NADA
como o decorrer do tempo consegue obliterar entusiasmos circunstanciais
e graduar valores em justa escala. As conquistas incessantes da técnica,
incessantes e cada dia mais velozes, os novos ritmos de vida e o fluir
ininterrupto dos acontecimentos degradam e neutralizam um sem número de
factos passados, por sua ocasião com foros de notabilidade e
merecedores, bastas vezes, de deslumbrados alvoroços. Banalizados no
hábito cotidiano ou por novos inventos e descobertas amesquinhados na
sua utilidade e projecção, difundidos até à mais extensa vulgaridade ou
inteiramente lançados ao olvido em benefício de sucedâneos mais
eficientes e práticos, muitos fautores da comodidade individual ou
colectiva
−
pois só neste particular poisaremos a atenção
−
perderam a curto trecho todo o aspecto de sensacionalismo e quase parece
irrisória a efusão com que os receberam e festejaram no seu advento.
Nestas condições precisamente se apresenta o acontecimento que agora se
recorda
−
mera ninharia para quem se não dispa da propensão de avaliar pelas
facilidades de hoje as dificuldades de realização das gerações
precedentes e o não integre na época ronceira de há um cento de anos; e
nunca mais de uma simples curiosidade do passado aveirense, sem títulos
a figurar de caso histórico.
Passou há pouco
−
e eis a justificação destas linhas de despretensioso teor comemorativo
−
o
centenário do estabelecimento da iluminação pública em Aveiro.
Também de cá se pode pois afirmar com propriedade que foi o das «luzes»,
e ainda na primeira metade, o século XIX...
/ 215 /
Mal avaliam já as gerações mais novas, que só episodicamente encontram
as ruas da cidade desalumiadas, quanto esse empreendimento representaria
há uma centúria como demonstração de ousado progresso. A iluminação dos
centros urbanos parece hoje tão natural como a própria luz do Sol.
Entrou no rol das coisas comuns que não provocam sequer um reparo fugaz.
O contraste com os meios actuais, múltiplos e expeditos, imprime a estas
realizações de um passado ainda recente uma aparência de ridícula
mesquinharia. Mas não andamos nós a preparar todos os dias, com o relevo
dado à criação das grandes carreiras aéreas, ao radar
−
afinal, segundo parece, uma simples faculdade, intemporal e
inconsciente, do noctâmbulo e antipático morcego
−
às telecomunicações e a outras novidades do momento, futuros motivos
para a cómica apreciação dos nossos entusiasmos? Filho és, pai serás...
sentenceia o velho provérbio. Para os nossos risonhos comentários
aceitemos, pois, humildemente e com antecipada previdência, a reparadora
punição dos risos vindouros.
Registemos sem favor o nome dos homens
−
e há ainda entre os vivos quem conhecesse alguns deles, tão curto é,
afinal, o espaço de cem anos
−
que arrancaram Aveiro às cerradas trevas da noite. A iniciativa
−
rasgada iniciativa para a época, convenhamos
−
ficou-se devendo a uma prestante vereação presidida por Domingos dos
Santos Barbosa Maia, mais correntemente conhecido por Domingos Carrancho,
o qual contava como colaboradores três outros «homens da praça»,
burgueses conceituados, circunspectos e de consistentes cabedais:
Francisco José Barbosa, António Teixeira Ponce de Leão e Francisco
António do Vale Guimarães.
Domingos Carrancho, cuja alcunha ficou perpetuada na
lápide da rua em que o município quis consagrar os seus apreciáveis
serviços à cidade, e lhe adviera, a aceitar-se a informação de Homem
Cristo, de ser proprietário, em Verdemilho, de umas terras de cultivo
denominadas as «Carranchas», foi liberal devotado e, como tal, um dos
elementos pronunciados em 1828 pelas suas ligações com os
revolucionários do 16 de Maio e com eles se viu compelido a emigrar e a
amargar as contingências do exílio. Tesoureiro da alfândega local e um
dos mais considerados chefes cartistas aveirenses, como em 1842,
Bernardo Teixeira de Almeida Queirós, tio do romancista EÇA DE QUEIRÓS,
deixasse de ocupar a presidência da Câmara, ascendeu das de vereador
fiscal a essas funções e nelas se manteve até 19 de Abril de 1945.
Triunfante o pronunciamento que se propunha derribar os «Cabrais», o dr.
Luís Cipriano apresentou-se, então, nos Paços do Concelho e, em nome dos
vencedores, tomou a seu cargo os destinos da municipalidade.
/
216 /
A sua gerência, diga-se ainda como passageira e acidental
rememoração biográfica de um servidor de Aveiro que se vai tornando
injustamente esquecido, cotou-se como muito activa e
proveitosa(1).
Ficou assinalada por diversos empreendimentos como o calcetamento de
ruas e abertura de novos caminhos, obras de beneficiação no edifício
municipal, onde as funções públicas passaram a celebrar-se com mais
consentânea dignidade, fontes restauradas e melhoradas, construção do
cemitério do Outeirinho e outros mais
−
que sobretudo avultavam no confronto com o apático marasmo das
edilidades antecedentes.
|
Aos demais melhoramentos, que não traduziam, aliás, qualquer inovação
nem revestiam especial importância, pois apenas denotavam mais diligente
e vigoroso zelo, sobrelevou, evidentemente, pelo seu arrojo progressivo,
a
iluminação pública.
Vinha nimbada do interesse e da fresca sedução das novidades, trazia
prestígio à terra e... na chama bruxuleante e mortiça dos escassos lampiões
ainda os transeuntes raros colhiam o benefício de se guiarem, com
relativa segurança, no negrume das noites, pelas ruas desertas. |
Um lampião de azeite, em 1870, no Terreiro das
Carmelitas. |
Só algum
«bota-de-elástico»
− perdoe-se a inadequada expressão de agora para exprimir
casos já remotos
− com alma de Velho do Restelo, ou algum
noctívago interessado em furtar-se aos vigilantes rigores da «ronda», terá desestimado a iniciativa. Toda a restante população a acolheu com manifesto regozijo e oito anos passados a apontava ainda o «Campeão das Províncias» à cabeça das que mais honra trouxeram a Domingos Carrancho.
Esta providência municipal, segundo refere MARQUES GOMES, iniciou-se em
1844, com dois lampiões na porta da Ribeira, situada no actual Largo de
Luís Cipriano, e já então a única das sete antigas portas da muralha.
Parece duvidoso, no entanto, que assim houvesse na realidade
acontecido, salvo
/ 217 / se a deliberação da «sessão mista da Câmara Municipal com juntamente (sic)
com os Membros do Conselho Municipal» de 30 de Dezembro daquele ano serviu apenas para sancionar um facto consumado
−
como hoje usa
dizer-se.
Com
efeito, só na mencionada sessão foi «exposto pelo Fiscal Francisco
José Barbosa que era indispensável estabelecer-se hum o dous lampeoens no
local da porta da Ribeira para dar lus neste lucal, que sem ella se fas
horroroso principalmente nas noutes escuras»... Assim o regista o
escrivão da Câmara na acta respectiva, usando pessoalíssima ortografia,
avessa a toda e qualquer regra.
Essa porta da Ribeira, destruídos os desmantelados restos das muralhas, para aproveitamento dos materiais nas obras da barra,
que o engenheiro Luís Gomes de Carvalho efectuou por volta de 1808,
manteve-se por largos anos ainda, até 1854. Por ela se fazia todo o
trânsito entre as zonas correspondentes à antiga vila e à «Vila Nova» e
fácil é de crer que muito escura a tornassem os espessos muros e a
patina secular da pedra. Transpô-la equivaleria a atravessar um túnel, na cerração das noites sem lua, e por isso não levantaria
oposição a esclarecida proposta: antes lograria unânime louvor.
Um problema de difícil resolução embaraçava, todavia, a empreendedora
vereação. Os recursos do município eram parquíssimos. A exiguidade de hoje, tantas e tão justificadas vezes
invocada, toma comparativamente proporções de abastança nababesca.
Dezasseis meses antes desta resolução, essa mesma edilidade, havendo o
administrador do concelho solicitado a nomeação de um amanuense para o
expediente da respectiva secretaria, por intermédio do governador civil,
a este se lamuriava:
«Atendendo à pequenês deste Concelho é certo que bem cara está já a sua
Administração porque os ordenados dos seus empregados montão já a
487.840 reis annuais, e não obstante quer o Administrador por motivos do
Expediente do serviço mais hum amanuense em cuja necessidade ou não
necessidade não quer entrar porque uma tal pretensão ha-de ser atendida ou denegada
conforme Vossa Excelencia e o Ilustre Concelho entenderem ser de
justiça, e cuja decisão aguarda para cumprir...»
As endémicas dificuldades financeiras, então como sempre, criavam
estorvos de toda a ordem, mas aproveitavam-se também, se calhava, como pretexto para exercer uma política pequenina
de compadres ou... inimigos. Que não era para graças nem com espírito de
largas tolerâncias o corpulento
/ 218 /
e desempoeirado Domingos Garrancho, e bem no ficara conhecendo o ferrador da rua do Alfena, João Correia de Almeida, que não soubera comedir-se nos seus férvidos ardores miguelistas! Neste caso particular do amanuense se encontra uma amostra de vindicta sectarista, pois o ofício ao primeiro magistrado do distrito prosseguia:
«...mas no primeiro caso (o deferimento da pretensão) a Camara espera e roga a Vossa Excelencia se digne
recomendar ao respectivo Administrador que por nenhum modo admita para o lugar requerido o indivíduo indigitado por ser hostil à mesma Camara...»
A verdade irrefutável, no entanto, era a Câmara, cujo magro orçamento de receitas não excederia os três contos de reis e tinha os rendimentos do concelho já destinados, sem o mínimo créscimo
provável, a diversas obras de interesse público, não poder suportar naquele ano de 1845 a despesa com os dois lampiões projectados. O recurso, e nem outro remédio se inventou até hoje de maior eficácia, consistia em lançar mão do imposto. A acta da referida sessão extraordinária de 30 de Dezembro, continua nos seguintes termos, aludindo à
despesa a efectuar:
«...por isso se carecia crear hum pequeno imposto para a costear, e que ao seu parecer lembrava cinco reis em cada hum quartilho de geripiga que n'este concelho se vendesse por qualquer medida
ficando a sua fiscalização comprehendida nos limites das Posturas que regem o direito do Vinho e agoa
ardente...»
Passou a ser apreciada a proposta e bem ponderadas foram todas as
vantagens e inconvenientes da sempre antipática criação de um novo tributo, lançado embora sobre uma bebida então só ao alcance, pelos modos, dos mais bafejados da fortuna, mas hoje, como os obsoletos Iampeões de azeite, lançada em descrédito e desfavor pelo estimulante
«wisky», os «champagnes» e alguns afamados vinhos estrangeiros ou algum Porto provecto. Por fim, prudente e gravemente sopesadas todas as razões,
«...os mais Vereadores e Conselheiros, conhecendo que semelhante genoro não affectava os interesses do publico por ser genoro de mero luxo unanimente aprovarão a
imposição do dito Tributo e ao mesmo tempo detreminarão que esta mesma decizão
/ 219 /
fosse remetida ao Conselho de Distrito para receber a sua confirmação
quando a achassem merecedora.»
Alcançadas, assim, as possibilidades para o importante melhoramento e
porque, porventura, a democratização do uso da geropiga aumentasse
consideravelmente o consumo ou se houvessem ultrapassado de longe as previsões,
durante o ano de 1845 foram colocados candeeiros em diferentes locais de maior movimento e necessidade e definitivamente se estabeleceu a
iluminação pública em Aveiro, que passou desde então a figurar na
vanguarda das cidades provincianas que usufruíam esse beneficio da
civilização. Por iniciativa devida a Pina Manique e tomada na intenção
de obstar aos constantes assaltos nocturnos e repetidos crimes de assassínio e roubo, as
ruas de Lisboa já estavam alumiadas na quase totalidade há mais de meio
século. O Porto e algumas outras cidades dispunham também da iluminação pública; mas nem todas a possuíam ainda e o
cioso brio bairrista não era indiferente a esse facto desvanecedor.
Com excepção do ano económico de 1850-1851, em que foi votada a verba
de 480.000 reis, tendo em consideração o «aumento de mais alguns
candeeiros», a quantia inscrita nos primeiros três lustres oscilava
entre trezentos e quatrocentos mil reis. Generalizara-se, entretanto, e
tornara-se como hábito adquirido, indispensável aos sempre insatisfeitos munícipes. Actualmente, note-se
−
e muito escassamente contentando as crescentes e
insaciáveis exigências da população
−
a iluminação das ruas da cidade
importa em cerca de cento e setenta contos. Tão somente umas
quatrocentas e tantas vezes mais...
O assunto passou, de resto, a representar uma das dominantes
preocupações das edilidades subsequentes, as quais procuraram melhorar gradualmente esse serviço público e assegurar-lhe o máximo da eficiência. A vereação de 1850, decerto por carência de pessoal, deliberou abrir concurso
para o
fornecimento da luz no decurso desse ano, mas não foi, afinal, bem
sucedida, na bem intencionada experiência. A 21 de Dezembro reconhecia ser mais proveitosa e aconselhável a prática
anterior de administrá-lo directamente. A resolução, exarada na acta respectiva, ficou expressa na seguinte redacção, que
textualmente reproduzimos, respeitando a anárquica ortografia do escrivão municipal:
«Foi mais ponderado que mostrando a experiencia que o publico não é bem
servido continuando andar a Elominação desta Cidade por arematação vista
a falta de emprezarios que ofreção as garantias
/ 220 /
percizas de bem comprir os Seus ajustes; foce a mesma Elominação adeministrada por esta Camara como era antes do anno corente.»
O concerto de lampiões, cada ano em maior número, e os vidros e
pintura constituem uma rubrica orçamental no ano de 1862-1863, do
montante de vinte mil reis, e no ano seguinte a verba de quatrocentos e
oitenta mil reis, prevista para as despesas desse encargo, foi excedida em 6.846 reis, «acréscimo resultante do aumento de candeeiros, concertos nos mesmos e
do preço do azeite»
−
que, então, claro está, nem vislumbres mostraria de atingir o que hoje
em dia se tornou corrente no «mercado negro»...
As necessidades e encargos tornam-se sucessivamente mais avultados. Em
Dezembro de 1868 impõe-se a conveniência de reformar uma grande parcela
dos candeeiros, que já se não encontravam em condições de ser utilizados, e de distribuir mais uma dúzia por algumas artérias mais deficientemente
iluminadas, mas, com zelosa precaução administrativa, delibera-se que seja «tomada em consideração a verba votada para
este fim no orçamento.»
Dois meses depois registava-se a primeira alteração digna de nota e o primeiro progresso. Os lampiões, móveis até então e de
içar com cordas, são substituídos por outros de modelo fixo(2). Para esse fim inscreve-se uma verba
de 421.500 reis no orçamento suplementar do ano económico de
1868-1869, que é justificada com as seguintes razões,
«Considerando que é necessário aumentar a illuminação pública da
Cidade, alterando o sistema actual, e tornando fixos os candieiros o que não é mais económico mas
melhora muito as condições em que se acha presentemente;
Considerando que a verba votada no orçamento ordinário é insufficiente e que é necessário habilitar a Camara para
dispender por este capitulo mais do que està votado...»
e recebeu plena aprovação do Conselho de Distrito.
A luz de azeite subsistia ainda nessa data, mas com exígua duração.
/ 221 /
*
*
*
Não será, porventura, importuno e descabido aproveitar este ensejo para lembrar, embora a largos
traços, a evolução dos
sistemas de iluminação adoptados na cidade
− que neste, como noutros
aspectos, foi naturalmente acompanhando, lesta ou vagarosamente, os
surtos do progresso.
Ignoramos a data precisa
até quando se manteve a iluminação a azeite.
Pode afirmar-se, porém, que perdurou um quarto de século seguro, sabido,
como é que o uso do petróleo, iniciado, aliás, por volta de 1850, só
veio a generalizar-se depois de 1861, quando Rockefeller, perseverando
dos primeiros insucessos, logrou lançá-lo no mercado mundial a preços de
combate, e uma vez que em 1868 se usava ainda o azeite.
Substituíram-se os candeeiros, desde que assim o exigia o novo
combustível empregado, mas mantiveram-se as lanternas e as consolas precedentemente
instaladas nos locais de maior importância e mais frequentados.
Nos primeiros tempos o município manteve ainda sob a sua imediata
gerência todo o serviço da iluminação, mas em Novembro de 1879,
deliberou arrematá-lo em hasta pública e anunciar na imprensa o respectivo concurso, no qual seria
compreendido o
fornecimento de petróleo e torcidas e a reparação dos candeeiros, escadas e demais objectos relativos ao mesmo serviço. Nem
sempre os adjudicatários
− que os homens pouco diferem de geração para
geração
− cumpririam integralmente as suas obrigações, pois algumas vezes as queixas
chegaram à Câmara e esta viu-se na necessidade de invocar as multas
cominadas pelas condições de arrematação, quando se verificasse qualquer falta ou irregularidade. Não
foram, apesar disso, tão imperiosos os motivos de censura que levassem
a rescindir, como no tempo do azeite, o contrato firmado, e este pôde permanecer
nos anos seguintes.
O número de candeeiros foi
num crescendo contínuo, beneficiando
cada vez maior número de ruas e nos últimos anos em que se empregou
exclusivamente o petróleo a despesa montou a mais de um conto de reis, importância, sem dúvida, muito
pesada em relação aos parcos réditos municipais.
E porque neste ponto vem a talhe de foice, perdoe-se aqui mais uma
divagação um tanto à margem do assunto e da exacta ordenação
cronológica. Estava-se, por essas alturas, em plena e indisputada
soberania do petróleo como combustível, no fastígio das fascinações produzidas pelas colossais
fortunas alcançadas na sua exploração. Surge então
/ 222 /
em Aveiro, inopinadamente, uma alvoroçante nova
−
ilusória, por infelicidade nossa. Encontrara-se um jazigo petrolífero no próprio centro da cidade, a uns
escassos metros da ria, no local onde estivera implantado um pano da vetusta muralha; nada
menos do que no ponto em que está hoje instalado o Clube dos Galitos! E
a ingénua credulidade indígena, à primeira suscitação desperta e
desarvorada, desbordou de esperança e contentamento, anteviu o Eldorado na vaga miragem
tentadora...
Removidos os escombros do antigo Paço Episcopal(3), destruído em 1854 por um violento incêndio, e beneficiando do generoso
e filantrópico legado do Conde de Ferreira, construiu-se no terreno vago um edifício para as aulas de instrução primária. O prédio não reunia, porém, as condições já exigidas na
época e, por essa consideração, não chegou a ser utilizado para escola. Apenas aproveitado pelo município, durante algum tempo, como arrecadação de materiais, foi vendido em hasta pública, no ano de 1876, ao negociante José Maria de Oliveira Vinagre, o «Vareiro», pela quantia de novecentos mil réis, para no seu lugar construir uma casa destinada
ao seu estabelecimento comercial.
A loja do Vareiro, muito conhecida e afreguesada, na desconexa promiscuidade dos artigos díspares, nos engordurados balcões de cor indecisa, nas prateleiras recamadas de pó, no pontilhado negro das paredes a testemunhar as gerações de mosquedo impertinente, nos clássicos mochos que ofereciam poiso aos linguarudos
habitués da locanda, confundir-se-ia com qualquer das congéneres. Somente o proprietário, um tanto mais jactancioso, gostava de fazer escutar as suas opiniões alcandoradas em certezas e, ali, na Praça da erva, sem émulo que lhe ensombrasse a esperteza enfaticamente exteriorizada, bem podia dar largas ao natural pendor de alardear
pretensos méritos e vangloriar-se da sua arteira finura.
Pois a sorte, pródiga de favores ao exuberante lojista, lhe reservaria
ainda o prémio taludo da sua vida próspera e um motivo de magno tomo
para a inata blasonaria. Imprevistamente, ao abrir nas térreas
dependências interiores do estabelecimento um corriqueiríssímo poço,
porventura fadado a encontrar alguma água salobra quase desprezível,
foi surpreendido com evidentes vestígios de petróleo. Aceleradas as escavações, em cúpido afã, os indícios, claros e iniludíveis, aumentaram ainda. E Vareiro, confiado nas benesses da sua estrela protectora, homem prático e realista, perante o facto concreto
que os sentidos afinados acusavam, infalíveis, nem
/ 223 /
dúvidas concebeu: Tinha ali, na sua casa e na sua terra, a fortuna
inesgotável, o precioso petróleo que produzira arquimilionários. Não
conteve o entusiasmo esfusiante: propalou a descoberta inapreciável,
chamou a música para a celebrar com digno e festivo relevo, fez
estoirar foguetes a assinalá-la.
Somente esquecera, no delírio da alegria, um insignificante pormenor.
No armazém onde escavava o poço guardara, e continuados anos baldeara,
os bidões de petróleo do seu mesmo negócio, e as escorrências do transvasar
constante do vasilhame haviam-se infiltrado no chão permeável,
entretecendo, num longo trabalho de sapa, o ardiloso, o imanente castigo
da sua farófia. Como o rebentar de irisada bola de sabão, o sonho
enganador desfez-se em desapontamento e amargo desaire. Aos aveirenses, na plácida urbe natal, resta, contudo a consolação de não sentirem a sua terra
um permanente motivo de cobiças inconfessáveis nem, talvez, um perigoso fermento de intrigas internacionais.
*
*
*
A iluminação a petróleo só no ano de 1890
− desta vez apenas com meia
centúria de atraso da capital
− veio a ser trocada por outro sistema mais
moderno, eficiente e consentâneo com as aspirações e necessidades do
fim do século.
Na sessão camarária de 28 de Março de 1888 o vereador
António Vieira dos Santos, servindo à data de presidente, declarou haver
sido proposta ao município, em diversas ocasiões, a
iluminação
da cidade por meio de gás, sistema de que já dispunham várias
localidades congéneres
− e, certamente se consideraria desdouro se todas
fossem
−
e até algumas vilas
− facto que tomava aspectos menos lisonjeiros.
Não escondendo o empenhado brio bairrista «entendia que Aveiro não devia
ficar indiferente a este movimento de progresso e por isso propunha
que a Câmara deliberasse sobre a maneira de realizar este
importantíssimo melhoramento». A vereação, provando, como intérprete
legítima e fiel da população da cidade, o seu fervoroso interesse pelo
empreendimento sugerido, sem hesitação se manifestou plenamente concorde
e por unanimidade deliberou abrir concurso, pelo prazo de vinte dias,
«para o fornecimento de gás destinado à iluminação pública».
Os concorrentes não acorreram tão prontos como as repetidas propostas,
mencionadas pelo vereador Vieira dos Santos, deixariam supor. Na realidade, só decorridos mais de doze meses foram apresentados três
requerimentos pretendendo a concessão.
/ 224
/
|
Na
primeira década deste século (séc. XX), Aveiro era iluminada com
gás. (Postal
ilustrado) |
Assinavam o primeiro William H. Hanke, Leopoldo Augusto das Neves,
António de Oliveira e Castro e Ricardo de Melo Corte Real, os quais
− e
parece elucidativo notar não terem passado mais de dez anos sobre o
exemplo dado por Paris, o prestigioso modelo quase invariavelmente
adoptado na época para todas as modas
− se propunham estabelecer a luz
eléctrica «que em todas as capitais da Europa, assim como nos Estados
Unidos se está usando com grande vantagem», e cujas qualidades
−
economia, limpeza, perigo de incêndio praticamente nulo, e maior poder iluminante
− elogiavam sem reserva. A proposta, embora rejeitada com argumentos de natureza exclusivamente administrativa, deve ter parecido
demasiadamente ousada à provinciana prudência da edilidade. Uma douta comissão de técnicos encarregada de estudar o
assunto em Lisboa não chegara, alguns anos atrás, a formular o sólido
parecer de que a luz eléctrica nunca poderia adaptar-se à utilização pública?! A capital do reino, com efeito, saltara por cima da autorizada opinião e há quase uma
década a vinha desmentindo de forma inequívoca, mas melhor seria não
entontecer com o exemplo das grandes metrópoles e dar tempo ao tempo, sem cair em precipitada tentação. Tomaria jeitos de verdadeira temeridade tentar
/ 225 /
[Vol. XlI - N.º 47 - 1946]
de um salto único as duas etapas. Julgou-se impraticável a proposta e a
sessão prosseguiu na apreciação das demais.
Subscreviam os dois restantes requerimentos Aloísio A. de Seabra e
Diogo Souto, apresentando-se este em representação de uma empresa
portuense. Foi a sua proposta considerada, nessa sessão de 4 de Julho de
1889, a mais vantajosa e conforme com os propósitos camarários, e em 5
de Agosto seguinte lavrava o secretário do município, como seu tabelião
privativo, a escritura firmando o contrato «para fornecimento de gás,
destinado à iluminação pública e particular da cidade». Outorgaram no
contrato o presidente da Câmara, Manuel Firmino, que para esse fim
recebera poderes na primeira daquelas sessões, e o respectivo
concessionário Diogo Souto, o qual previamente depositara como caução,
satisfazendo uma das cláusulas do concurso, 4.500.000 réis em
inscrições.
Os trabalhos para a instalação encetaram-se sem qualquer delonga e com afanosa actividade, no desejo de não esgotar o prazo de quinze meses
fixado para o início do fornecimento. De facto, nos
princípios de 1890
já se encontrava construído o
gasómetro, na rua da Estação, e ainda se
estava a mês e meio da data marcada quando o adjudicatário solicitou a
primeira autorização para inaugurar a luz. A municipalidade indeferiu
a pretensão, visto que não só faltava colocar alguns candeeiros, mas não
fora ainda nomeada a comissão de peritos para a antecipada verificação
do modo como tinham sido cumpridas as obrigações convencionadas.
Só
depois de executada esta formalidade e apresentado o relatório da
comissão(4), constituída pelo dr. Joaquim de Melo Freitas, o engenheiro
José Maria de Melo e Matos e o serralheiro João Augusto de Sousa, a
Câmara
−
que, aliás, deixava transparecer o nítido empenho pelo novo melhoramento
citadino, rogando aos seus delegados a máxima urgência no parecer
−
anuiu ao requerimento do «director da exploração do serviço de
gás», L. Soliveau, para se proceder à inauguração provisória.
A companhia, no entretanto, acendera no dia
6 de Outubro de 1890 os candeeiros da rua da Estação e do Largo Municipal, efectuando a primeira
experiência pública e oferecendo à impaciência da população o ensejo de satisfazer a fervente curiosidade
em que a trazia o almejado melhoramento. Mas,
oficial
e integralmente,
a
iluminação a gás
− imagine-se com que
sensacional expectativa e quantas exteriorizações de contentamento!
−
estreou-se a 19 de Outubro.
/ 226 /
Fixou-se dias depois o horário para o acendimento e extinção das luzes
nas várias quinzenas do ano, consoante a duração do dia, e nomeou-se,
como as regras da prudência aconselhavam, um amanuense para fiscalizar a
respectiva execução. Durante as mais longas noites de inverno deveriam
estar acesos todos os candeeiros pelas 5 horas e 20 minutos e começariam
a ser apagados pelas 6 e 20 da madrugada; na altura do equinócio do
verão conservar-se-iam acesos durante sete horas, a contar das 8. Se atendermos ao facto de os candeeiros de petróleo se apagarem
por si mesmos quando acabava de consumir-se o combustível, também no aspecto da duração se haveria de
reconhecer uma apreciável melhoria.
E se lembrarmos o ajustamento da hora ao meridiano de Greenwich e ao
costumado avanço estivaI dos relógios, forçoso será concordar que se não progrediu muito, nem muito
era necessário, de então para cá.
Os encargos da iluminação, com a mudança para o novo sistema, treparam bruscamente para mais do triplo, ascendendo a 3.500.000 réis anuais e absorvendo mais da quinta parte
das receitas concelhias. E o número de candeeiros,
ora aumentado por espontânea decisão camarária, ora a solicitação dos
munícipes, viria a elevar-se, anos depois, a duzentos e oitenta e oito,
desfrutando então a cidade, cuja área estava ainda longe das dimensões
actuais, de uma iluminação que podia qualificar-se de excelente. |
|
Dois
candeeiros de gás no antigo portão do Jardim Público, demolido em
1945. |
O petróleo não foi desde logo inteiramente banido. Ao contrário,
manteve-se longos anos ainda, e nalguns locais
/ 227 /
não abrangidos pelo contrato do gás, posteriormente a este, veio a
empregar-se em novos candeeiros. Assim sucedeu, por exemplo, no
cemitério, onde oito foram colocados em Abril de 1891. As persistentes e
arreliantes dificuldades financeiras da municipalidade não se compadeciam com
o «gasto demasiado para o encanamento do gás», e, não havendo lugar para
opção, esse único processo restava para obstar, durante os
enterramentos, nas noites de mais profunda escuridão, a «roubos,
estragos e até profanações que pudessem dar-se no cemitério público da
cidade». Cinco anos mais tarde; Manuel Firmino, justificando a proposta
para a Câmara nomear uma comissão com o encargo de estudar a reforma e
alargamento da iluminação, que entretanto se revelara deficiente, não
oculta a sua pungida desconsolação «por ela ser feita a petróleo em
alguns pontos». E já em pleno século XX, no ano de 1901, o município
deliberou colocar dois desses antiquados candeeiros na estrada dos
Álamos.
Todavia o gás dominara quase em absoluto desde início. Toda a parte
urbana, na via pública e nas habitações e estabelecimentos principais, o
tinha, na generalidade, instalado.
Ao princípio tudo pareceu exacto e perfeito, que o regozijo de alcançar
tamanho beneficio sobrepunha-se entre a população a todo o pretexto de
crítica por quaisquer insuficiências. Mas os entusiasmos arrefecem em
curto lapso de tempo e, em regra, não pecam os agregados humanos por excessiva
indulgência na apreciação de quanto julguem ser-lhes devido. Os serviços
da empresa fornecedora do gás nem sempre foram, na realidade, de molde a
contentar cabalmente e não tardaram, por conseguinte, os vereadores e o
comissário de polícia a fazerem-se eco das recriminações por esse facto suscitadas. As queixas surgiram, de vária ordem e em todos os ocasionais ensejos. Ora em dias sucessivos a iluminação
se apagava anteriormente à hora fixada ou algum candeeiro ficava por
acender, ora a pressão diminuta dava em consequência a redução da
intensidade luminosa dos bicos. As ruas demoravam excessivamente a ser
repostas no primitivo estado depois de efectuados novos encanamentos. Os
proprietários dos terrenos contíguos ao gasómetro atribuíam a seca
verificada nas suas plantações aos resíduos da destilação da hulha que
se infiltravam com as águas pluviais. O Delegado de Saúde, consultado como autoridade competente sobre o assunto, julgou-se sem elementos bastantes para se
pronunciar «porquanto só por análise especial feita a essas águas se poderia conhecer o grau de decomposição em que se encontravam». A corporação dos bombeiros voluntários, oito
anos após a inauguração do gás, adverte a Câmara da inobservância de
uma das disposições do contrato
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e indu-la a exigir da companhia a colocação de uma torneira de
segurança em cada prédio, no prazo de quinze dias.
Sem transtorno de gravidade nem recurso a aplicação de sanções
coercivas, que nunca passaram da ameaça à concretização, com maior
diligência ou dilacções enfadonhas, as deficiências obtiveram sempre
alguma solução satisfatória. Vinte e seis anos e meses, com mais
motivos, afinal, de elogio que de censura, perdurou o gás e durante esse
período pôde registar-se ainda uma vantajosa inovação técnica, com o avanço do
simples bico inicial para a manga de incandescência, tipo Auer von
Welsbach, mais económica, com uma duração que ultrapassava as mil
horas de uso, e de maior poder iluminante. Desse aperfeiçoamento
beneficiou um total de 87 candeeiros, distribuídos pelos pontos mais
centrais ou de trânsito mais intenso.
A conflagração de 1914-1918, com o seu longo cortejo de calamidades e
perturbações, não poupou Aveiro à repercussão dos seus malefícios.
Dependendo o gás das importações do carvão, já em 1912, em resultado de
uma greve dos mineiros ingleses, a iluminação da cidade estivera
reduzida, cerca de dois meses, quase a metade, mas então a escassez de
transportes marítimos acabou por criar à companhia concessionária
insuperáveis obstáculos para o cumprimento das obrigações a que se prendera. E deu-se o retrocesso para
o petróleo
−
uma sensaboria arreliante a acrescer aos concretos prejuízos de natureza
material.
O Senado Municipal nomeou na emergência
para estudar meticulosa e
judiciosamente a solução do instante e melindroso problema sobrevindo
com a guerra
− uma comissão composta pelos sr. dr. Luís de Brito
Guimarães, Bernardo Torres e José Casimiro da Silva e, apesar da vigorosa reacção manifestada em certos
sectores da opinião pública, votou a rescisão do contrato com a
Companhia do Gás, em sessão de 8 de Fevereiro de 1917. Dez dias depois a
cidade voltava a ser alumiada a petróleo, com cento e cinquenta
candeeiros adquiridos à própria empresa fornecedora do gás
− a qual deles se premunira,
de acordo com
as previsões do contrato, para acudir a qualquer fortuito caso de força
maior.
Os oposicionistas à deliberação municipal, enquanto não se efectuou o
levantamento das canalizações, insistiram nas suas objurgatórias mais ou menos ásperas e
o velho «Campeão das
Províncias», na vanguarda dos descontentes e fiel à memória e ao
ditirambo da figura de Manuel Firmino, seu fundador e principal obreiro da instituição do gás, mostrava-se profundamente
preocupado com a circunstância de as despesas, longe de acompanharem o
decréscimo do número de candeeiros
− nessa data haviam já desaparecido algumas dezenas
−
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se tornarem, pelo contrário, ainda mais pesadas, e descia à análise minuciosa dos gastos:(5)
«Só o custo do petróleo orça por quási noventa escudos; fora o custo dos vidros; fora
o custo das torcidas (oh! perdulária
administração que nem ao custo das torcidas atendia!); fora custo do
pessoal que vence diariamente.»
Estava Aveiro pior que nunca, afirmava o decano dos jornais da província, esquecido das velhas e tremeluzentes candeias com
que se alumiavam os seus primeiros redactores, quando em 1852 o
trouxeram à publicidade. E alarmava-se o conceituado e conceituoso periódico, pouco confiante da índole pacífica dos aveirenses, tão pouco inclinados à violência:
«Há ruas inteiras desprovidas de luz onde, de longe a longe bruxuleia
um dos pavios; pode assaltar-se, ferir-se, matar-se sem temor, porque a
própria polícia desapareceu da circulação.»
Entretanto a pacatez proverbial da cidade, ainda quando os candeeiros
estiveram reduzidos à insignificância de 76 e não dando luz, aliás, por
mais de quatro horas em cada noite
−
e noite que não fosse de luar pois
nesse caso se suprimia a iluminação por escusada
−
continuou sem alteração digna de registo. Meses depois, com natural satisfação, instalavam-se nos pontos de maior movimento, como as pontes do Canal Central, Praça da República, Largo da Estação, alguns poucos candieiros «Wizard», de luz clara e intensa, de manga de
incandescência, também alimentados a petróleo. Recorreu-se também, por
algum tempo, aos gasómetros de acetilene, e assim se foram arrastando
com provisórias soluções de recurso quatro longos anos de confrangedora
penúria.
*
*
*
O problema da iluminação da cidade carecia de capaz e definitiva
solução, Ao gás, uma vez arrancadas as canalizações, não era prático
nem aconselhável e oportuno regressar-se.
Voltaram-se pois as atenções para
a electricidade, já então
extensamente difundida no país, e logo em 1917 a Câmara, presidida por Bernardo Torres, entabulou negociações com um industrial vianense no sentido de a empregar após o termo da guerra. O momento, porém, não era ainda favorável a
empreendimentos dessa ordem e só a vereação imediata, da presidência do dr. Lourenço Peixinho, logrou enfrentar o
assunto com o desejado êxito.
Na sessão municipal de 18 de Março de 1920 procedeu-se à apreciação de quatro propostas apresentadas ao concurso,
/ 230 /
tempos antes aberto, para «fornecimento de energia eléctrica destinada à
iluminação». Apresentaram as propostas Artur Sérgio, como director da Electro Indústria do Norte; Gregório Correia Pinto Rola, em nome da
Sociedade de Minas e Metalurgia; António Lourenço da Cunha (o mesmo que
já estivera em contacto com o município em 1917), na qualidade de
administrador-gerente da Companhia Hidro-Eléctrica do Varosa; e dr. João
de Almeida, pela Empresa Electro-Oceânica.
|
O centro da cidade no período em que foi iluminado
com luz «Wizard». |
Foi adjudicada a concessão a
esta última, justificando a vereação a sua preferência pelos seguintes motivos: «A Empresa Electro-Oceânica é uma sociedade recentemente constituída por pessoas
da maior respeitabilidade e com um capital superior à garantia que a Câmara pudesse exigir, em caso, não esperado, de qualquer desastre. Milita mais em favor da escolha feita por esta
resolução, nos termos da cláusula quinta do programa do concurso, o facto de ser uma empresa local, que, despendendo capitais locais, para a localidade chamará outros muito
importantes e que muito contribuirão para o desenvolvimento moral e
material, não só do concelho mas de toda esta vasta circunscrição
administrativa». A edilidade, como se verifica,
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não quis cingir-se à comum singeleza ao votar a compreensível e justa escolha de uma empresa da terra. Deixou-se invadir por desmedido e ingénuo entusiasmo, ao
romântico sabor fontista que nas viagens em caminho de ferro chegava a antever quase a salvação nacional, e até
ao extremo de crer nos benefícios de ordem moral, resultantes de uma modesta organização financeira aveirense, em toda uma ampla e indeterminada circunscrição administrativa.
Mas não se negará, em momento de tamanha efusão, inteira e fundada oportunidade à Proposta do vereador Manuel Maria Moreira, na circunstância fiel intérprete dos sentimentos dos seus conterrâneos, para levantar-se a sessão
− «visto tratar-se dum grande melhoramento para a terra e dever por isso considerar-se de verdadeiro regozijo público» o acto oficial que o decidia. Ainda mesmo descontadas as contestáveis vantagens candidamente previstas para a moralidade aveirense, havia sobejas razões para não deixar a meritória deliberação sem uma clara afirmação de júbilo.
Cerca de quinze meses demorariam os trabalhos da nova empresa até à
consumação do importante melhoramento. A cidade, contudo, não esperaria
tão longo tempo por uma primeira amostra da iluminação eléctrica, aliás já empregada no teatro. Experimentaria meses antes, na
Feira de Março de 1921, o novo sistema, graças a uma oferta da recente e
pouco duradoura Empresa Auto-Metalúrgica, dirigida pelo então tenente Francisco Maria Soares, a qual, a um rasgo de inteligente propaganda quis aliar um
prestimoso serviço, com laivos de sensação mormente para aquela parte da população que nunca lograra observar a maravilhosa «luz sem chamas». Os aveirenses, depois de apreciarem essa concludente demonstração, com mais veemência nutriram o desejo de desfrutar os benefícios do novo melhoramento, cuja
inauguração veio a registar-se, enfim, a
25 de Setembro desse ano.
Dia memorável foi o da ambicionada inauguração. Ao anoitecer, a população, espectante, estava na rua, em grande parte, para presenciar o primeiro acender das luzes. A pequenada, ao
vislumbrar os primeiros sinais de incandescência nos filamentos das lâmpadas, a que ninguém chegara lume, soltou um festivo, longo e maravilhado ah! de estupefacção. E, num
crescendo de tom e de admiração, fascinada o elevou até a luz atingir o auge da intensidade. Durante dias e semanas seguidas o rapazio aguardou ainda esse momento surpreendente e repetiu a extensa e deslumbrada exclamação, enquanto se não familiarizou de todo com a novidade.
A imprensa, por seu turno, celebrou o relevante acontecimento com incontidos transportes de entusiasmo, enaltecendo «a luz brilhante e profusa nalguns pontos», que a mais ninguém daria motivo de queixas e quezílias «por se ver às
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escuras», e vitoriava o dr. Lourenço Peixinho e o gerente da sociedade
concessionária.
|
Quando
da abertura da Avenida para a Estação dos Caminhos de Ferro a cidade
encontrava-se praticamente sem iluminação. |
Pouco a pouco as residências particulares e os estabelecimentos
efectuavam as suas instalações e as montras do centro da cidade iam
surgindo iluminadas à noite. Era uma profunda revolução nos costumes provincianos da terra, um novo e
contagioso sinal de vida e progresso, que só não contentava ainda
completamente por a iluminação cessar demasiadamente cedo. Novos usos e novos aspectos entravam a lançar
raízes e a dotar Aveiro de uma diferente e mais moderna fisionomia. Desapareciam definitivamente os lampianistas. Não lembravam já, decerto, os dos primeiros tempos do
azeite, tempos heróicos dos primeiros e raros lampiões içados à corda,
ou dos imediatos, quando os candeeiros principiaram a ser fixos. Tinham
caído no olvido os do mais recente período do petróleo, vultos
familiares à população, tão certos a aparecer na sua tarefa diária,
como o astro rei a romper de madrugada, tão iguais e exactos a repetir cotidianamente as suas obrigações profissionais que
o mesmo jeito
particular de cada um a acender nos fundilhos
/ 233 / das calças, consoante a regra, os retardatários «fósforos de espera
galego» se tornara uma imagem característica e identificadora. Mas eram
ainda figuras comuns e típicas os encarregados dos candeeiros de gás,
calcorreando as ruas com as longas hastes apropriadas ao mister e os
que ultimamente cuidavam da forçadamente ressurgida iluminação a
petróleo. Agora mudara a cena e a figuração: acendia-se tudo em conjunto
e simultaneamente
− quase inexplicavelmente, para tantos mesmo dos que
se tinham por medianamente esclarecidos.
O contrato com a sociedade fornecedora da energia eléctrica previa a instalação de quinhentas lâmpadas, com vinte mil velas, acesas desde o pôr do sol até às duas horas, pelo
preço de 1.200800 mensais. (Para a energia utilizada pelos particulares
estabelecia-se o preço de 882 por quilovátio). Os encargos municipais neste ramo da administração iam pois em progressivo aumento, atingindo então aproximadamente o
quádruplo do gás. O facto explicava-se, de resto, com o acréscimo de candeeiros e a desvalorização sofrida pela moeda após a conflagração
mundial.
Nos primeiros tempos a energia
foi produzida pela central térmica da fábrica de cerâmica Jerónimo Pereira Campos, Filhos, passando
a ser
directamente fornecida pela Empresa Electro-Oceânica logo que esta, meses
depois, pôde habilitar-se com todo o apetrechamento necessário. Em 1924
a Câmara veio a adquirir as instalações desta sociedade, criando os
Serviços Municipalizados de Electricidade(6)
que as aproveitaram até Setembro de 1930. Nessa data, de acordo com o
contrato celebrado em Maio de 1929, começou o fornecimento da energia a
ser efectuado pela União Eléctrica Portuguesa (Lindoso ).
E com o novo sistema, tanto como nos períodos do azeite, do petróleo ou
do gás, a eterna insatisfação, o permanente anseio do melhor
−
que ao
mesmo tempo representa operante e vigoroso estímulo e, em contrapartida,
gera a inquietação, o inconformismo e a infelicitação perpétua dos
homens
−
renova e reproduz os queixumes e as reclamações. Por um lado,
lamentam os Serviços Municipalizados as obrigações de um contrato em que
se julgam, desfavorecidos e reputam desactualizado. A seu turno, os
consumidores particulares consideram a energia demasiadamente cara ao
preço de 2$50 o quilovátio, não já apenas para a iluminação domiciliária, mas mais especialmente, e então incomportável por tão elevado
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custo, para certos usos domésticos, em fogões de cozinha, radiadores
de aquecimento, aspiradores e enceradores e quantos mais a técnica tem
criado. Impacientam-se com as falhas da luz, tão impertinentes nas
noites invernosas; sentem-se lesados com os afrouxamentos de intensidade
luminosa; enervam-se com as oscilações de voltagem que lhes perturbam as
patriarcais audições da radiotelefonia...
A rede actual conta já cerca de quinze anos e foi montada na época em
que superintendia naqueles serviços o sr. coronel Gaspar Ferreira. O seu
melhor elogio reside na circunstância de haver atravessado todo esse
lapso de tempo em condições satisfatórias e sem sofrer qualquer reforma
ou beneficiação de vulto, aliás praticamente impossível durante o período de
extrema dificuldade de obtenção do material que ainda perdura.
|
Aspecto actual do centro da cidade com os novos candeeiros de
iluminação eléctrica. |
Presentemente o número de candeeiros da cidade ascende a 674,
regulando por cerca de um quarto os que dispõem de globos de vidro fosco
ou granitado, e acarreta um dispêndio anual de energia, como atrás notamos, computado em cento e setenta contos. Diferentes estabelecimentos comerciais ostentam já coloridos reclames luminosos a «neon»
− a «luz sem
calor»
que no interior de alguns cafés começou a ser adoptada. O aspecto
nocturno vem adquirindo, assim, mais progressivo realce, no momento em
que Aveiro se apetrecha para sistematizar o seu desenvolvimento e
embelezamento num plano de urbanização já em estudo e as construções de certo vulto
e, expressão estética se sucedem num ritmo nunca antes atingido.
...A largos traços, como nos propuséramos neste encadear de miuçalhas topadas e coordenadas em lazeres roubados à amenidade
estéril e habitual dos colóquios de café, deixamos descrita a evolução
dos sistemas de iluminação pública de Aveiro no curto espaço de uma
centena de arrastados anos. Mais se poderia pormenorizar, se tanto não
fosse já demais. Fixam-se alguns momentos de efémera satisfação das
aspirações locais, nunca totalmente e definitivamente alcançadas seja em
que domínio for.
/ 235
/
As novidades de um dia trivializaram-se; substituiu-se
o bom de uma
data pelo melhor da seguinte; avançou-se até onde os meios de hoje
permitiram. Mas para além há sempre mais caminho e novo caminho. E quando novo século passar sobre o
dia em que o primeiro lampião se acendeu sensacionalmente na porta da
Ribeira, agora recordado como notável efeméride local (oh!, estejamos
certos do nosso mesquinho atraso!) esta pobre iluminação com postes metálicos, e globos
foscados e lâmpadas de vidro com filamentos ou simples gases
incandescentes, que agora nos serve e ocorre às nossas necessidades, constituirá, porventura, uma velharia sem
utilização, uma curiosidade arqueológica para entretém de algum
passadista rebuscador de poeirentos papéis amarelecidos. Mas não se
divirta, então, esse futuro investigador com a nossa indigência. Seja
indulgente e revista-se de prudente cautela, porque para lá de além,
está ainda e sempre mais além...
EDUARDO CERQUEIRA |