Naquele tempo não havia alguma outra estrada nas vizinhanças da cidade,
além da estrada nova ao sul dela, feita nos últimos anos do reinado de
D. Maria I. O resto eram tudo caminhos de carro e de pé; mesmo no
Distrito não havia outra estrada além da de Lisboa ao Porto, passando
por Mealhada, Águeda, e Albergaria, etc.
Deploráveis eram, porém, as condições em que por essa antiga estrada se
viajava. Havia as liteiras, caixas com assento para duas pessoas, com
varais anteriores e posteriores, aos quais era respectivamente atrelado
um muar. Serviam só para nababos, bispos, prelados das Ordens monacais,
desembargadores, e outros altos funcionários; para os restantes havia os
machos de arrieira, pela maior parte teimosos e manhosos, mal arreados,
de péssimo andar, no que forçoso era resignar, porque uma viagem de
liteira entre Lisboa e Porto não custava menos de 80000 a 90000 réis.
Deve acrescer um dispêndio não menor de cinco dias, pousadas incríveis,
e enfim, o risco de ser roubado e até assassinado em Chão de Maçãs, no
Pinhal da Azambuja, e noutros sítios, em que quadrilhas de ladrões
assaltavam os viandantes.
Não é inteiramente figura de retórica dizer-se que algumas pessoas,
obrigadas a ir a Lisboa, deixavam feito o seu testamento; o caso deu-se
algumas vezes.
Quem aqui nascia, aqui morria, sem se aventurar a viajar para além de
Coimbra ou Porto; e ainda assim, com quantas dificuldades lutava! Para
se ir ao Porto entrava-se num barco de Ovar, assim chamado, que fazia
carreira diária entre os dois pontos; quem podia tomava a proa, se não
estava já tomada; aliás, ia no convés e ao relento, e no inverno ao
vento e à chuva.
A partida era sempre às nove ou dez horas da noite, chegando-se a Ovar
de manhã, às horas que o barqueiro queria. Ali justava a cavalgadura,
havendo-a, pois que algumas vezes nem uma aparecia; havendo sardinha em
Espinho, todas para ali corriam; havendo-a, montava-se sobre uma albarda
de carga, sem estribos, sem freio, sem rédeas, e ela partia por entre os
pinheiros, seguindo o trilho seu conhecido, sem que o passageiro pudesse
guiá-la.
O arreeiro deixava-a seguir como quisesse, e se desviava por atalhos,
aparecendo quando e onde queria, mas sempre onde havia taberna para
exigir vinho e para pensar a cavalgadura. Esta, costumada à pitança, ao
avistar a taberna, corria de galope, e ai do passageiro que se não
baixasse, prolongando-se pelo pescoço do animal, porque, não o fazendo,
era-lhe certo bater com a cabeça na padieira da porta. Quem tinha
relações em Ovar com alguma pessoa, à qual pedisse com antecipação que
lhe fretasse cavalgadura, só por este meio conseguia obtê-la em
condições suportáveis, embora mais cara; mas nem todos tinham ali
relações, e nem sempre havia tempo de utilizar-se delas.
A passagem da Barrinha, sempre incómoda, era perigosa no inverno; os
barcos velhos, mal aparelhados; os barqueiros imperitos e às vezes
crianças; cavalgaduras embarcadas juntamente com os passageiros; enfim,
não podiam ser piores os meios de fazer esta travessia.
Em 1850 ou 1851, um belo rapaz desta cidade, José Nunes da Maia, capitão
de marinha mercante, depois de ter feito viagens ao estrangeiro,
terminou seus dias naquele charco. Muitas vezes, no meio do areal, era o
passageiro sacudido pela cavalgadura, que fugia, deixando-o só, e
obrigado a seguir a pé, até que o arreeiro aparecesse e conseguisse
encontrar a fugitiva.
De volta, ou se havia de esperar em Ovar a hora da partida do barco da
carreira, ou, fretando-se outro, apenas se obtinha a passagem da proa,
mas pouco ou nada se adiantava a viagem. Feito o ajuste, começavam a
faltar os aparelhos; era a chave da proa, era a ostaga, a escota, etc.,
e cada uma destas coisas se ia buscar à casa do barqueiro,
prolongando-se a demora quanto possível, com o fim de admitir no barco
os passageiros que vinham chegando, e não havendo, como quase sempre não
havia, recurso, forçoso era resignar, muitas vezes, a partir quando o
barco da carreira.
As jornadas pelo Distrito, sempre por caminhos péssimos, azinhagas, com
largura apenas para um carro de bois, eram sempre incómodas e quase
sempre arriscadas; aqui, atoleiros em que as cavalgaduras se enterravam
até aos peitos, ali, charcos de água que era forçoso transpor, por toda
a parte silvas dos valados, rasgando o fato ou ferindo os cavaleiros;
eram inconvenientes que a gente de pé evitava quando podia, abrindo
portais nos valados, e subindo as terras, fazendo caminho por diversos
carreiros, através de sementeiras e searas, com prejuízo de seus donos.
No rio Vouga, apenas havia a antiga ponte junto do lugar que tem o mesmo
nome do rio, e a de Pessegueiro, mandada construir por um abade da
freguesia; sobre o Águeda havia a do lugar deste nome, e a chamada da
Rata, entre Eirol e Almear.
Esta, porém, consistia em duas paredes paralelas, com abertura para
passagem da água em tempo de cheias, com o pavimento aqui encharcado,
ali com montões de pedregulho, dando dificílima passagem a cavaleiros e
mesmo a peões, que só podiam seguir descalços.
Além destas, foi em 24 de Novembro de 1844 que António Ferreira de
Novais, secretário geral, e ao tempo servindo o cargo de Governador
Civil, pelo aborrecimento de esperar três horas pelo barqueiro para
passar de Cacia para Angeja, em jornada de serviço, tomou a iniciativa
da construção da ponte que naquele sítio se acha, sendo feita à custa do
Distrito, mas de madeira, porque a Junta Geral não dispunha de meios
para mais, e assim ficou até ao presente, sem ter havido quem disponha
de influência bastante para conseguir do Governo que a substitua
devidamente por outra de pedra ou ferro, como cumpre que se faça, pois
que faz parte da estrada de segunda classe n.º...
A avenida desta ponte para a vila muito custou a firmar, destruindo
sucessivamente os trabalhos por alguns anos feitos para a consolidar, o
que afinal foi conseguido pelo engenheiro Silvério Augusto Pereira da
Silva.
Antes das estradas que hoje servem todos os concelhos do Distrito, que
todas foram construídas posteriormente a 1851, todos os caminhos eram
deploráveis, Que dificuldades se encontravam para conduzir um doente às
Caldas de S. Pedro do Sul, quando pelo seu estado não podia ir a cavalo!
Nos concelhos serranos só podia jornadear-se em cavalgaduras costumadas
aos caminhos, sempre com guia, o qual, de quando em quando convidava os
passageiros a apearem-se, até que chegassem a ponto do qual pudessem
seguir a cavalo.
Na passagem do Vouga, em tempo de cheias, quase todos os anos havia
perda de vidas, porque, alastrando as águas para os campos e cobrindo as
valas que por ali há, nelas caíam passageiros que não conheciam a
direcção que deviam seguir, até chegarem ao ponto onde a barca os
esperava, pois que esta somente servia para a passagem no álveo ou leito
do rio.
Enfim, os que hoje se aborrecem com as demoras dos comboios nas estações
da via férrea e com outros inconvenientes das viagens, se tivessem
jornadeado nos tempos já idos, longe de se aborrecerem e de se
queixarem, deviam bem dizer a sua sorte, e confessar-se agradecidos aos
que lhes proporcionaram as vantagens de que gozam com as novas estradas
e com a viação acelerada de que nos servimos actualmente e de que vamos
falar.
Foi em 18 de Julho de 1863 que uma locomotiva, puxando algumas
carruagens de primeira classe, veio a primeira vez em viagem de
experiência da estação de Estarreja até à proximidade da ponte sobre a
ribeira de Esgueira. De Estarreja até às Devesas já o caminho de ferro
funcionava. Não avançou para aquém da ponte, por isso que, tendo abatido
um viaduto praticado no aterro que atravessa o vale do Côjo, exigido por
Mendes Leite em condição no acto da venda do terreno, sobre o qual o
dito aterro foi levantado, afim de lhe dar serventia para os seus
prédios, de um e outro lado, ainda a esse tempo não se achava
reconstruído, nem chegou a sê-lo, porque Manuel José Mendes Leite,
reconhecendo que lhe era desnecessário, preferiu receber a importância
provável da despesa com a reconstrução; e por esta forma se abreviou o
trabalho de pôr o caminho naquele ponto em estado de dar passagem aos
comboios.
Todavia, só em 10 de Abril de 1864 teve lugar a abertura do caminho de
ferro das Devesas até Taveiro.
A passagem do caminho de ferro tão próximo desta cidade foi
inquestionavelmente o maior dos benefícios que Aveiro ficou devendo a
José Estêvão Coelho de Magalhães; a primeira directriz passava mais a
nascente, distanciando-se algumas léguas desta cidade, e foi devido
exclusivamente às diligências e esforços deste benemérito aveirense que
foi alterada, não, porém, sem que ele tivesse de lutar com tenacíssima
oposição contra a qual empregou toda a força que dimanava do seu
acrisolado amor à terra em que nasceu. Com efeito, além de todas as
vantagens comuns a qualquer povoação resultantes da proximidade de uma
estação de via férrea, recebeu daí esta cidade benefícios especiais e
privativos mui importantes, tais como a deslocação, de Águeda para
Aveiro, do empório do comércio de pescado, a saída pelo caminho de ferro
de grande quantidade de sal e outras muitas.
O pescado era conduzido em barcos pelo Vouga e Águeda, à custa de insano
trabalho, sendo indispensável recorrer em alguns pontos a juntas de bois
que os arrastavam por ser tão pouca a água que lhes não dava navegação,
e, chegando àquela vila, tinham os mercanteis de ali se demorar dias,
esperando a procura, e de sofrer as bruscas alterações de preço a que
este comércio da sardinha aqui está sujeito; desde que há a estação da
via férrea são os almocreves e carrejões que vêm procurar o pescado à
cidade, deixando assim este negócio maiores interesses aos exploradores,
além dos lucros que auferem contadeiras, empilhadeiras, carreteiros, e
outras classes, pelo seu trabalho ou fornecimentos.
O sal saía exclusivamente pela barra; muitas vezes, porém, com os
prejuízos resultantes da forçada demora na saída dos navios, por dias e
semanas, em razão da bravura do mar. Além disto, a via férrea abriu para
o sal novos pontos de consumo, para a Beira e até para além da raia.
O comércio de frutas também é beneficiado pelo caminho de ferro: a
demora na saída da barra fez algumas vezes que se perdessem carregações
inteiras; hoje, porém, expedida imediatamente pela estação de que está
mais próxima, chega ao Porto em bom estado, e aí embarca e sai sem dano
para os portos do destino.
Facilitou e deu importante incremento à exportação de legumes, aves,
ovos, mariscos, e outros artigos, e pôs a cidade em comunicação directa
com muitas das terras principais do Distrito, com as estâncias
balneares, com Lisboa, Coimbra, Porto, e outras cidades e terras
importantes do país.
Estes benefícios, porém, mal podem ser compreendidos e avaliados pela
presente geração; seria mister que ela tivesse viajado pelos antigos
caminhos e sofrido, numa demorada e enfadonha jornada de Aveiro ao
Porto, as arrelias causadas pelos arreeiros e barqueiros de Ovar. Quem
diria nesses tempos que outros viriam em que fosse facílimo ir a Lisboa,
chegar sem a menor fadiga, demorar-se um dia inteiro, regressar e
achar-se em sua casa, sem ter perdido mais do que um só dia? Quem tal
dissesse, por doido seria tido! Ir a Lisboa?! Só uma absoluta e
urgentíssima necessidade, a tanto podia obrigar. Havia um caminho pela
Figueira, e mais povoações da beira-mar, a terminar no Carregado,
seguido apenas pelos pescadores de Ílhavo e Murtosa, e por um recoveiro
de Mira que prestava bons serviços nas suas viagens mensais, levando e
trazendo encomendas.
Aqueles pescadores costumavam ir passar parte do ano nas vizinhanças de
Lisboa, onde se ocupavam na pesca da sardinha na baía e mesmo fora da
barra, e na do sável no Tejo até Santarém. Para todos os outros havia a
chamada estrada real, de Lisboa ao Porto, que no Distrito passava por
Oliveira de Azeméis, Albergaria, Águeda e Mealhada, e que na sua maior
parte foi aproveitada para a estrada que hoje temos e que a princípio se
chamava a estrada da Malaposta, sendo continuada mui poucos anos antes
da construção da via férrea do norte. |