BARRÔ, a linda aldeia alcandorada na colina que nasce no fundal da vetusta ex-concelhia
Óis da Ribeira e mais cavadamente vem rugar-se a Leste da Borralha;
Barrô, a antiquíssima vila Barriolum, coutada pelo
rei D. Afonso, conforme documento de 1170, existente na Torre do Tombo,
de que nos dá notícia o Sr. Conde da Borralha, e depois senhora de foral
manuelino, sempre cheia de vida e pletórica de luz, olha a seus pés a
imponente quebrada aguada na e sua vertente Sul rasgada pelo vale do
Cértoma, o rio percorrente em uma das mais famosas regiões vinícolas do
País, desfrutando atraente panorama, que orgulha seus filhos e deslumbra
o turista que por límpida manhã ou dourado poente em contemplação por ela
se demore. E cresce e vive melhor agora pela mais nobre e firme vontade
de seus domiciliados, revivificada pelo exemplo de seu dilecto adoptivo,
o ilustre Sr. Dr. António Breda, médico-cirurgião de alto renome, que,
através de sua gloriosa e respeitada vida de responsabilidade, a nenhum
esforço se tem poupado para torná-la mais bela, mais próspera, mais rica
e civilizada pela mais subida e simultânea educação espiritual, cívica e
artística de sua gente. Ora, propondo-nos algo dizer da pateira
fermentelana e seus ribeirinhos pendores, que melhor pousada poderíamos
escolher para as nossas cogitações?
Que valham estas nossas palavras ainda sentida homenagem à virente
aldeia montícola, aos seus distintos filhos, ao culto e prezado Amigo
Sr. Dr. Breda, nome que muito honra o concelho de Águeda.
Volvendo o olhar para Oeste, para além da boca do Cértoma, depara-se-nos
o arremesso da margem poentina da volumosa ribeira da Bouça, a defrontar
a eminência barroana por alturas da vistosa e fértil Paradela, uma e
outra a
compelirem para Noroeste a orizífera planura, deixando, encoberto o
gracioso lençol hídrico formado pelas águas represadas dos caudais do
Cértoma e da vala da Aguada,
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251 /
daquela ribeira e da do Pano e de alguns pequenos córregos
concorrentes, a que veio a dar-se a denominação de Pateira
de Fermentelos. Lençol que tende a subir pela magnificente esplanada, a caminho da ponte da Landiosa, em crescente
engrandecimento, portanto, embora a aparência de regresso
neste impluvioso ciclo que vamos atravessando, no fluente
ano sobretudo, em que o próprio leito do Cértoma atingiu
completa sicidade, facto que não se reproduzia desde há
50 anos, conforme no-lo afirmou simpática velhinha de Perrães, pois se lembrava de que então atravessara, ao fundo e
a pé, o terreno enmarinhado para a cultura do arroz em toda
a sua largura. O excesso do represamento desce pelo rebaixo
de entre Requeixo e o campo de Ois, o qual vai reunir-se à
corrente do rio Águeda, e com esta, pouco a jusante da
Ponte da Rata, ao Vouga descente pela quebrada do Triádico,
processada em prolongamento da ruga precâmbrica, que às
suas águas faculta vazão; prolongamento naquela inflectido
para Sudoeste, correndo depois através do arenito vermelho;
por mais frágil que o xisto agnotozoico que a Poente de
Cernada-Serém se alteia. Chegado, porém, à posição da
Mesa, tornejou para Oeste, direcção que conservou até à
confluência com o afundimento Aguada-Cértoma, onde termina, reunindo-se as águas vouganas às fluentes nesta
depressão, que, em seu prosseguimento Sudeste-Noroeste,
atingiu o Aturiano de Aveiro, aqui abrindo em largo leque o que permitiu a formação de amplo golfo, hoje
quase inteiramente conquistado pelos lodos areno-limo-argilosos carreados pelas correntes suas tributárias.
Quando haverá acontecido tão violenta modificação na
tectónica lusitana? Da vida da Terra, cremos que no decorrer de época relativamente bastante próxima. Neste nosso
Valongo do Vouga, sobreposta à formação amarela, dita
pliocénica, no sitio da Gandarinha, limite de Fermentões,
restrita afloração de areia branqueada por sedimento caulínico, de onde em onde recheada de rolado quarçoso de
mediana grandeza e com volumosas interposições areno-limosas e limo-argilosas, prende a atenção do caminhante
em preocupação com as possibilidades criadoras da terra;
mas ao geólogo o problema de determinar-lhe a idade logo
surgiria; problema que sobremaneira ultrapassa a nossa
capacidade de simples curioso, pelo que nos limitamos a
emitir a hipótese de tratar-se de depósito alto-terciário se não
pertença do Pleistocénico. Seria seu levantamento consequência já daquela oscilação?
A pateira representa fonte de avultada riqueza, não
somente pelo pescado nela colhido mas ainda, e principalmente, pelo moliço algáceo nas suas águas buscado pelas gentes das freguesias de Requeixo, Ois e Fermentelos. Porque
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constituem, o primeiro um bom alimento humano, e o segundo rico e
copioso fertilizante das suas terras de cultura, que, pelo seu emprego,
lhes proporcionam óptimas novidades, infelizmente nem sempre bem
escolhidas, pois, em vez de se entregarem os respectivos proprietários
ao cultivo das plantas para que são eminentemente apropriadas, como a do
milho, o vegetal dito órfão por se lhe não conhecer ascendência nem
próximos parentes, demasiado se dedicam à viticultura, dadora de grandes
colheitas vinícolas, todavia de baixa graduação alcoólica, que aos bons
vinhos fazem desastrosa concorrência com grave dano para a economia do
País. Que, em tal maneira, produzem o desnecessário em prejuízo do
essencial, que é o pão e seus condutos.
São de formação quase totalmente aluviónica as margens pateiranas;
todavia, sobretudo naqueles locais entestados pelo arenito vermelho em
vertente mais aprumada, deste as águas selvagens bastante cimento
carrearam que ao solo veio dar colorido arroxeado, deixando a impressão
de que só daquela rocha seria oriundo; que a terra somente de
constituição areno-coloidal a característica cor escura apresenta.
O triângulo mesopotâmico nascido à confluência
Águeda-Cértoma, de
início formado por baixios em anos normais eminentemente favoráveis à
cultura orizífera, e ora, pela secura reinante, povoados por milheirais
de vegetação sem
a necessária opulência, ergue-se da planura por interposição de estreita
cinta de cascalhos de arestas mal polidas e envoltos em areias que a
erosão pluvial muito enriqueceu de limo-argila, fazendo lembrar
deposição quaternária. Depois, é o arenito vermelho do Triádico,
aflorando onde elementos de cobertura não conseguiram ocultá-lo ou as
águas pluviais alcançaram descamá-lo, ao longo dos dois braços do
triângulo, para deixar encimar-se ainda por largos e espessos mantos de
areia amarela, a começar do Cabeço do Arieiro Velho, nas proximidades do
marco geodésico de Serpel; braços que se estendem pela freguesia de
EspinheI, e depois,
o da margem do Águeda, pelas de Recardães e Águeda, e o
da banda Sul, pela de Barrô, entre os dois sobressaindo amplos tratos
arenáceos da natureza citada.
O Triádico aparece ainda − estreita faixa sobranceira ao caminho de
ferro do Vale do Vouga − desde a Taipa a Horta; que mácula de arenito
vermelho que observámos junto ao Carregado, na estrada de Mamodeiro a
Requeixo, deve pertencer ao Mesocretácico do Carrajão.
Junto à ponte da Landiosa e a jusante da estrada que sobe à
Aguada de Baixo, alta barranca de grés pardacento, bom arenito na camada
subjacente, de onde, dizem os moradores vizinhos, foi retirada toda a alvenaria
que serviu à
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254 /
construção da referida ponte, acidenta a margem Sul da rodovia que desce
para Oliveira do Bairro, informando a Carta Geológica tratar-se de
sedimento belasiano constituído por cimada albiana e assento cenomaniano.
A mancha respectiva, marcada naquela Carta, alcança a margem direita da
vala da Aguada, na qual poderá enquadrar-se a mácula gressosa visível a Norte de Vale de Mouro; se fôramos, porém,
orientado tão somente pela feição da areia e pelo variegado colorido do
cimento que a prende, semelhante mácula emparceiraríamos ao depósito
enscheriano de a Poente do Carrajão, como tal classificado pelo muito considerado geólogo
Sr. Dr. CARRINGTON DA COSTA. Mais para além, todavia, a
Sul da povoação do Carquejo, formação arenosa de não
muito grande profundidade, pois assenta sobre sedimento
argiloso de frequentíssimos laivos arroxeados e já bastante endurecido,
constituindo preciosa matéria prima para a indústria cerâmica, como
deposição belasiana não poderá ser considerada, parece-nos.
Na margem esquerda da pateira, para além do manto aluviónico recente,
estendem-se os areais turo-senonianos com perfurações de Turoniano em
Giesta, Silveiro e proximidades de Abrunheira, na classificação do já
mencionado Sr. Dr. CARRINGTON DA COSTA.
E para terminar este nosso relance à volta da pateira, notemos a
influência que houve o Triádico na orientação dos álveos do Vouga, em
seu curso médio, e do Águeda, em seu trecho final, que no Precâmbrico em
ambos os vales se recosta, do mesmo Triádico não havendo nós encontrado
vestígio algum para Leste de Jafafe e ainda de Assequins, o
que nos leva à convicção de que o alcance das águas marinhas, após
Pérmico e até o último período dos tempos
cenozóicos, pouco ultrapassaria estes locais, se é que os
ultrapassou.
Sobre o chão próprio da pateira e arredores, dêmos agora
a palavra ao
Sr. Dr. AMÉRICO DE ANDRADE, distinto
advogado e notário em Águeda, que nos foi inteligentíssimo
companheiro em uma das nossas visitas àquele lago e nos
mandou elucidativa carta de que adiante nos permitimos transcrever a
parte que ao assunto versado interessa, acompanhando cópias da Memória e
Comunicação apresentadas ao Instituto Etnológico da Beira,
respectivamente, pelos
Srs. A. DE MORAIS e Padre MANUEL GOMES DE ANDRADE, prior
que foi de EspinheI; documentos que deram motivo ao nosso
pequeno escrito e ao mesmo vão proporcionar remate, e muita luz vertem sobre os antecedentes da pateira, onde há apenas cinco séculos
pastariam veados, e ursos fariam frutuosas caçadas.
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255 /
A CARTA
«... Vão juntas as cópias de dois trabalhos que lançam,
parece-me, bastante luz sobre a evolução da pateira de Fermentelos. Como
verá pelo trabalho de meu tio, também o Dr. SERAFIM SOARES DA GRAÇA e F.
DE MOURA COUTINHO escreveram sobre o assunto, mas não encontrei cópias dessas
comunicações.
Em apontamentos que possuo, escreveu meu tio que o
tal livro de registos da Câmara de Ois, referido, foi encontrado pelo Conselheiro Albano de Melo na casa do Morangal.
Com efeito, os fidalgos do Morangal eram capitães-mores, com jurisdição no concelho de Ois da Ribeira, e
pessoas de influência na Câmara. Natural é, portanto, que
em sua casa guardassem livros daquela Corporação.
Dizem pessoas de Fermentelos, dignas de crédito, que
o fundo da pateira se vai levantando, embora semelhante
fenómeno seja contrariado por um intensíssimo arranque de
moliço, com o qual vem, sempre, quantidades apreciáveis
de lodo...»
MEMÓRIA APRESENTADA
AO INSTITUTO ETNOLÓGICO DA BEIRA,
PELO SÓCIO A. DE MORAIS,
EM 22 DE
FEVEREIRO DE 1922
«A MATA DE PERRÃES
UM PLANO DE FOMENTO NO SÉCULO XVI
Com este título apresentou o nosso ilustre consócio
sr. SERAFIM GABRIEL DA GRAÇA uma interessante memória que,
mais uma vez, nos vem mostrar o grande interesse que o
erudito investigador dedica às coisas do passado e, principalmente, a tudo que possa relacionar-se com a sua
Águeda
Antiga. Conhecedor eu, por velhos documentos que tive
ocasião de compulsar, de assuntos referentes à Mata de Perrães, entendi
que, como sócio que − embora imerecidamente − sou deste Instituto,
tinha o dever de dar o meu
modesto concurso para completar ou ampliar a notícia do valioso
manuscrito do sr. SERAFIM GABRIEL.
A Mata Real de Perrães, em todos os manuscritos antigos designada por Mata Real de Perrães, Paradela e Louredo,
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256 /
fora efectivamente coutada dos reis de Portugal e tinha por
vizinhas terras do Bispo de Coimbra e bens do Convento de Lorvão. Nos
fins do século XV el-rei D. Manuel, informado pelo seu almoxarife em
Aveiro de que a Mata de Perrães − que sempre fora coutada para nela se
colherem
porcos e veados era apaulada e que, se fosse arroteada daria proveito dentro e os lavradores de arredor dela não receberiam opressão e perda
que recebem, assim dos monstros como das alimárias que nela se criam... resolveu el-rei, depois de mandar proceder a averiguações, aforar
esse couto, com a condição porém de que o aforamento
andasse sempre junto em uma só pessoa, que ficaria sendo
cabeça do prazo.
Foi, pois, a Mata de Perrães aforada a Anrique de
Almeida − o próprio almoxarife da vila de Aveiro − pelo
foro anual de 250 reis e seis galinhas, pago em dia de S. João; sendo a
carta deste aforamento passada na vila de
Muge, a 16 de Novembro de 1496.
Em 1626 Lourenço de Almeida Alcoforado, filho de
Domingos Gonçalves Prego e de Elena de Almeida Raposa,
neta do Almoxarife Anrique de Almeida, fez, na qualidade
de cabeça do prazo, venda dos seus direitos a Diogo Teles
Castelbranco (filho de Lopo Álvares de Avilez Castel Branco
e bisavô de Diogo Teles Castel Branco Barreto e Nápoles)
por escritura feita na notável vila de Aveiro a 17 de Abril de 1626,
pelo escrivão Belchior Correia de Vasconcelos. A escritura de posse é
feita, por tabelião, nas Azenhas de Louredo e
quintã aos 22 de Abril do dito ano.
Apesar de contrariados pelos moradores das vizinhanças,
vários trabalhos de arroteamento e drenagem se tinham já
feito no ano de 1741, pois que, nesse ano, é, por provisão
de el-rei, encarregado do tombo da «Costa do Loredo» o
Dr. João de Magalhães Castel Branco, em quem Sua Magestade manda criar de novo
o lugar de Juiz de Fora e dos
Orfãos, crime, civel e sisas, em as vilas de Recardães,
Segadães, Casal de Álvaro e Brunhido, tendo por escrivão
do tombo Luís de Melo e dando princípio aos trabalhos no dia 1.º de
Março, nas casas do Celeiro da Quinta do Louredo pertencentesa Diogo
Teles Castel Branco Barreto e Nápoles. Este tombo não chegou a
concluir-se, mas relaciona já 19 subenfiteutas com terras cultivadas,
principalmente de vinha, das quais terras esses subenfiteutas pagavam
a Diogo Teles foro, laudémio e ração.
Não será muito fácil saber-se hoje qual a área exacta que ocupava a
antiga Mata Real de Perrães, visto que o aforamento feito por D. Manuel
lhe não demarca as dimensões,
dizendo apenas que a Mata era de comprido boa meia légua
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257 /
[Vol. XI -
N.º 44 - 1945]
e de largo um tiro de besta e que se nomeia por três nomes: − contra o Mosteiro de Lorvão se chama mata de Perrães;
contra o lugar de Paradela se chama Paradela; e contra EspinheI se chama mata de Loredo.
Um acórdão, porém, da Relação do
Porto de 22 de Maio
de 1658 declara que, sendo a légua portuguesa de 2.844 braças e dizendo o aforamento boa meia légua, se deve dar, no
terreno, meia légua mais cinco braças ou sejam 1.427 braças
(hoje 3.139 metros). Isto com referência ao comprimento
que, pela medição a que se procedeu, começou no Porto da Madeira, no
ponto onde o rio Levira entra no Cértoma. Aí
se meteu um marco de pedra vermelha com as armas reais
para dentro da medição; onde acabou, que é junto aos marachões de Ois, se meteu outro marco da mesma pedra com as
armas reais para dentro da medição. Mas a largura é que,
por essa ocasião, não foi medida ainda.
Suscitando-se, porém, dúvidas sobre a extensão do tiro
de besta − que devia entender-se besta de garrocha, diziam
os interessados −, em 1672 procedeu a uma vistoria o desembargador António Freire da Fonseca, para delimitar a largura
da Mata. Começou-se a medição do lado de Ois, a contar
do marco ali colocado, com as armas reais, até perto da tasna que vai para Fermentelos (NOTA: é
Porto de Asna, na margem de Fermentelos. Trata-se de má leitura do A.) encontrando-se 200 braças (440 metros). 2.ª medição
− do cabeço
do Adouro direito ao cabeço de Fermentelos, onde chamam
o Porto da Areosa, 350 braças. E mais várias medições, a
penúltima das quais a começar no pé do cabeço das vinhas do Louredo até
ao princípio da veia velha do Porto de Perrães, 200 braças, ficando de fora as ditas vinhas do Louredo, que são pertença da dita Mata e pagam ração aos
possuidores dela.
No fim da última medição diz o escrivão do auto: «declaro
que algumas medições foram feitas de barco pelos louvados,
por estar (a mata) apaulada».
Conclui-se daqui que o terreno então medido já não
era todo o que D. Manuel havia aforado a Anrique de
Almeida, visto que nestas medições não entrava o terreno
das vinhas da Costa do Louredo − o terreno já arroteado;
e que, sendo necessário andar de barco para se fazer a medição, não se irá fora da verdade tomando
esse paul da Mata
de Perrães como princípio da actual Pateira de Fermentelos.
Só pode verificar isto quem conheça bem a topografia da
região e vá ao local fazer o estudo.
A Mata Real de Perrães era, portanto, dos descendentes
de Diogo Teles (ou Avilez) desde 1626 − os quais descendentes, através de várias demandas e contrariedades, provocadas
pelos
/
258 / moradores das povoações vizinhas e, principalmente pelos
de Ois, a possuíram até depois do meado do
século passado. À Casa do Atalho foi sempre feita justiça
quer corrigindo os usurpadores da propriedade, quer julgando a seu favor todas as várias demandas que teve de sustentar com alguns particulares,
com o Convento do Lorvão e até com a Casa de Bragança, na qual tinha
sido incorporado o senhorio de Ois, de que era donatário o conde de
Odemira, D. Sancho de Noronha.
No principio do século passado, a Casa do Atalho pertenceu a uma
senhora, à falta de varão. Casada, o marido envolvido nas lutas
políticas e militares que se desencadearam de 1822 a 1834, e tomando
parte muito activa na guerra da sucessão, a favor de D. Miguel, natural
era que à administração da sua casa não pudesse prestar as atenções
devidas. Os enfiteutas mais rebeldes foram, pois, deixando de pagar e
tomando-lhes os outros o exemplo, passadas duas ou três dezenas de
anos a Casa do Atalho nada recebia das suas terras de Perrães, Paradela
e Louredo, de que era senhoria havia mais de dois séculos. O subsequente
herdeiro ainda tentou recuperar os seus direitos, sustentando demandas,
que não foram julgadas.
COMUNICAÇÃO ENVIADA
AO INSTITUTO ETNOLÓGICO DA BEIRA,
PELO PRIOR DE ESPINHEL,
PADRE MANUEL GOMES DE
ANDRADE,
EM 20 DE JUNHO DE 1922
«A ODISSEIA DA S.ª DAS FEBRES,
DE PERRÃES
A festa da S.ª das Febres,
que se realiza anualmente, no
dia 8 de Setembro, na capela de Perrães, freguesia de Oiã, concelho de
Oliveira do Bairro, é uma das romarias mais notáveis destes sítios. Ali
acorrem, a cumprir seus votos, numerosíssimos forasteiros, de bem longe
muitos. A capela está situada não longe do grande pântano que, lá em
baixo, a pouco mais de um quilómetro, se abre em extensa lagoa,
conhecida actualmente pelo nome de Pateira de Fermentelos.
O paludismo, apesar da aclimatação do povo, é ainda hoje endémico nas
povoações marginais, de tal sorte que, só na farmácia de Fermentelos, a
importância de quinino
/
259 /
vendido anualmente, sobe a milhares de escudos. Mas antigamente era muito pior ainda; e doenças de
origem palustre
originaram em várias épocas hecatombes pavorosas, como
sucedeu em Ois da Ribeira, há cinquenta anos, pouco mais ou menos.
A invocação da Virgem sob o título de Senhora das
Febres filia-se, portanto, com certeza, nas condições sanitárias da região.
A imagem, uma escultura em pedra sem valor artístico,
é muito antiga e intitulava-se primitivamente a Senhora dos Invendos.
Venerou-se, até 1846, em uma ermida situada
perto do lugar do Rêgo, à beira do pântano, e em tempos
muito remotos esteve na Gândara da Piedade, desta freguesia, junto de uma fonte de água puríssima, ainda hoje conhecida pelo nome de Fonte da Senhora das Febres. Desta
última capela restam apenas vestígios quase apagados; da do
Rêgo vêem-se ainda os alicerces.
Frei AGOSTINHO DE SANTA MARIA, no seu
Santuário
Mariano, tomo 7.º, publicado em 1721, refere-se largamente
a esta imagem, envolvendo-a no nevoeiro das lendas, então
correntes e ainda hoje não de todo dissipadas. Diz ele, em resumo, que,
segundo uma antiquíssima tradição, a imagem
aparecera na margem esquerda do paul, no meio de uma floresta de carvalhos; que dali a trouxera para a sua igreja o
pároco desta freguesia, fugindo ela daqui para o local do aparecimento, onde
lhe erigiram uma capela; que depois, pelo
impróprio do lugar, a quiseram transportar para a Gândara
da Piedade, na margem direita do paul, mas que o barco se
afundara, com a imagem, sinos e tudo; que o barco voltara
à superfície, retrogradando com ela, mas que os sinos desapareceram na profundidade da vasa, dizendo-lhe que durante
muitos anos se ouviam tocar ali, no dia de S. João − no que,
tudo, o bom frade Agostinho piamente crê, excepto na história dos sinos, que
ele tem por «antôjo e coisa muito alheia
da verdade».
Como se vê, trata-se de uma lenda como muitas outras;
mas como a lenda é sempre a ampliação do facto, vejamos o
que dela será lícito concluir para a história acidentada daquela
muito conhecida e veneranda imagem.
Pondo de parte que a sua primeira estância fosse nesta
igreja de EspinheI, porquanto se tal tradição existiu dela não
restam já vestígios, o que se pode, no entanto, afirmar com
segurança é que ela esteve perto daqui, na Gândara da Piedade.
Atestam-no o onomástico local, a tradição e as ruínas
ainda visíveis da ermida, que a alojava. Porque motivo a
levariam para a margem oposta, pertencente, nessa data, à
freguesia de Requeixo e à de Fermentelos presentemente?
/
260 /
Julgo que a resposta a esta pergunta se deve procurar nas interessantes
comunicações sobre a «Mata de Perrães» apresentadas ao Instituto pelos
nossos ilustres consócios srs, Dr. SERAFIM DA GRAÇA, A. DE MORAIS e
F. DE MOURA COUTINHO.
Esses eruditos trabalhos, com seus preciosos documentos, projectam, a meu ver, copiosa luz sobre
este assunto, geralmente
desconhecido. Deles se vê que o vale do Cértoma, naquele ponto era
dantes terreno firme, coberto de espessos arvoredos, por entre os quais
o rio mansamente deslizava − o que, aliás, se conclui, também, de
documentos medievais, que localizam Fermentelos na margem do mencionado
rio − in riba Certuma − e não de qualquer lagoa ou paul − Diplomata, pág.
231, de 1050, et alibi.
Por consequência, nesses tempos afastados, a região era Salubre. Na
margem direita, em sítio ermo, no alto de elevada encosta, venerava-se,
não é fácil saber desde quando, a Senhora dos Invendos. As populações
da margem esquerda, em cuja frente a ermidinha se erguia, alvejante e
acolhedora, eram, naturalmente, as que mais se afervoravam em suas
homenagens e cultos. Seguindo um caminho que ainda agora se distingue
perfeitamente, atravessavam facilmente o pequeno rio e, subindo às
alturas da ermida, iam depor aos pés da Virgem os tributos da sua
gratidão e o preito do seu amor.
As circunstâncias, porém, foram mudando. As aluviões do Águeda e do
Cértoma, amontoando-se na sua confluência, represaram a corrente deste
último, começando-se a formar uma lagoa, como não podia deixar de ser,
na próxima curva do rio, perto da igreja de Requeixo, a poente da «Mata
Real».
Como, desde Paradela até ali, numa extensão de 5 quilómetros, muito
aproximadamente, o declive é quase imperceptível, a represa veio
recuando e alastrando, cobriu matagais e arvoredos (ainda hoje se chama
a «Mata» e a »Queimada» − Mata queimada, por certo, a uma larga
superfície de terreno que emerge do fundo da lagoa nos três meses de
verão) e o que não cobriu, encharcou.
foi então − creio-o firmemente
− que as margens do rio Cértoma se
começaram a tornar miasmáticas e doentias. O paludismo atacou a
população; e esta, crente e aflita, ergue os olhos para o monte,
invocando a Senhora dos Invendos contra as febres, que a minavam.
Senhora das Febres deve ela, pois, ter começado a chamar-se nessa
altura.
Mas a passagem do rio foi-se tornando cada vez mais
difícil; e os povos da margem esquerda − Fermentelos,
Rêgo, Perrães, etc. − impossibilitados de cumprir os seus votos em
certas épocas do ano, trataram de passar a imagem para o seu lado, de
combinação com o pároco de Espinhel,
/
261 / que, por intermédio do seu encomendado em Oiã, a
esse tempo filial desta igreja, continuou a exercer a sua
jurisdição na capela nova, situada aliás, em território de
Requeixo, como, de facto, exercia em 1721 e muitos anos
depois, sem contestação de ninguém.
Tudo se conjuga para fazer acreditar que os factos se
passaram como acabo de os descrever. Dentro desta explicação, tudo se apresenta claro; fora dela nada se compreende: nem a substituição do título nem a mudança de
lugar nem a jurisdição do pároco de EspinheI numa capela, situada em
território alheio.
A odisseia da Senhora das Febres não estava, porém,
terminada ainda. Adquirindo a sua autonomia as freguesias de
Fermentelos e de Oiã, incidentes vários surgiram entre
os dois povos, como era de esperar, sobre a posse da capela. A questão aziumou-se e um dia, ou antes, uma noite, em
1846, os moradores de Perrães, em massa, dirigiram-se à
disputada capelinha, tiraram a imagem da Virgem, incendiando, em seguida, o pequeno templo, trouxeram-na para a
sua terra, onde trataram de lhe erigir habitação condigna, e,
passado algum tempo, expuseram-na outra vez ao culto, que
rompeu de novo em grandiosas manifestações.
Coisa estranha! − homens de fé, (acabo de me informar
com o único sobrevivente) não hesitaram, para fazerem
triunfar a sua causa, em cometer um sacrilégio nefando, lançando fogo ao recinto sagrado onde tantas gerações tinham
ido aliviar as suas mágoas nos arroubos da crença.
É, pois, assente e seguro
que a imagem da Senhora das
Febres, na sua existência muitas vezes secular, tem andado
por montes e vales, requestada pela devoção dos fieis, que
chegaram a disputar a sua posse com violência desmarcada;
e é muito provável, senão certo, que o princípio do seu culto
seja anterior à formação da Pateira, que influiria eficazmente
na sua vida errante e lendária.
Eis o que posso dizer sobre
este assunto, guiado pelas
informações nebulosas do Santuário Mariano, pela observação atenta da tradição e das lendas, pelo conhecimento directo
da topografia local e pelos dados que fornecem as excelentes
comunicações sobre a Mata de Perrães, a cujos ilustres autores tomo a liberdade de apresentar daqui, deste meu cantinho
obscuro, as minhas felicitações mais sinceras e calorosas.
E já que a elas tive de referir-me e ainda por que o grande prazo era,
na sua maior parte, situado nesta freguesia, seja-me permitido que eu diga também duas palavras
sobre o assunto, por conhecer um documento que, embora
o não esclareça mais, pois já bem esclarecido está, não deixará, todavia, de ter cabimento aqui, como apêndice fidedigno à esplêndida documentação da Mata.
/
262 /
O documento a que aludo é o tombo da demarcação da «Mata Real de Perrães,
Paradela, Louredo e Ribeiro», feita em 1768 − a última, certamente −
tombo exarado no «Livro dos registos» da câmara de Óis da Ribeira, que
eu tive ocasião de consultar e de que tirei uma cópia parcial.
Os marcos cravados em 1672 tinham sido arrancados pelo povo que, num
bolchevismo precoce, por todos os lados invadia o grande prazo,
apropriando-se de tudo o que lhe servia, principalmente moliços, e o
enfiteuta, Diogo Teles de Castel Branco de Nápoles e Meneses, viu-se na
necessidade de requerer às justiças de El-rei a reposição dos marcos e
um
novo empossamento.
Averiguado com testemunhas o local dos anteriores, 14 marcos foram
postos solenemente, na presença do Corregedor.
O 1.º, demarcando o comprimento, foi colocado no Joelho da Mota,
fronteiro ao Porto da Madeira, onde entra o rio Levira (e não Lemiar,
como leu o sr. Dr. SERAFIM DA
GRAÇA, duplicando com esse engano o comprimento do prazo); o 2.º do
comprimento, foi cravado no marachão do cabeço das vinhas de Óis da
Ribeira, defronte do Porto de Asna
(e não perto da tasna, como entendeu o sr. A. DE MORAIS)
sendo este o primeiro da largura; o 3.º, no Porto de Asna; o 4.º, no
cabeço do Adouro; o 5.º, no Porto da Areosa; o 6.º, no Monte da Goucha,
fronteiro ao Porto da Grade; o 7º, no Porto da Grade, abaixo da capela
da Senhora das Febres; o 8.º, ao pé do cabeço da Arrota de Ferreira,
defronte da dita capela; o 9.º, a poucas varas de distância da fonte que
fica ao pé da mesma; o 10.º, no cabeço do Vaso; o 11º, no rêgo do
Espinheiro, onde principiam as terras do Convento de Lorvào; o 12.º, ao
pé do cabeço das vinhas do Louredo; o 13.º, no princípio da veia velha
do Porto de Perrães, com as costas voltadas para as terras das freiras
de Lorvão; e o 14.º, no Porto da Madeira.
Todos estes sítios conservam exactamente os mesmos nomes; e por isso, e
porque na Costa de Louredo, se distingue ainda o terreno que esteve a
vinha, não seria impossível reconstituir o antigo prazo, com alguma
aproximação.
Ele não compreendia toda a Pateira de Fermentelos;
compreendia a maior parte dela, mas ficava-lhe de fora, ao poente, mais
de um quilómetro de lagoa − a parte de formação mais antiga.
A Casa do Atalho possui ainda alguma coisa da sua antiga propriedade.
Asseguram-me pessoas respeitáveis, pela sua idade e pelo seu carácter,
que ela perdera tudo o
mais porque, na última demanda com os subenfiteutas, o tribunal
sentenciara que, visto ela não pagar, há muito, o antigo
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foro a El-rei, também os subenfiteutas nada tinham que lhe
pagar.
Diz, porém o sr. A. DE MORAIS que não chegou a haver
sentença; e eu não contesto nem duvido, porque verifico no
seu trabalho sólida documentação e a mais desejável probidade
histórica.»
Ao ilustre Sr. Dr. Américo de Andrade, a quem ainda
valiosa informação verbal, através de penhorante consideração, da vida da pateira e cercanias devemos, aqui deixamos
expresso o nosso vivo agradecimento.
E concluindo, votos fazemos por que, para felicidade
dos povos ribeirinhos, a pateira muito demore no seu medrar, mas que
cada dia melhor criadora se torne do rico
moliço que faz a grandeza de suas adegas e celeiros.
J. S. DE SOUSA BAPTISTA |