Acesso à página inicial

Reminiscências. Crónicas e outros escritos, Aveiro, 2014, pp. 272-275.


Reencontro

Florêncio Venâncio (o próprio não gostava muito do nome, já pensara em mudar o de baptismo ou de família, ou até os dois, mas faltava-lhe a coragem com receio de desgostar o padrinho e/ou o pai e isso não se coadunava com a sua maneira de ser) era um homem bastante viajado. Gostava sobremaneira do médio e extremo-orientes. Solteirão inveterado, nunca se fazia acompanhado nas diversas deambulações que levava a cabo por esse mundo fora, mas, e apesar da fraca figura e do nome, ou talvez por isso quem sabe (ah! as surpresas do comportamento humano...), arranjava sempre os seus esporádicos “arranjinhos” no decurso das viagens. Depois, por qualquer razão que lhe escapava, tais devaneios não passavam disso mesmo. E caíam sempre no esquecimento...

Tinha, como qualquer mortal, os seus amigos e, entre eles, contava-se um casal do Entroncamento, o Ernesto e a Eugénia Esmeraldo (basofiava ele, em outros círculos, que a Eugénia havia sido sua namorada na escola primária) e a quem ele fazia as suas visitas periódicas, principalmente para mostrar as fotografias (fracas, por sinal) que havia tirado no último local exótico por onde tinha passado, no fundo talvez para mostrar à Eugénia o que perdera em o ter trocado pelo Ernesto, pois as posses deste não davam para tais andanças.

De regresso das Filipinas, a viagem mais recente que fizera, não demorou muito que arranjasse pretexto para fazer nova visita aos Esmeraldos, mas desta vez, para além das fotos da viagem, transportava ainda consigo um livro, um magnífico exemplar sobre Macau.

Ocorrera-lhe de repente que, em viagem efectuada há alguns anos à Índia, num daqueles seus “intermezzos” amorosos de ocasião, em Jaipur, tinha contactado uma tal Mariana Cortes, e recordava que a mesma lhe havia dito estar na ocasião de mudança para o Entroncamento. No arrebatamento apaixonadíssimo do encontro, a senhora oferecera-lhe o livro sobre Macau, o que agora transportava, pois que vinha de um périplo pelo extremo-oriente, com passagem obrigatória por aquele território onde o tinha adquirido. Pelos vistos, a paixoneta foi de tal ordem que a senhora se desfez do magnífico exemplar, apondo-lhe inclusive uma dedicatória inflamada e assinada, de modo legível. Esperançado em reencontrar tal pessoa, isto na confirmação de que se teria efectivamente instalado no Entroncamento, o Florêncio pretendia abordar os seus amigos nesse sentido.

Após as primeiras trocas de impressões sobre a viagem como não podia deixar de ser, e depois sobre outros assuntos de circunstância, já no chá oferecido pela anfitriã, a mesma ficou curiosa de saber que livro o Florêncio trouxera e que, entretanto, depositara em cima da pequena mesa da sala de estar onde se encontravam. Que livro é esse, tão bonito, que tens aí? E então o Florêncio vai de dizer aos amigos que o mesmo lhe havia sido oferecido por uma senhora de nome Mariana Cortes, que pelos vistos moraria também no Entroncamento. Vocês por acaso não conhecem?... E, surpresa das surpresas, diz-lhe a Eugénia: aqui mesmo ao lado mora uma Mariana, que penso que também vai a Cortes, mas já vamos saber!... E, chegando-se à janela, vá de dar um berro para as traseiras da moradia pegada à sua, chamando pela D. Mariana, que andava de momento no quintal a fazer pequenos trabalhos de jardinagem: Oh! D. Mariana, pode chegar aqui, se faz favor!... Entretanto o Ernesto entretinha-se já a folhear o livro e dava, logo de caras, com a dedicatória onde era facilmente reconhecível a assinatura da Mariana.

Espreitando por cima da cabeça da Eugénia, por entre um espaço deixado livre por uma latada que dividia os quintais das duas moradias, o Florêncio entreviu a parte inferior de uma senhora que, abrigada por uma capa de plástico entreaberta, pois que chovera não havia muito tempo, ajeitava rapidamente umas calças justas de cor castanha, correndo até acima o respectivo “zip”, já que as proeminências de uns quilos a mais, recentemente adquiridos, a obrigavam a aligeirar o aperto das mesmas, nomeadamente quando era necessário dobrar-se no amanho do canteiro florido do seu jardim. A fugaz visão de um pedaço de carne rosada e do umbigo da dita Mariana, fez o Florêncio voltar anos atrás...

Passados momentos eis que Mariana entra pelas portas traseiras da casa dos Esmeraldos, dando as boas tardes aos donos da casa, e lançando ao mesmo tempo um olhar de viés ao Florêncio, denotando desde logo alguma surpresa na face. E de imediato, a Eugénia: aqui o nosso amigo Florêncio, que também conheces!... Ligeiramente corada, Mariana, que entretanto tinha tirado e dobrado a capa de plástico, e a mudava nervosamente de mão para mão, nega o conhecimento, que parecia óbvio para os Esmeraldos. E insiste que não, que não se lembra de ter visto ou encontrado alguma vez esse senhor!... Entretanto, tinha também pousado os olhos no livro sobre Macau, que continuava em cima da mesinha, aberto onde o Ernesto tinha parado quando apreciava o mesmo, e o vermelhão das faces aumentou ligeiramente.

O Ernesto, antevendo uma história para contar no café ao serão, apontando para o livro e reabrindo-o nas páginas iniciais, diz então para Mariana: – mas o Florêncio tem aqui este livro com, segundo me parece, a sua assinatura!... Mariana, fazendo-se forte, acercou-se do livro, e reconhece: – a assinatura é efectivamente minha, diz, e eu tive em tempos um livro desses, mas perdi-lhe o paradeiro e não sei como lhe foi parar às mãos, acrescenta, virando-se para o apalermado (porque o encontro não estava a correr de feição) Florêncio. Este, ainda esperançado em algo, que agora já não sabia bem o quê, ainda pergunta: – mas... não esteve na Índia aqui há uns anos?! Sim, sim, há talvez uns quinze anos, reconhecia Mariana, num misto de desorientação e de pretenso à-vontade.

Florêncio, apercebendo-se que não valeria a pena continuar com a “inquisição”, resolve acabar com o martírio e diz, em mentira piedosa, e num acto de cavalheirismo que não terá conseguido convencer os seus amigos: - eu também estive na Índia, mas foi realmente há muito menos tempo, e estou agora a lembrar-me que adquiri vários livros num alfarrabista do Porto, e este deve ter vindo nesse grupo. A Mariana, que no seu entender via aqui a sua tábua de salvação (os Esmeraldos já tinham entendido de outra maneira), arrisca: – efectivamente, em altura difícil da minha vida, tive que me desfazer de algumas coisas, entre elas livros e agora recordo que esse foi um deles!...

E aproveitou a deixa, para, e dando mais voltas à capa de plástico, já bastante amarfanhada, dizer que tem urgência em regressar a casa, pois tem ainda imenso que fazer nesse dia. E olhe! (ganhou então coragem) tive prazer em conhecê-lo... como disse que se chamava? Florêncio. Florêncio Venâncio... pois prazer em conhecê-lo, sr. Florêncio. O prazer foi todo meu, D. Mariana, diz, com um ar maroto, o Florêncio. E já agora permita-me um conselho, nunca se desfaça de livros tão valiosos... E enquanto Mariana saía, quase tropeçando num cadeirão, Florêncio trocava um sorriso matreiro com os Esmeraldos.


  Página anterior Página inicial Página seguinte