilha Ispaniola. E seriam os
espanhóis contaminados que faziam parte dos exércitos de Carlos VIII, e
os que
estavam em Nápoles, os primeiros transmissores da doença, que, como lume
em estopa, se espalhou por todos os países da Europa e daqui por todos
os cantos do mundo, levada pelos navegadores portugueses e espanhóis.
Por isso, chins e nipões lhe chamaram mal português.
A designação de morbo gálico marca, pois, com precisão notável uma data
e essa é a do ano de 1494. A data da carta de PEDRO MÁRTIR está,
portanto, errada. Talvez tenha havido uma gralha por parte do tipógrafo
que teria trocado entre si os dois últimos algarismos de 1498, ano em
que o polígrafo muito provavelmente teria escrito ao humanista
português. Nunca, porém, antes de 1494.
Outro argumento: em 1489 (ou 1488) AIRES BARBOSA não estava ainda em
Salamanca a ensinar Grego, como vamos ver, aproveitando a oportunidade
para recordar alguns passos sobre a vida triunfal do ilustre aveirense.
AIRES BARBOSA, filho de Fernão Barbosa e de Catarina
de Figueiredo, nasceu na então Vila de Aveiro, Bispado de
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Coimbra, aí por 1456, um ano depois do seu amigo PEDRO MÁRTIR, tendo
falecido na mesma aos 18 de Julho de 1530, portanto com 74 anos de
idade, ou de 1540 com 84, segundo a opinião autorizada de ESPERABÉ
ARTEAGA, que se baseara nos documentos encontrados no Arquivo
Universitário de Salamanca, os quais afirmam categoricamente, que
falecera no dia de S. Sebastião daquele ano (20 de Janeiro).
Foi sepultado na Capela de Nossa Senhora do Desterro por
ele mandada construir nos terrenos, de Santo André, na Vila de Esgueira. O seu
epitáfio diz simplesmente: «Aqui jaz o corpo de Ayres Barbosa, Mestre
grego. Era de 1540».
O futuro e eminente poeta, polígrafo e professor de Gramática, de
Retórica, de Latim e Grego na Universidade de Salamanca, animado por
irresistível vocação para as letras desde a mais tenra idade, conseguiu
dos pais autorização para ir estudar à cidade do Tormes, cuja
universidade atraía particularmente os portugueses do tempo. Mas sempre
ávido de saber e não tendo mais que aprender em Salamanca, ei-lo de
abalada até Florença em pleno fastígio universitário, onde teve a
felicidade de ouvir, entre outros grandes mestres, o célebre ÂNGELO
POLICIANO, a cargo de quem estava o ensino do Grego e do Latim. Rico de
erudição e afamado, voltou à pátria para matar as saudades, que sempre
acompanham e atormentam todo o português ausente, mas pouco se demora, e
de novo atraído pela Universidade Salmantina, para aí regressa no ano
de 1490, segundo MARCEL BATAILLON, no de 1494 segundo MORERI, ou a 4 de
Julho de 1495, conforme o dicionário bibliográfico de Portugal, data
esta em que teve lugar a sua eleição ou nomeação para a regência da
cátedra de Latim e Grego, tendo sido quem primeiro ensinou esta língua
numa universidade espanhola. Todos são unânimes em elogiar o ensino do
pedagogo português, que também regeu as cátedras de Retórica e de
Gramática.
Foi, porém, nas Letras gregas que se elevou a tão alta culminância que
os seus discípulos, entre os quais HERNÁN NUNEZ, o Pinciano, seu futuro
sucessor na Cátedra, lhe deram a nobre alcunha de «O Grego». Durante uns vinte anos, tantos quantos se manteve à testa da sua cátedra
gloriosa,
segundo NICOLAU ANTÓNIO e LEITÃO FERREIRA, a cultura helénica em Espanha
esteve, sem sombra de dúvida, nas mãos do insigne português. Foi
companheiro do notabilíssimo
ANTÓNIO, NEBRIXA, um dos três grandes humanistas da Espanha desse tempo
e mais do que companheiro foi seu amigo defendendo-o calorosamente dos
ataques com que os adversários invejosos o mimosearam em certa altura da
vida, precisamente quando essa altura culminava triunfalmente. Era a
hora do assalto, que não falta nunca aos homens que ultrapassam a
craveira... E também demonstrou quanto o estimava
/
286 / desistindo do seu concurso à cadeira de Gramática e deixando-o só
em campo. Durante algum tempo ambos compartilharam a regência do Grego,
mas o nosso compatriota fê-lo com mais brilho, diz BATAILLON, embora
noutras disciplinas o espanhol fosse mais eminente. Mais tarde voltou
a concorrer à cátedra de Gramática, vacante pela saída do NEBRIXA, tendo
tomado posse dela a 22 de Março de 1509 (ESPERABÉ ARTEAGA).
Foi, pois, um português quem mais do que ninguém,
afirma o mesmo professor, contribuiu para tornar conhecida em Espanha a
cultura da Hélade. Também MARÍNEO SÍCULO no seu «De Laudibus Hispaniæ»,
ao descrever a Universidade Salmantina, não se esquece de apontar o
nosso humanista como Catedrático de Grego em 1497. Na lista dos
professores que no primeiro de Maio de 1503 prestaram juramento de bene
legendo na mesma Universidade para o exercício do ano seguinte figura o
nome de AIRES BARBOSA.
D. João III, sempre ao par das notabilidades no ensino e tendo em grande
apreço os méritos indiscutíveis do mestre ilustre, então já aposentado,
mandou-o chamar à pátria para
preceptor dos seus irmãos, o cardeal D. Afonso e o futuro
cardeal D. Henrique, ainda meninos, cargo em que se manteve durante sete
anos, findos os quais se retirou para a sua terra natal, onde morreu
pouco depois, em 1530 ou em 1540, como dissemos. Foi, pois, aí por 1523(3) que ele teria sido convidado por D. João
III, andando o cardeal D.
Afonso pelos catorze anos e o futuro cardeal-rei pelos seus onze, idade
propícia para iniciar o estudo das humanidades. O infatigável
e fecundo trabalhador passou a melhor parte da vida plenamente entregue
ao ensino e ao estudo, mais de quarenta anos em que contribuiu como
poucos para o progresso da cultura humanista em Portugal e na Espanha.
ANDRÉ DE RESENDE, no seu Elogio de ERASMO, dedica-lhe
estes versos:
«Hispanique sacer meritis honor orbis Areius,
Magnis cui debet quantum nunc PalIadas illic
Cultior usus habet, docuit nam primos Iberos
Hippocreneo Grajas componere voces
Ore; etenim quidquid frugis nunc Itala regna,
Grecia quondam habuit,
quidquid patriaeque, quisque
Importavit et a Galli stribiligine tandem
Asseruit, fierique dedit sermone Quirites.»
Nos quais toca a mesma nota de ter sido AIRES BARBOSA
quem teve a honra augusta de, pelos seus méritos, ter incutido
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287 /
aos espanhóis pela primeira vez o gosto das letras gregas e lhes ter
ensinado, na linguagem das musas, a eloquência da Hélade. Na realidade
tudo quando outrora a Grécia produziu de bom e hoje a Itália produz e
tudo quanto trouxe para a sua pátria, ele assimilou e passou para a
língua de Roma...
AIRES BARBOSA era casado com D. Isabel de Figueiredo, de quem houve
muitos filhos, dos quais o primogénito Fernão Barbosa fora moço fidalgo
de D. João lII, em atenção dos serviços prestados pelo helenista como
preceptor dos irmãos.
Com este Fernão Barbosa deu-se um episódio jocoso, ao qual se refere
ANDRÉ DE RESENDE nestes termos:
«Pouco tempo depois, estando El-Rei que Deus tem e a Rainha, nossos
Senhores em Coimbra, onde lhes nasceu a Princesa, sua filha, pousava o
Cardeal com os Infantes, em uma parte dos Paços. Andava em sua casa
Fernão Barbosa, moço pouco mais que da idade do Infante Dom Duarte. O
qual moço, por ser filho de Aires Barbosa, mestre do Cardeal e se criou
em sua casa e já latino honesto, era favorecido. Entrou um dia onde o
Infante estava brincando com alguns moços fidalgos e levava uma vara
louçã na mão, traço ou andaço daquele tempo, como em Portugal se usam
muitos, que duram uma temporada e não por mais que imitar e arremedar
algum, a que esteve bem fazer aquilo.
Cobiçou o infante a vara e pediu-lha por vezes; foi o moço tão contumaz,
que não lha quis dar. O Infante vendo que perseverava em negar, remeteu
a ele para lha tomar por força, mas o moço a quebrou primeiro antes que
lha largar. Cresceu a cólera do Infante e, vendo a descortezia de que
usara, lançou-lhe a mão a uma escófia de seda que na cabeça
trazia; porque estava rapado de fresco à navalha por causa
de bostelas e sarna e quebrando-Ihe as ataduras, lha rompeu e o moço
ficou com a cabeça rapada descoberta em meio de todos, que lhe por isso
acudiram com uma grande risada e apupada e ele se acolheu corrido com
sua rapada à de fora. Todavia o Infante, posto que se vingou, cuidou no
que tinha feito e que por aquele ser filho do Mestre, e favorecido,
podia o Cardeal ter desprazer, recolheu-se para uma câmara onde dormia e
estava pensativo e receoso.
Sobrevim eu e, vendo-o assim lhe disse: Bem, Senhor,
que cousa é assim esta? Como está V. Alteza só e triste?
Contou-me o caso e não sem algumas lágrimas com que ficou mais formoso,
dizendo-me: Que dirá o Cardeal se isto souber? Demo foi aquela vara
hoje.
Consolei-o e disse-lhe: Cale-se V. Alteza que eu me
atrevo a temperar tudo isso.
/
288 /
−
Ora rogovo-lo muito que não ouso parecer lá.
Fui-me ao Cardeal que estava em lição e contei-lhe o
caso por graça. O qual por amor do Mestre quis mostrar
que lhe pesava. Mas o mesmo Mestre, como era homem
prudente e de condição branda, se pôs da banda do Infante
contra seu filho e me ajudou a dar alegria à graça. Com o que o Cardeal
também se alegrou e disse:
Ora, pois assim é e vos parece graça, graça seja; e aqui
se acabe a lição, que o mais tempo que houvera de durar,
quero gastar em fazer dessa graça um Epigrama; o qual fez
e bem prestes, porque tinha divino engenho e escrevia em
verso facilmente e ficaram dele muitos versos, que eu coligi em um livro
que dei a EI-Rei que Deus tem.»
Eis o epigrama:
«Digna quidem risu pugna est commissa duobus
Qui sint, quae fuerit, dicite Pierides.
Quum Vernande manu virgultum forte moveres,
Eduardus Princeps id sibi habere cupit.
Et nunc pro imperio jubet is, nunc obsecrat, inde
Vim parat & totis viribus agit,
At tu nec precibus, nec vi permotus, id unum
Ne virgam ille ferat, quam cupiebat, agis.
Paeneque jam victus, potius bis, terque petitam
Fregisti, puero quam obsequerere puer.
llle ferox, manibus disrupit vincla mitellae,
Velabat rasum quae tibi forte caput.
Rasus ad usque cutem cerratos inter herileis
Ridiculo exceptus provis inde foras.
Sed male, quod tandem virga sine mansit uterque
Quum duplici virga dignus uterque foret.»
Nestes versos em que o Cardeal D. Afonso, então um
jovem de dezoito anos, mostra ter tido um magnífico mestre,
o autor conta o seguinte, dirigindo-se a Fernando Barbosa,
que andava pelos quinze anos e também já era regular latinista (latino honesto, chama-lhe RESENDE):
Musas, ajudai-me a contar esta briga, na verdade ridícula,
no que consistiu e quais foram os dois contendores.
Foi o caso que quando tu, Fernando, te apresentaste
brincando com uma elegante varinha, o infante D. Duarte,
cobiçando-a para si, ordena-te que lha dês ou mesmo suplica-ta
ou até se prepara para obtê-la pela força e com todas as forças. Mas, tu não te deixas comover nem pelos pedidos,
nem pela violência, não lhe dando a cobiçada vergasta. Mas, tu, meu menino, não querendo obsequiar o outro menino,
quando já estavas quase subjugado, preferiste parti-la em
pedaços. Então o infante, cheio de cólera, desfez com as
mãos os laços da escófia que te escondia a cabeça rapada à
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289 /
escovinha e tu, sem os belos cabelos encaracolados e ridicularizado pelos companheiros, fugiste precipitadamente. Tudo
isto foi mal feito, porque um e outro ficaram afinal sem a
vergasta, quando ambos eram merecedores de duas vergastas.
Este engraçado episódio passou-se na nossa Coimbra
de 1527, quando a corte aqui se refugiara, fugida à epidemia
de tabardilho, que tantas vidas ceifava em Lisboa.
Já que estamos falando de doenças
−
sífilis, sarna, tabardilho
−
arrisco uma pergunta. Seria realmente a sarna a
doença de Fernão Barbosa como diz ANDRÉ DE RESENDE?
Não devia ser, pois a sarna não ataca o couro cabeludo.
E também não devia ser tinhoso o rapaz, como diagnostica
o nosso CAMILO, nos «Narcóticos», porquanto a tinha é doença
que se cura com a puberdade. Porque é que as tais bostelas
não deviam ser antes manifestações sifilíticas transmitidas
pelo pai, a aceitarmos o diagnóstico do seu indiscreto amigo
PEDRO MÁRTIR?
AIRES BARBOSA escreveu:
Epometria. Salamanca, 1515; Sevilha, 1520.
De Orthographia. Salamanca, 1517.
ln Aratoris Presbyteri Poema de Apostolorum rebus
gestis commentarium. Salamanca, 1516. Apud
Joannem Porras, in folia, em que, no dizer de
SCOTO, citado por NICOLAU ANTÓNIO, o nosso compatriota não foi só filólogo, mas filósofo e até teólogo.
Arii Barbosae Lusitani in verba M. Fabii. Quid?
quod & reliqua. Relectio de verbis obliquis. Há
desta obra um exemplar na Biblioteca da Univ. de
Coimbra.
Epigramma in laudem Petri Margalli.
Epistola Latina. O elogio e a carta vêm no compêndio
de «Physica» de PEDRO MARGALHO, Lente de Prima
em Teologia da Univ. de Coimbra, que termina com
uma elegia deste título: Ad juvenes studiosos bonarum artium Carmen. Salamanca, 1520.
De Prosodia scilicet Relectio, seu, de re Poetica & recta
scribendi ratione.
Epigrammátum seu operum Poeticorum. In 8.º
Arii Barbosae Lusitani Antimoria. Eiusdem nonnula
Epigrammata. Apud Coenobium Sanctae Crucis,
1536. Existe um belo exemplar na Bibliot. da Universidade, outro na Biblioteca Nacional e um terceiro
na colecção de D. Manuel lI.
Quaestiones quodlibeticae de qualibet re (VALÉRIO
ANDRÉ in Cathal. Moguntino).
/ 290 /
Por sua indicação publicou-se:
Carmen Bucolicum sive Egloga XlI de Mysteriis victae
Jesu Christi. Authore Alexandro Giraldino. Salmanticae, 1505.
Ocupemo-nos um pouco da Relectio de verbis e da Antimoria; por existirem na Biblioteca da Universidade.
A primeira consiste numa lição que proferiu aos alunos sobre temas
gramaticais respeitantes a certas expressões usadas por MARCO FABIO
QUlNTILlANO e aos casos indirectos:
Começa o livro por uma poesia de ANTÓNIO HONCALA,
dirigida ao leitor, na qual tece os maiores elogios ao seu amigo AIRES
BARBOSA, conforme se vê nesta tradução em prosa apagada:
Tu, que de boa vontade foges e desprezas as coisas novas, recebe este
presente do meu querido lusitano, que com igual brilho e fulgor cultivou
as duas línguas e ensinou em Espanha pela primeira vez o Grego, pelo que
mereceu o cognome de Grego, como também merecera o de Romano. Toma o
ouro cleantino do doutíssimo gramático que foi PALEMON e saboreia agora
a subtileza caledónica, pois ora é conduzido por aquele pelos bosques de
Estagira, ora te acompanha ensinando os primeiros elementos, outras
vezes, erudito, ergue-se em
rápido voo até aos astros e contempla a luz eterna dos lugares que Febo
ilumina com um clarão perpétuo, mas donde fogem para bem longe os
bárbaros e as corujas. Fim. Saude.
O elogio é insuspeito, pois HONCALA era oficial do mesmo
ofício e... espanhol,
Segue-se o trabalho de BARBOSA, que termina com o
seguinte:
Colofon: Dixi to doxa amen (louvores a Deus, amen). lmpressum
Salmanticae Idibus Iuniis (13 de Junho) anno a genesi liberatoris nostri
& salutiferi Iesu. M.D.XI. Arius ipse negat alienam se praestare culpam.
Quanto à Antimoria informamos que o interessante poema vem publicado num
livrinho bem bonito, encadernado em couro, juntamente com quarenta e quatro epigramas de AIRES
BARBOSA e ainda com um poema de JORGE COELHO, dedicado, como as outras
composições, ao Cardeal D. Afonso, irmão de D. João III. O delicioso
livrinho é ilustrado com um brasão de armas do Cardeal e abre por
/ 291 /
um elogio feito por JORGE COELHO ao nosso humanista, seguindo-se o
prefácio deste, depois o poema e por fim os epigramas.
O colofon diz que a obra foi impressa no Convento de Santa Cruz de
Coimbra em 1536 «sob a reforma de Frei Braz
de Braga» (D. Manuel lI).
Por elogiosíssima para o nosso ilustre aveirense, traduzimos a prosa da
dedicatória.
«JORGE COELHO ao seu AIRES BARBOSA S. P. D.
Li dum jacto e até ao fim, com espírito curioso e ávido, o teu
elegantíssimo poema, feliz rival do estilo lucreciano, pelo que te
felicito a ti, à tua pátria e a todos quantos têm uma alma justiceira.
Na verdade levantas o pendão de guerra contra a Loucura e trouxeste um
auxílio grande e oportuno à própria Sabedoria, já afectada e quase vencida.
Muito te ficarão devendo todos os sábios, a favor dos quais
combateste como corajoso lutador. Cristo, certamente, te cumulará de mil
graças, ao qual se dirige a tua Antimoria e para quem é o teu
objectivo, ao qual deves, enfim, as armas, a confiança, a inspiração,
com que derrotaste a Hidra de Lema, esse monstro quase inexpugnável, que é a própria
Moria.
Ó Bom Deus, quanta erudição, quanta probidade reluzem nesta tua obra: a
austeridade dá as mãos à ciência das coisas, a graça à eloquência, a
elegância dos versos à subtileza dos conceitos, em suma, reúnes a todas
as qualidades exímias o amor da religião e da piedade. Tudo isto era
preciso para combater uma fera tão bem armada e apetrechada.
A desbaratada Moria produzia para o futuro, é verdade, mas não ousou
compor um poema. Que morra de todo esta obra indigna; que se escorrace
do nosso meio! E eu cantarei os teus triunfos. E que te direi de mim, a
quem deste tanto prazer com este género de poesia? Foi como se eu
bebesse por uma suavíssima taça ou aspirasse os nepentes odoríferos. Se
até aqui me considerava ajuizado, agora, com a leitura do poema, sou-o
muito mais, a menos que antes eu já fosse um dos tais loucos, do que não
teria de envergonhar-me, sujeito como estava ao comum contágio... O teu
fármaco foi tão
bom remédio que me tornei a mim um pouco. Mas, apesar disso, fiz-me juiz
do teu trabalho: disso te peço perdão, doutíssimo amigo! Por ventura,
merecia eu ser juiz destes belíssimos e perfeitíssimos versos? Chego a temer que isto seja uma
prova de loucura... Peço-te que me digas por qual das duas alternativas
decides para a tese da tua obra.
O teu poema está fora de toda a crítica e por mim, nada mais tenho para
dizer-te senão que contribuirei com todas as
/
292 /
forças para elevar aos céus os dotes do teu engenho, dignos dos
maiores elogios e para recomendar a tua doutrina, que, aliás, se impõe
pelos méritos próprios. Saúde.»
Segue-se o prefácio, em que AIRES BARBOSA nos conta algumas passagens
da sua vida e os intuitos do seu trabalho.
Prefácio da Antimoria
«Quando, há perto de trinta anos, na Universidade de Salamanca, eu
prestava os meus serviços na milícia das letras e entre os professores
das Artes, era um dos que ensinavam aos jovens de Espanha ambas as
línguas, já então, sagrado Príncipe, eu ambicionava sobremaneira
oferecer ao erário do Senhor uma produção do meu pobre engenho, como
aquela pobre viúva exaltada pelo Evangelho.
Mas, como nesse tempo, nem os cuidados do ensino público, nem a
administração da minha casa, me permitiam
escrever ou reflectir senão nos assuntos das minhas obrigações, eu ansiava por aquele merecido e rico descanso, com que a nobre
Universidade de Espanha costuma galardoar no vigésimo ano do exercício
profissional os seus doutores insignes e já cansados pela idade.
Quando eu atingia essa desejada meta, eis que logo sou solicitado para
um novo trabalho de não menor responsabilidade, com a agravante de me
ser exigido em tempo mais breve. Foi o caso que o teu irmão D. João III,
ínclito Rei da Lusitânia, me enviou a Salamanca um correio com uma carta
solicitando que viesse ensinar certo menino já então elevado ao alto
cargo de Cardeal. Não pude negar ao supremo chefe da minha pátria a
possibilidade de oferecer a Deus a alta missão de te ensinar, divino
adolescente, esperança máxima, destinado dentro em breve a dirigir
tantas criaturas.
Sete anos de trabalhos durou esta outra nossa obrigação, que me esforcei
por ser perfeita, durante os quais expondo, ditando, discutindo, aprendeste as Letras juntamente com as outras
disciplinas das Humanidades. Todo este trabalho, certamente, te-lo-íamos
concluído num triénio, com o auxílio
e o vigor da tua inteligência, se a Corte, sempre instável nas
suas mudanças, nos tivesse permitido permanecer mais tempo num mesmo
lugar.
Agora que, acabadas as aulas e as lições, posso gozar na tranquilidade
do lar um plácido repouso, repasso na memória os pensamentos da minha
juventude.
Não julgo que deva conservar-me ocioso, mas, pelo contrário, empregar
estes desejados ócios em qualquer actividade útil. Não me agrada, na
verdade, voltar aos divertimentos,
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[Vol. XII - N.º 48 - 1946]
nem à caça, nem aos prazeres pouco próprios do homem
douto, mas antes seguir a primeira e verdadeira profissão varonil. Se,
vencido pela dificuldade da empresa eu sucumbir, então ainda terei o
recurso de reunir tudo quanto até hoje escrevi em louvor de Deus ou
compor, num derradeiro esforço, um novo trabalho. Estando assim a
cogitar na abundância dos assuntos sobre os quais escreveram tantos
autores, veio-me ao espírito compor a Antimoria. Primeiro pensei em
dar-lhe o titulo de Elogio da Loucura, por se encontrar esta obra em
todas as mãos, mas o Anticato de CÉSAR sugeriu-me antes aquele título
de Antimoria.
Esta obra, bem o sei, sacratíssimo Príncipe, leva-me mais longe do que
o permitem as minhas possibilidades e exigiria, não as minhas, mas as
forças do próprio ERASMO.
Contudo, dominei-lhe a doutrina e, embora me possam alcunhar de inepto
ou temerário, julguei contudo que em tal matéria o trabalho empreendido
seria agradável a Deus e às pessoas de sã consciência.
Na verdade, que melhor obra, mais digna, mais proveitosa, poderia ser
dada ao homem eloquente para ser tratada com as expressões e recursos da
Oratória e com os princípios ensinados na Retórica do que esta, que
propugnando pela sabedoria exalta Jesus e, combatendo os vícios,
desterra a insânia?
Creio, porém, que sob o peso duma tal carga há-de suar, ranger os dentes
de raiva e sentir falta de ar, todo aquele que
se abalançar a uma tal empresa, quanto mais eu, que reconheço a minha
insuficiência.
Eis o que tal respeito me parece que devo dizer neste prefácio da nossa
Antimoria, o que supomos também teria dito CÉSAR no princípio do seu
Anticatão(4), isto é, que ele tivesse manifestado o receio de perder a
causa ao censurar
Marco Catão, visto todos concordarem com Marco Túlio Cícero, cidadão
eminente que fizera o elogio daquele virtuoso romano a propósito dos
seus escritos oratórios. Também receio, com razão, que eu mesmo, inábil
em tantas coisas, não vá parecer ridículo ao numeroso público por atacar
o Elogio da Loucura, que, como se sabe, uma eloquentíssima criatura defendia como é voz corrente.
O nosso ponto de vista, porém, é muito diferente do daqueles antigos
que mencionei, porquanto CÍCERO, defendendo Catão, pôs-se do lado da
melhor causa, enquanto que CÉSAR, acusando-o, escolheu a pior. Aquele
enquanto honra
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o óptimo cidadão pelas suas virtudes, aponta-o como exemplo aos jovens
romanos, para que vivam como Catão viveu. Este, CÉSAR, enquanto lança em
rosto ao adversário o seu veneno, ataca-o por ser no século talvez o
único exemplo da probidade.
Voltando ao nosso caso: ERASMO defende a loucura, nós acusamos. Todo o
teatro aplaude a sua lindíssima comédia posto que pior; enquanto que a
mim, mal principio, os espectadores abandonam-me, por melhor que seja o
meu trabalho.
Aquele, conquanto elogie a insensatez, coisa indigna de qualquer elogio,
mostrando aliás quanto podem os recursos da sua inteligência e erudição,
é enaltecido com o cognome de Orador espirituoso, douto, insigne. Quem
dera que cristãos e teólogos desprezassem tais qualificativos naquela
obra, pois, se o Elogio da Loucura pode ser lido com sumo prazer pelos
eruditos e se a sua graciosidade subtil não faz mal às criaturas
inteligentes, outro tanto não acontece à turba-multa, para quem essa
leitura é nociva.
Que eu digo estas coisas, não por inveja, nem por maledicência, mas
por simplicidade e lealdade cristãs. Disso é Deus testemunha e a minha
consciência e tu mesmo, sacratíssimo
Príncipe, que durante vários anos me ouviste citar diversos autores, a
propósito dos quais tive ocasião de enumerar tantíssimos trabalhos.
Quantas vezes, eu, pequeno e humilde, te dei a conhecer e a estimar
grandes e ilustres varões, mais propenso neste particular a enaltecer,
porventura, quem menos merecesse, sem, aliás, negar o elogio a quem com
justiça fosse digno dele.
Mas, basta e voltemos ao ponto de partida. ERASMO discorreu em prosa
ondulante e correntia, como é do seu agrado. A nós aprouve-nos antes
imitar os versos de PRUDÊNClO, cuja medida, um tanto apertada, não nos
deixa divagar tão livremente. Não vamos, pois, cobrir-nos de glória com
a nossa Antimoria, que, porventura, não terá quem a aplauda. Tão pouco
não é a ostentação da inteligência, nem grande, nem pequena, que nos
move. Apenas aspiramos e esperamos
agradar a Cristo Ótimo Máximo com qualquer género de
trabalho e neste remanso da nossa terra invocar a musa silvestre para
que cante na avena suave e componha estes versinhos desataviados, que
depositamos no Erário do Senhor, como aquela pobre viúva que aí
depositou as migalhas das suas economias.
ERASMO, se quisesse cantar o seu arrependimento ou qualquer outro que se
deixasse estimular pelo nosso exemplo, esses colocariam oiro, prata e
pérolas.
A nós, porém, não será permitido louvar Deus dum modo banal ou
imperfeitamente. Por isso é que eu, um simples leigo e nada melhor do
que aquele Publicano, que,
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procurando conhecer-se a si próprio, não ousava erguer os
olhos para o céu, nem aproximar-se do Templo, repito, é
que eu, indigno de acercar-me da casa de Deus, te suplico,
meu bondosíssimo Príncipe, que não recuses levar com as tuas mãos o nosso
óbulo àquele Erário. Aumentarás o valor
da nossa dádiva pequenina, se esta for apresentada ao Bom
Jesus por ti, que és o mais alto Antístite de Portugal, com
estas palavras:
FALTA A FRASE EM REGO
àoolÉov eLxE, 7tléov
e_t_ov. Saude.»
(Se mais tivesse, mais daria).
Segue-se o poema, cuja tradução fica para o próximo
número desta hospitaleira Revista se ela quiser continuar honrando-nos
com a sua generosidade.
E, para terminarmos, traduzimos este epigrama em homenagem da conimbricense Joana Vaz, filha do Licenciado João
Vaz, o homem de gosto que construiu os Palácios de Sub-ripas e irmã de António Vaz que foi o primeiro que se doutorou na Faculdade de Teologia da nossa Universidade:
«Para Joana Vaz
Quem dos doutores, Joana Vaz, te julgará da nossa terra, ao ler os teus
escritos? Na verdade, as tuas composições são tão suaves e ao mesmo
tempo tão formosas, que a altiva cidade de Remo te reclama como oriunda
do Bairro de
Saburra, por tal forma o teu estilo é fluente e cheio de graça
latina e a tua linguagem tão eloquente e culta, como em raros
homens, que compuseram em Latim. Sinto hoje pena de
não ter podido visitar-te quando há pouco estive nessa tua
cidade(5), pois se agora me alegro com escrever-te, mais me agradaria
falar-te e sobretudo me daria prazer o ouvir-te
conversar comigo. É mais doce o fruto quando a gente o
colhe na própria árvore, como, também é mais agradável a água que se
bebe na própria fonte.»
Em face das datas apuradas nesta resenha biográfica
concluímos que AIRES BARBOSA antes de 1495 não podia ter
regido em Salamanca a cátedra de Grego, criada nesse ano.
Portanto, a carta de PEDRO MÁRTIR só poderia ter sido
escrita a partir de 1495, talvez em 1498, por ter sido fácil
dar-se a troca dos dois últimos algarismos (1489) como lembrámos.
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De 1495 a 1498 a sífilis tinha-se alastrado pavorosamente pela Espanha,
donde teria partido inicialmente. Ao contágio generalizado não teria
escapado o nosso famoso
compatriota, a darmos crédito ao polígrafo italiano, quer porque Vénus o
presenteara com o treponema de Schaudinn e Hoffmann, quer porque este
arranjou forma de se domiciliar no organismo do professor, por uma das
mil maneiras em que é useiro e veleiro, sem indagar se a vítima era um
insigne Mestre de Latim, Grego, Gramática, Retórica e um Poeta
delicioso.
Em reforço da nossa tese, acrescente-se que em 5 de Abril de 1489 ainda
PEDRO MÁRTIR se encontrava, não em Jaen, donde datara a carta, mas em
Córdova, pois há documentos que dão a sua estada na cidade mourisca até
12 de Maio daquele ano.
A carta de PEDRO MÁRTIR é, pois, um documento precioso a utilizar, não
em favor da doutrina precolombina da sífilis, como precipitadamente
muitos o fizeram, mas da
doutrina colombina, ao lado de muitos outros argumentos,
que não referimos por não ser esse o objectivo do presente trabalho.
Prof. ALBERTO DA ROCHA BRITO |