| 
             
            Florêncio Venâncio (o próprio não gostava 
            muito do nome, já pensara em mudar o de baptismo ou de família, ou 
            até os dois, mas faltava-lhe a coragem com receio de desgostar o 
            padrinho e/ou o pai e isso não se coadunava com a sua maneira de 
            ser) era um homem bastante viajado. Gostava sobremaneira do médio e 
            extremo-orientes. Solteirão inveterado, nunca se fazia acompanhado 
            nas diversas deambulações que levava a cabo por esse mundo fora, 
            mas, e apesar da fraca figura e do nome, ou talvez por isso quem 
            sabe (ah! as surpresas do comportamento humano...), arranjava sempre 
            os seus esporádicos “arranjinhos” no decurso das viagens. Depois, 
            por qualquer razão que lhe escapava, tais devaneios não passavam 
            disso mesmo. E caíam sempre no esquecimento... 
            
            Tinha, como qualquer mortal, os seus amigos e, 
            entre eles, contava-se um casal do Entroncamento, o Ernesto e a 
            Eugénia Esmeraldo (basofiava ele, em outros círculos, que a Eugénia 
            havia sido sua namorada na escola primária) e a quem ele fazia as 
            suas visitas periódicas, principalmente para mostrar as fotografias 
            (fracas, por sinal) que havia tirado no último local exótico por 
            onde tinha passado, no fundo talvez para mostrar à Eugénia o que 
            perdera em o ter trocado pelo Ernesto, pois as posses deste não 
            davam para tais andanças. 
            
            De regresso das Filipinas, a viagem mais 
            recente que fizera, não demorou muito que arranjasse pretexto para 
            fazer nova visita aos Esmeraldos, mas desta vez, para além das fotos 
            da viagem, transportava ainda consigo um livro, um magnífico 
            exemplar sobre Macau. 
            
            Ocorrera-lhe de repente que, em viagem 
            efectuada há alguns anos à Índia, num daqueles seus “intermezzos” 
            amorosos de ocasião, em Jaipur, tinha contactado uma tal Mariana 
            Cortes, e recordava que a mesma lhe havia dito estar na ocasião de 
            mudança para o Entroncamento. No arrebatamento apaixonadíssimo do 
            encontro, a senhora oferecera-lhe o livro sobre Macau, o que agora 
            transportava, pois que vinha de um périplo pelo extremo-oriente, com 
            passagem obrigatória por aquele território onde o tinha adquirido. 
            Pelos vistos, a paixoneta foi de tal ordem que a senhora se desfez 
            do magnífico exemplar, apondo-lhe inclusive uma dedicatória 
            inflamada e assinada, de modo legível. Esperançado em reencontrar 
            tal pessoa, isto na confirmação de que se teria efectivamente 
            instalado no Entroncamento, o Florêncio pretendia abordar os seus 
            amigos nesse sentido. 
            
            Após as primeiras trocas de impressões sobre a 
            viagem como não podia deixar de ser, e depois sobre outros assuntos 
            de circunstância, já no chá oferecido pela anfitriã, a mesma ficou 
            curiosa de saber que livro o Florêncio trouxera e que, entretanto, 
            depositara em cima da pequena mesa da sala de estar onde se 
            encontravam. Que livro é esse, tão bonito, que tens aí? E então o 
            Florêncio vai de dizer aos amigos que o mesmo lhe havia sido 
            oferecido por uma senhora de nome Mariana Cortes, que pelos vistos 
            moraria também no Entroncamento. Vocês por acaso não conhecem?... E, 
            surpresa das surpresas, diz-lhe a Eugénia: aqui mesmo ao lado mora 
            uma Mariana, que penso que também vai a Cortes, mas já vamos 
            saber!... E, chegando-se à janela, vá de dar um berro para as 
            traseiras da moradia pegada à sua, chamando pela D. Mariana, que 
            andava de momento no quintal a fazer pequenos trabalhos de 
            jardinagem: Oh! D. Mariana, pode chegar aqui, se faz favor!... 
            Entretanto o Ernesto entretinha-se já a folhear o livro e dava, logo 
            de caras, com a dedicatória onde era facilmente reconhecível a 
            assinatura da Mariana. 
            
            Espreitando por cima da cabeça da Eugénia, por 
            entre um espaço deixado livre por uma latada que dividia os quintais 
            das duas moradias, o Florêncio entreviu a parte inferior de uma 
            senhora que, abrigada por uma capa de plástico entreaberta, pois que 
            chovera não havia muito tempo, ajeitava rapidamente umas calças 
            justas de cor castanha, correndo até acima o respectivo “zip”, já 
            que as proeminências de uns quilos a mais, recentemente adquiridos, 
            a obrigavam a aligeirar o aperto das mesmas, nomeadamente quando era 
            necessário dobrar-se no amanho do canteiro florido do seu jardim. A 
            fugaz visão de um pedaço de carne rosada e do umbigo da dita 
            Mariana, fez o Florêncio voltar anos atrás... 
            
            Passados momentos eis que Mariana entra pelas 
            portas traseiras da casa dos Esmeraldos, dando as boas tardes aos 
            donos da casa, e lançando ao mesmo tempo um olhar de viés ao 
            Florêncio, denotando desde logo alguma surpresa na face. E de 
            imediato, a Eugénia: aqui o nosso amigo Florêncio, que também 
            conheces!... Ligeiramente corada, Mariana, que entretanto tinha 
            tirado e dobrado a capa de plástico, e a mudava nervosamente de mão 
            para mão, nega o conhecimento, que parecia óbvio para os Esmeraldos. 
            E insiste que não, que não se lembra de ter visto ou encontrado 
            alguma vez esse senhor!... Entretanto, tinha também pousado os olhos 
            no livro sobre Macau, que continuava em cima da mesinha, aberto onde 
            o Ernesto tinha parado quando apreciava o mesmo, e o vermelhão das 
            faces aumentou ligeiramente. 
            
            O Ernesto, antevendo uma história para contar 
            no café ao serão, apontando para o livro e reabrindo-o nas páginas 
            iniciais, diz então para Mariana: – mas o Florêncio tem aqui este 
            livro com, segundo me parece, a sua assinatura!... Mariana, 
            fazendo-se forte, acercou-se do livro, e reconhece: – a assinatura é 
            efectivamente minha, diz, e eu tive em tempos um livro desses, mas 
            perdi-lhe o paradeiro e não sei como lhe foi parar às mãos, 
            acrescenta, virando-se para o apalermado (porque o encontro não 
            estava a correr de feição) Florêncio. Este, ainda esperançado em 
            algo, que agora já não sabia bem o quê, ainda pergunta: – mas... não 
            esteve na Índia aqui há uns anos?! Sim, sim, há talvez uns quinze 
            anos, reconhecia Mariana, num misto de desorientação e de pretenso 
            à-vontade. 
            
            Florêncio, apercebendo-se que não valeria a 
            pena continuar com a “inquisição”, resolve acabar com o martírio e 
            diz, em mentira piedosa, e num acto de cavalheirismo que não terá 
            conseguido convencer os seus amigos: - eu também estive na Índia, 
            mas foi realmente há muito menos tempo, e estou agora a lembrar-me 
            que adquiri vários livros num alfarrabista do Porto, e este deve ter 
            vindo nesse grupo. A Mariana, que no seu entender via aqui a sua 
            tábua de salvação (os Esmeraldos já tinham entendido de outra 
            maneira), arrisca: – efectivamente, em altura difícil da minha vida, 
            tive que me desfazer de algumas coisas, entre elas livros e agora 
            recordo que esse foi um deles!... 
            
            E aproveitou a deixa, para, e dando mais 
            voltas à capa de plástico, já bastante amarfanhada, dizer que tem 
            urgência em regressar a casa, pois tem ainda imenso que fazer nesse 
            dia. E olhe! (ganhou então coragem) tive prazer em conhecê-lo... 
            como disse que se chamava? Florêncio. Florêncio Venâncio... pois 
            prazer em conhecê-lo, sr. Florêncio. O prazer foi todo meu, D. 
            Mariana, diz, com um ar maroto, o Florêncio. E já agora permita-me 
            um conselho, nunca se desfaça de livros tão valiosos... E enquanto 
            Mariana saía, quase tropeçando num cadeirão, Florêncio trocava um 
            sorriso matreiro com os Esmeraldos. 
             |