Nos meus
primeiros tempos de Áustria e enquanto a família não se me juntou,
habitava em Baden bei Wien, estância termal a cerca de 20
quilómetros ao sul de Viena. Era aqui, como já tive ocasião de
referir, que a empresa que me contratara tinha os seus escritórios,
ao tempo ainda dispersos (seríamos depois concentrados na Villa
Romana), e os da Lundberg, para quem dava o meu contributo, ocupavam
o último andar (o quarto) do Hotel Papst, que pertencia igualmente
ao patrão, William Papst de seu nome, com residência oficial em
Monte Carro, etc., etc., etc., (e o que pode ir nestes etcs...).
Eu ocupava na
altura o quarto 33, portanto terceiro andar do mesmo hotel. O tempo
que demorava de "casa" ao "trabalho" era o tempo que um elevador
normalíssimo, de um país civilizado, leva do terceiro ao quarto
andar. Mas como tinha que vir ao rés-do-chão para o pequeno almoço,
sempre dava um pouco para "apreciar a paisagem"! E ainda como nos
primeiros tempos, fazia uma refeição ligeira ao almoço... no quarto
33, estão a imaginar o divertido que era. Mas isto foi só por um mês
e meio, pois em Dezembro estava de partida para os Camarões, e aí já
tinha "largueza" suficiente.
Naturalmente nos fins-de-semana
fugia do Hotel Papst e, utilizando os transportes públicos (tramway
ou autocarro), abalava até Viena. Qualquer das carreiras terminava
em frente à Ópera, portanto bem no centro da cidade. Daí, debandava
/ 94 / à
procura do desconhecido e de situações novas, percorrendo a pé (que
é como melhor se conhecem os sítios) alguns quarteirões, nem sempre
necessariamente para os mesmos lados. Nas primeiras vezes, só a
Kartner Strasse, a Stephandom Platz e o Grabner eram suficientes
para distrair e regalar o olho, como soe dizer-se. Desde o apreciar
de montras, arranjadas com classe, ao ambiente das cafetarias onde
se entrava para um café (com bom tempo transferidas para esplanadas
de rua já que a zona citada era por norma fechada ao trânsito),
passando pelo escutar e apreciar os variados "artistas de rua", que
ao longo das artérias referidas fazem a sua demonstração a troco de
meia dúzia de "shellings" que os transeuntes interessados lhes
lançam para um chapéu ou para a caixa do instrumento utilizado,
consegue-se assim que o tempo vá passando quase sem se dar por isso.
A meio do percurso uma paragem no "MacDonalds" ou no "Nordsee"
(conforme apetecia carne ou peixe) para uma refeição ligeira, ou
ainda uma entrada no supermercado "Stefl" para umas compras de
última hora (as sopas instantâneas ou a charcutaria estariam a
faltar no quarto 33...) completavam o programa.
E nestes
percursos pela baixa vienense, não raro era encontrar na passagem da
Kartner Strasse para o Grabner, em frente à catedral de S. Estêvão,
um monte de gente curiosa em volta de e escutando um personagem dos
mais celebres e conhecidos de Viena: o Waluliso.
Deve ser dos mais fotografados
este vienense, de seu nome verdadeiro Wickerl Weinberger, mas que se
denomina de Waluliso e que, dependendo do ponto de vista dos
contempladores, passa por louco, exibicionista, profeta ou ainda
santo, entre muitas outras designações. Envolto numa
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branca, com um enorme letreiro azul ao peito onde se lê Waluliso,
tem na cabeça uma coroa de folhas, sempre com uma maçã na mão
direita que traz elevada e na outra um comprido bastão encimado, na
altura, por uma bandeira conjunta dos E.D.A. e D.RS.S., acompanhadas
de um segundo letreiro Waluliso mais pequeno.
Waluliso diz-se
um iluminado e aproveita todas as ocasiões para tentar transmitir ao
povo as suas ideias. Mal tenha um conjunto de ouvintes interessados
reunidos à sua volta, começa a pregar contra a perturbação do meio
ambiente, contra a sociedade de consumo, contra o rearmamento,
contra as grandes potências (americanos e russos) e reclama a
simplicidade, a naturalidade, a humildade e a honestidade. Os
ouvintes reagem de diferentes maneiras, uns vaiando, escarnecendo ou
ameaçando-o mesmo com bofetadas, outros pelo contrário aplaudem-no
com entusiasmo. Waluliso normalmente saboreia o entusiasmo, forma
com os dedos da mão direita, continuando a apertar a maçã, o V de
vitória e continua o seu caminho, para nova assembleia uns metros a
frente.
A vida de Waluliso é típica do
proletariado vienense que passou pelas guerras: nascido em 1913, sem
ter conhecido o pai, teve o seguinte percurso – primeira guerra,
moço de lavoura numa quinta, falhado aprendiz de alfaiate, assim
como de ourives e encadernador, desemprego, militar na segunda
guerra, desertor, caixeiro-viajante. Aos 44 anos teve então a sua
"inspiração" no Lobau (zona na margem esquerda do Danúbio), segundo
ele conta, terá perdido os sentidos e quando os recuperou verificou
que a sua mão tinha escrito na areia as duas primeiras letras de
cada uma das palavras Wasser (água), Luft (ar), Licht (luz) e Sonne
/ 96 / (sol)
— daí o conjunto Waluliso. Desde então luta ele por tudo isto e o
seu discurso traduz sempre a ideia do regresso à natureza.
Aparece assim
também muitas vezes na praia nudista do Lobau, onde terá sido
inspirado, aqui necessariamente largando a túnica, mas mantendo a
maçã na mão direita, o bastão na outra e sandálias nos pés,
reclamando desta feita contra a central atómica de Zwentendorf,
contra a central energética em Hainburg e pregando a favor das zonas
livres de automóveis na cidade. Com propriedade podemos dizer que se
trata de alguém que se despe (de preconceitos) e tudo abandona para
tentar corrigir o mundo. Embora vivendo num pequeno apartamento de
Viena, passa contudo o seu tempo na parte central da cidade e no
Lobau.
Chegou mesmo, na
sua inocência, a sonhar em 1986, ano de eleições, com a presidência
da República, prevendo uma candidatura para o mais alto cargo do
Estado, a fim de conseguir porventura uma Áustria mais humana e mais
consciente do seu meio ambiente.
Reflectindo naquilo que o cidadão vienense Wickerl Weinberg, na sua
qualidade de profeta (ou iluminado) Waluliso, pretende no seu
discurso, não serão muito válidas as razões daqueles que dele
escarnecem ou vaiam. |