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António Carretas, Sawadi Krap! - Crónicas de Viagens, 1ª ed., Aveiro, 1994, págs. 93 a 96.

Waluliso


Nos meus primeiros tempos de Áustria e enquanto a família não se me juntou, habitava em Baden bei Wien, estância termal a cerca de 20 quilómetros ao sul de Viena. Era aqui, como já tive ocasião de referir, que a empresa que me contratara tinha os seus escritórios, ao tempo ainda dispersos (seríamos depois concentrados na Villa Romana), e os da Lundberg, para quem dava o meu contributo, ocupavam o último andar (o quarto) do Hotel Papst, que pertencia igualmente ao patrão, William Papst de seu nome, com residência oficial em Monte Carro, etc., etc., etc., (e o que pode ir nestes etcs...).

Eu ocupava na altura o quarto 33, portanto terceiro andar do mesmo hotel. O tempo que demorava de "casa" ao "trabalho" era o tempo que um elevador normalíssimo, de um país civilizado, leva do terceiro ao quarto andar. Mas como tinha que vir ao rés-do-chão para o pequeno almoço, sempre dava um pouco para "apreciar a paisagem"! E ainda como nos primeiros tempos, fazia uma refeição ligeira ao almoço... no quarto 33, estão a imaginar o divertido que era. Mas isto foi só por um mês e meio, pois em Dezembro estava de partida para os Camarões, e aí já tinha "largueza" suficiente.

Naturalmente nos fins-de-semana fugia do Hotel Papst e, utilizando os transportes públicos (tramway ou autocarro), abalava até Viena. Qualquer das carreiras terminava em frente à Ópera, portanto bem no centro da cidade. Daí, debandava / 94 / à procura do desconhecido e de situações novas, percorrendo a pé (que é como melhor se conhecem os sítios) alguns quarteirões, nem sempre necessariamente para os mesmos lados. Nas primeiras vezes, só a Kartner Strasse, a Stephandom Platz e o Grabner eram suficientes para distrair e regalar o olho, como soe dizer-se. Desde o apreciar de montras, arranjadas com classe, ao ambiente das cafetarias onde se entrava para um café (com bom tempo transferidas para esplanadas de rua já que a zona citada era por norma fechada ao trânsito), passando pelo escutar e apreciar os variados "artistas de rua", que ao longo das artérias referidas fazem a sua demonstração a troco de meia dúzia de "shellings" que os transeuntes interessados lhes lançam para um chapéu ou para a caixa do instrumento utilizado, consegue-se assim que o tempo vá passando quase sem se dar por isso. A meio do percurso uma paragem no "MacDonalds" ou no "Nordsee" (conforme apetecia carne ou peixe) para uma refeição ligeira, ou ainda uma entrada no supermercado "Stefl" para umas compras de última hora (as sopas instantâneas ou a charcutaria estariam a faltar no quarto 33...) completavam o programa.

E nestes percursos pela baixa vienense, não raro era encontrar na passagem da Kartner Strasse para o Grabner, em frente à catedral de S. Estêvão, um monte de gente curiosa em volta de e escutando um personagem dos mais celebres e conhecidos de Viena: o Waluliso.

Deve ser dos mais fotografados este vienense, de seu nome verdadeiro Wickerl Weinberger, mas que se denomina de Waluliso e que, dependendo do ponto de vista dos contempladores, passa por louco, exibicionista, profeta ou ainda santo, entre muitas outras designações. Envolto numa / 95 / túnica branca, com um enorme letreiro azul ao peito onde se lê Waluliso, tem na cabeça uma coroa de folhas, sempre com uma maçã na mão direita que traz elevada e na outra um comprido bastão encimado, na altura, por uma bandeira conjunta dos E.D.A. e D.RS.S., acompanhadas de um segundo letreiro Waluliso mais pequeno.

Waluliso diz-se um iluminado e aproveita todas as ocasiões para tentar transmitir ao povo as suas ideias. Mal tenha um conjunto de ouvintes interessados reunidos à sua volta, começa a pregar contra a perturbação do meio ambiente, contra a sociedade de consumo, contra o rearma­mento, contra as grandes potências (americanos e russos) e reclama a simplicidade, a naturalidade, a humildade e a honestidade. Os ouvintes reagem de diferentes maneiras, uns vaiando, escarnecendo ou ameaçando-o mesmo com bofetadas, outros pelo contrário aplaudem-no com entusiasmo. Waluliso normalmente saboreia o entusiasmo, forma com os dedos da mão direita, continuando a apertar a maçã, o V de vitória e continua o seu caminho, para nova assembleia uns metros a frente.

A vida de Waluliso é típica do proletariado vienense que passou pelas guerras: nascido em 1913, sem ter conhe­cido o pai, teve o seguinte percurso – primeira guerra, moço de lavoura numa quinta, falhado aprendiz de alfaiate, assim como de ourives e encadernador, desemprego, militar na segunda guerra, desertor, caixeiro-viajante. Aos 44 anos teve então a sua "inspiração" no Lobau (zona na margem esquerda do Danúbio), segundo ele conta, terá perdido os sentidos e quando os recuperou verificou que a sua mão tinha escrito na areia as duas primeiras letras de cada uma das palavras Wasser (água), Luft (ar), Licht (luz) e Sonne / 96 / (sol) — daí o conjunto Waluliso. Desde então luta ele por tudo isto e o seu discurso traduz sempre a ideia do regresso à natureza.

Aparece assim também muitas vezes na praia nudista do Lobau, onde terá sido inspirado, aqui necessariamente largando a túnica, mas mantendo a maçã na mão direita, o bastão na outra e sandálias nos pés, reclamando desta feita contra a central atómica de Zwentendorf, contra a central energética em Hainburg e pregando a favor das zonas livres de automóveis na cidade. Com propriedade podemos dizer que se trata de alguém que se despe (de preconceitos) e tudo abandona para tentar corrigir o mundo. Embora vivendo num pequeno apartamento de Viena, passa contudo o seu tempo na parte central da cidade e no Lobau.

Chegou mesmo, na sua inocência, a sonhar em 1986, ano de eleições, com a presidência da República, prevendo uma candidatura para o mais alto cargo do Estado, a fim de conseguir porventura uma Áustria mais humana e mais consciente do seu meio ambiente.

Reflectindo naquilo que o cidadão vienense Wickerl Weinberg, na sua qualidade de profeta (ou iluminado) Waluliso, pretende no seu discurso, não serão muito válidas as razões daqueles que dele escarnecem ou vaiam.


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