A. de Amorim Girão, O distrito de Aveiro em face da nova divisão provincial, Vol. III, pp. 5-10.

O DISTRITO DE AVEIRO

EM FACE DA NOVA DIVISÃO PROVINCIAL

JÁ não constitui novidade para ninguém que, pelo novo Código Administrativo, foi o distrito de Aveiro integrado Na província da Beira Litoral. Não constitui isso novidade para ninguém; mas nem todos terão compreendido as razões que determinaram tal reforma de circunscrições administrativas, e eis o motivo por que entendemos dever fazer nesta revista uma breve referência ao assunto.

A recente remodelação provincial representa, com efeito, alguma coisa de novo no nosso país, e bem urgente ela se tornava, pela necessidade de fazer assentar uma política nova em novos quadros territoriais. Mas nem todos assim o entenderam, especialmente quando isso lhes tocou pela porta.

Deu-se até o caso de um ilustre pai da pátria, em plena sessão da Assembleia Nacional, se ter declarado «muito desconcertado e confuso» (Diário das Sessões, n.º 103, de 15 de Janeiro de 1937) com a mudança de província da sua terra natal. Mas isso são contos largos, a que oportunamente se dará o devido troco...

O esboço que acompanha este artigo porá em evidência, melhor do que o faria uma longa descrição, as linhas gerais da remodelação há pouco levada a efeito, na parte que nos interessa agora.

Por ele se vê que os três distritos administrativos da zona litoral beiroa se fundiram numa nova província passando do N. do distrito de Aveiro alguns concelhos para o Douro Litoral, do distrito de Coimbra outros para a Beira Alta e Beira Baixa, e todos os concelhos do S. do distrito de Leiria para a Estremadura.

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Três circunscrições administrativas, em que se manifestava acima de tudo a vontade (íamos a escrever o arbítrio) dos homens, reúnem-se agora para formar uma circunscrição mais vasta, onde é fácil reconhecer, na sua unidade e integridade, aquela extensa região plana, com seu rebordo montanhoso, que na zona central do país se evidencia como a mais directamente exposta às influências marítimas; aquela região que o traço esbranquiçado das areias litorais marca tão distintamente a quem a examina do alto, e que num mapa em relevo, como o do Sr. Major VITÓRIA PEREIRA, avulta mesmo à vista dos simples curiosos de gabinete, circunscrita como fica pelos relevos das serras da Freita, Arestal, Talhadas, Caramulo, Buçaco, Estrela, Lousã e Porto de Mós, penetrando um pouco para o interior ao longo dos vales do Mondego e do Alva; aquela região a que o consciencioso engenheiro-silvicultor BARROS GOMES aplicara justamente o nome de Beira Litoral, em breve generalizado nos estudos botânicos e hoje de uso corrente entre todos os estudiosos.

Basta comparar o traçado tão regular do seu contorno com a sinuosidade característica dos limites distritais, para ver como estes últimos representavam um verdadeiro artifício, obedecendo a um critério mais ou menos geométrico.

Efectivamente, os nossos distritos administrativos, se às vezes procuraram harmonizar-se com factores de ordem geográfica e económica (e poderíamos citar, a este respeito, os de Santarém e de Faro), parecem ter sido organizados outras vezes (e é o caso dos que agora se associaram para formar a Beira Litoral) com o mais flagrante desconhecimento ou desprezo da realidade territorial, e até das próprias conveniências das suas respectivas populações.

Examinando esses limites, tem-se quase sempre a impressão de que eles ficaram marcando domínios forçadamente justapostos. E a prova de que tal divisão administrativa, apesar dos seus cem anos de existência, não se encontrava tão estabilizada como geralmente se afirma, e não conseguira dar satisfação integral às aspirações dos povos, é que ainda há pouco se, criara o distrito de Setúbal e se reclamava de há muito a criação do de Lamego.

Quando, em 1922, publicámos a nossa dissertação sobre a Bacia do Vouga, foi sobretudo a parte litoral que mais directamente nos prendeu a atenção; e em todos os sentidos a percorremos a pé, demorando-nos aqui e além, onde as circunstâncias o determinavam.

já então nos não passara despercebida a impropriedade da nossa divisão administrativa, quando a comparávamos com as divisões naturais bem inscritas sobre o solo. E, por isso, escrevemos no final desse trabalho:

«A actual divisão concelhia, nesse ponto verdadeira émula da divisão distrital, obedecendo a um critério acima de tudo / 7 / geométrico, veio sobrepor-se à antiga divisão administrativa bem mais racional e homogénea, retalhando circunscrições territoriais mais vastas, cuja unidade importava conservar através de tudo hoje que o desenvolvimento dos meios de comunicação e transporte permite encurtar consideravelmente as distâncias a percorrer. ...Procuremos, pois, no passado, aquilo que do passado pode e deve aproveitar-se, e, sem deixarmos de ter em conta as necessidades futuras, especialmente determinadas pelo progresso e pelas profundas transformações sociais de nossos dias, procuremos por todas as formas «conhecer-nos a nós próprios», estabelecendo antes de tudo, e com todos os cuidados que tal assunto requer, uma boa divisão regional do território / 8 / português. Poderá essa divisão servir de base, num futuro mais ou menos próximo, à remodelação da nossa vida administrativa; e, pelo menos, constituirá o melhor alicerce para levar a efeito um conveniente reconhecimento económico do país, reconhecimento que nunca se conseguiu fazer, em grande parte pela razão de os inquéritos, até hoje postos em prática, se terem baseado sobre a nossa absurda divisão administrativa, que, tal como está separando, por vezes, o que devia estar ligado e ligando, outras, o que devia estar separado tem constituído, de parceria com uma centralização exagerada, o maior obstáculo ao natural desenvolvimento de todas as fontes de riqueza nacional».

São palavras escritas há quinze anos, e que ainda hoje subscrevemos inteiramente.

À necessidade ali manifestada de organizar uma boa divisão regional do território português, procurámos dar satisfação na medida das nossas poucas forças, publicando em 1930 um Esboço de Carta Regional de Portugal, logo seguido de uma 2.ª edição em 1933, onde se insistia sobre as mesmas ideias.

Foi esse trabalho bastante discutido; e porque muitos viram nele a base possível duma futura reorganização de circunscrições administrativas, se foi recebido com o descontentamento de alguns, não deixou de conquistar fartas palavras de louvor, pelo seu interesse e pela sua oportunidade, palavras que vieram até muito importará acentuá-lo de alguns adversários declarados da actual situação política.

Passados três lustros, vemos que as ideias por nós expostas começam a converter-se em realidade. Efectivamente, pondo de parte uma ou outra divergência de pormenor, a divisão provincial do novo Código Administrativo corresponde de maneira bem sensível à divisão regional do território português que organizámos naquele nosso estudo.

Com a criação da nova província da Beira Litoral procuraram integrar-se numa grande região, por sua natureza homogénea, territórios que o homem dividira sem proveito para ninguém, a não ser para meia dúzia de funcionários que os serviços multiplicados requeriam. Procurou-se dar unidade administrativa a uma das nossas grandes unidades regionais.

E atendeu-se também ao interesse das populações: não fazia sentido que para ir, por exemplo, de Castelo de Paiva para a sede do distrito (Aveiro) tivesse de passar-se pela sede doutro distrito (Porto); não fazia sentido que as gentes dos concelhos meridionais do distrito de Leiria (conforme agora manifestaram em representação ao Governo) caminhassem para o Norte, quando tudo as atrai e encaminha para a metrópole lisbonense, a cuja província ficaram justamente pertencendo.

Mas, se com a nova divisão provincial se deu por esta forma satisfação ao que as condições naturais impunham e o / 9 /  interesse das populações aconselhava, porque razão vemos agora reclamar uma província para Aveiro e outra para Leiria?

É que, na aritmética especial das divisões administrativas, ninguém de bom grado quer que se façam contas de diminuir, e toda a questão das províncias anda afinal à volta das respectivas capitais.

Não é, entretanto, para a grande região litoral beiroa que esse problema poderá pôr-se com justo motivo. A zona costeira que tem a cidade de Aveiro como centro e a Ria como núcleo de atracção só por caracteres muito secundários logrará individualizar-se dentro da Beira Litoral. Nunca essa zona pode deixar de considerar-se como parte integrante duma região mais vasta e bem homogénea, pois não é fácil descobrir diferenças apreciáveis entre os campos do Vouga e os do Mondego. A própria sub-região da Gândara, correspondendo aproximadamente ao retalho de Pliocénico que se estende por todo o litoral dos distritos de Aveiro e Coimbra, mostra como há sensível identidade de características geográficas entre as bacias vizinhas daqueles dois rios, na última secção dos seus respectivos cursos. E para disso nos convencermos ainda mais podem ver-se as Cartas Geológica, Hipsométrica, Agrícola e Florestal, onde a individualidade do conjunto se impõe à primeira vista.

BARROS GOMES descrevera, portanto, a Beira Litoral como região «sub-plana, abrangendo os extensos campos do Vouga, do Mondego e do Lis, e os maiores areais da beira-mar; muito costeira, adjacente a terras altas». E se toda essa região assim fica bem evidente, não menos se impõe ainda a sua capital provincial, tanto pela cifra da sua população como pela sua própria situação geográfica.

Não hesita o Sr. HOMEM CRISTO em vaticinar que daqui por 25 ou 30 anos, com as obras da barra e do porto, Aveiro será uma cidade de 200.000 habitantes, muito superior a Coimbra (O Povo de Aveiro, n.º 335 de 11-2-1934). Aqui deixamos os nossos melhores votos por que tal sonho se converta em realidade; e temos também de reconhecer que uma nova remodelação provincial se imporá então nesta parte do país, pois o crescimento de uma cidade, aliado à extensão do seu papel atractivo regional, «postula sempre uma readaptação das nossas divisões políticas» como escrevem JEAN BRUNHES e PIERRE DEFFONTAINES (Géographie Humaine de la France, II, 112).

Enquanto, porém, as coisas estiverem no pé em que se encontram, não há motivo para alterar o que está feito: nem para mudar de capital, nem para preferir a divisão territorial anterior.

Na parte do país que agora nos toma a atenção, ninguém poderá contestar que os três distritos administrativos, retalhando uma região mais vasta, separavam, afinal, aquilo que devia estar ligado.

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E poderão talvez trazer-se para aqui estas palavras que, em circunstâncias bem diversas, ainda há pouco vieram a público em documento célebre: Um grande diamante, que se quebra em vários, perde automaticamente a maior parte do seu valor.

Coimbra, Fevereiro de 1937

A. DE AMORIM GIRÃO

 

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