Com raras excepções, pouca gente gosta de os
ter por perto. Sou do tempo em que, enquanto crianças, se
amedrontava com a “vinda” dos ciganos: “se não comes a papa (quem
diz isto, diz qualquer outra coisa que se quisesse impingir às
ditas), vem aí um cigano e leva-te no saco”. Não sei se ainda hoje
tal método se utiliza! Espero bem que não!...
Não fui dos “massacrados” com esta
intimidação, até porque, desde muito cedo, tive alguma convivência
com esta gente. Em casa de meus avós paternos sempre foram bem
aceites, tanto que até uma nora arranjaram no seu seio. Um dos meus
tios, irmão portanto de meu pai, “acasalou” com uma cigana, situação
que originou alguns episódios rocambolescos e que dariam bem uma
novela (ou talvez um completo romance!... porque não pensar
nisso?!), em que até o meu pai terá sido ameaçado de morte (chegando
mesmo a ter que se esconder), por acusação de conivência com tal
“arranjinho”. Como se sabe, ainda hoje os casamentos ou uniões com
“gadjés” (como eles designam os não ciganos) continuam a não ser
aceites pela comunidade cigana. Neste caso, e depois de uns
primeiros tempos algo agitados, a situação conseguiu ser
ultrapassada. A minha “tia” cigana mostrou-se uma jóia de pessoa,
que queria bem a todos os familiares extra-comunidade que adquiriu
por esse facto, tendo-se todos, ela e os meus familiares, encaixado
perfeitamente.
Também na infância assisti a muitos negócios
efectuados pelo meu avô com ciganos, pois como se sabe eram eles (e
em certa medida ainda hoje são) os principais feirantes por todo o
país. No caso específico, os negócios eram na área do gado, a que o
meu avô também se dedicava. Habituei-me portanto, desde cedo, a
estar perto desta gente e ainda hoje, e talvez por esse passado,
tenho uma certa admiração (mas ao mesmo tempo respeito) pela
comunidade cigana. Por essa razão, vou procurando estar documentado
acerca dos seus hábitos, costumes e maneira de estar neste mundo,
que lhes é, por vezes, tão adverso!
Sendo considerados uns apátridas, não há
certezas absolutas da sua origem. Para alguns esta comunidade terá
tido início no Egipto. Para outros, e o mais provável, é que sejam
originários da Índia, mais propriamente da região nordeste da
península hindustânica, do Rajastão. Terão começado a sua grande
migração por volta do século IX. É esta a hipótese que mais aceito,
principalmente depois de ter passado por estas regiões em tempos
muito recentes. Ao visitar uma pequena aldeia no interior da
referida região pareceu-me estar num acampamento cigano. A
organização social dos ciganos é muito próxima da sua muito provável
ascendência indiana.
Existem vários argumentos favoráveis a esta
tese. De entre eles, por exemplo, o nome e a língua, dois elementos
importantes em qualquer comunidade. Entre eles, os ciganos não se
tratam por ciganos. Este povo trata-se por rom (os “homens”), nome
que tem origem no termo indiano dom, que designa uma casta muito
antiga de cantores e dançarinos na Índia. Ora é sabido da apetência
desta gente para o canto e para a dança. Por outro lado, a língua
dos rom, o romani, falado por todos os ciganos do mundo e que só
eles entendem, é uma língua muito próxima do hindi, ou melhor
dizendo, do sânscrito.
A casta dom atrás referida era uma das mais
baixas categorias na hierarquia de castas indiana, sendo por isso
considerados “intocáveis”. Como tal, não podiam exercer a maioria
das profissões com trabalho produtivo sedentário. Para alem disso
não podiam ter terras e assim nada tinham que defender. Também não
consta que fossem funcionários ou soldados. Ao longo de vários anos
de peregrinação pelo norte da Índia, acabaram por se habituar à vida
nómada, que adoptaram como lei de existência, vida que levaram
depois consigo para outros países, onde julgavam poder “fugir” à
adversidade de serem considerados uma casta baixa, a de
“intocáveis”.
“Os caracteres físicos dos ciganos são mais fáceis de distinguir que
de descrever, e basta ver um só para se reconhecer entre mil um
indivíduo desta raça. A fisionomia, a expressão, eis sobretudo o que
os separa das gentes que habitam no mesmo país”, isto escrevia
Prosper Merimée, a propósito da sua Carmen em 1846. E assim é de
facto, pois mesmo que alguns já não apresentem características
físicas próprias continua a haver no seu comportamento e nas suas
reacções algo que os permite identificar de imediato.
A sua declarada anarquia face às convenções
sociais existentes, contrasta com o conjunto de leis programáticas,
e com o código muito restrito, que regem a sua conduta.
Os elementos culturais dos ciganos chocam com
os hábitos, os usos e os costumes dominantes na sociedade. E como
têm códigos de honra e de justiça muito próprios, as pessoas
geralmente não os aceitam e não os querem por perto. As dificuldades
de relacionamento serão repartidas pelos dois grupos, pois à
“insensibilidade” dos “gadjés” para com os problemas dos ciganos
opõe-se a “inpermeabilidade” destes. Os ciganos têm um sentido de
clã muito activo, que os leva a algum distanciamento.
Haveria talvez que esclarecer devidamente as
populações sobre a verdade da etnia cigana, para que os mesmos
pudessem ter mais aceitação e se fossem integrando mais na sociedade
“gadjé”. Isto pressupõe também algum esforço da parte dos ciganos.
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