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Reminiscências. Crónicas e outros escritos, Aveiro, 2014, pp. 264-266.


Ciganos

Com raras excepções, pouca gente gosta de os ter por perto. Sou do tempo em que, enquanto crianças, se amedrontava com a “vinda” dos ciganos: “se não comes a papa (quem diz isto, diz qualquer outra coisa que se quisesse impingir às ditas), vem aí um cigano e leva-te no saco”. Não sei se ainda hoje tal método se utiliza! Espero bem que não!...

Não fui dos “massacrados” com esta intimidação, até porque, desde muito cedo, tive alguma convivência com esta gente. Em casa de meus avós paternos sempre foram bem aceites, tanto que até uma nora arranjaram no seu seio. Um dos meus tios, irmão portanto de meu pai, “acasalou” com uma cigana, situação que originou alguns episódios rocambolescos e que dariam bem uma novela (ou talvez um completo romance!... porque não pensar nisso?!), em que até o meu pai terá sido ameaçado de morte (chegando mesmo a ter que se esconder), por acusação de conivência com tal “arranjinho”. Como se sabe, ainda hoje os casamentos ou uniões com “gadjés” (como eles designam os não ciganos) continuam a não ser aceites pela comunidade cigana. Neste caso, e depois de uns primeiros tempos algo agitados, a situação conseguiu ser ultrapassada. A minha “tia” cigana mostrou-se uma jóia de pessoa, que queria bem a todos os familiares extra-comunidade que adquiriu por esse facto, tendo-se todos, ela e os meus familiares, encaixado perfeitamente.

Também na infância assisti a muitos negócios efectuados pelo meu avô com ciganos, pois como se sabe eram eles (e em certa medida ainda hoje são) os principais feirantes por todo o país. No caso específico, os negócios eram na área do gado, a que o meu avô também se dedicava. Habituei-me portanto, desde cedo, a estar perto desta gente e ainda hoje, e talvez por esse passado, tenho uma certa admiração (mas ao mesmo tempo respeito) pela comunidade cigana. Por essa razão, vou procurando estar documentado acerca dos seus hábitos, costumes e maneira de estar neste mundo, que lhes é, por vezes, tão adverso!

Sendo considerados uns apátridas, não há certezas absolutas da sua origem. Para alguns esta comunidade terá tido início no Egipto. Para outros, e o mais provável, é que sejam originários da Índia, mais propriamente da região nordeste da península hindustânica, do Rajastão. Terão começado a sua grande migração por volta do século IX. É esta a hipótese que mais aceito, principalmente depois de ter passado por estas regiões em tempos muito recentes. Ao visitar uma pequena aldeia no interior da referida região pareceu-me estar num acampamento cigano. A organização social dos ciganos é muito próxima da sua muito provável ascendência indiana.

Existem vários argumentos favoráveis a esta tese. De entre eles, por exemplo, o nome e a língua, dois elementos importantes em qualquer comunidade. Entre eles, os ciganos não se tratam por ciganos. Este povo trata-se por rom (os “homens”), nome que tem origem no termo indiano dom, que designa uma casta muito antiga de cantores e dançarinos na Índia. Ora é sabido da apetência desta gente para o canto e para a dança. Por outro lado, a língua dos rom, o romani, falado por todos os ciganos do mundo e que só eles entendem, é uma língua muito próxima do hindi, ou melhor dizendo, do sânscrito.

A casta dom atrás referida era uma das mais baixas categorias na hierarquia de castas indiana, sendo por isso considerados “intocáveis”. Como tal, não podiam exercer a maioria das profissões com trabalho produtivo sedentário. Para alem disso não podiam ter terras e assim nada tinham que defender. Também não consta que fossem funcionários ou soldados. Ao longo de vários anos de peregrinação pelo norte da Índia, acabaram por se habituar à vida nómada, que adoptaram como lei de existência, vida que levaram depois consigo para outros países, onde julgavam poder “fugir” à adversidade de serem considerados uma casta baixa, a de “intocáveis”.
“Os caracteres físicos dos ciganos são mais fáceis de distinguir que de descrever, e basta ver um só para se reconhecer entre mil um indivíduo desta raça. A fisionomia, a expressão, eis sobretudo o que os separa das gentes que habitam no mesmo país”, isto escrevia Prosper Merimée, a propósito da sua Carmen em 1846. E assim é de facto, pois mesmo que alguns já não apresentem características físicas próprias continua a haver no seu comportamento e nas suas reacções algo que os permite identificar de imediato.

A sua declarada anarquia face às convenções sociais existentes, contrasta com o conjunto de leis programáticas, e com o código muito restrito, que regem a sua conduta.

Os elementos culturais dos ciganos chocam com os hábitos, os usos e os costumes dominantes na sociedade. E como têm códigos de honra e de justiça muito próprios, as pessoas geralmente não os aceitam e não os querem por perto. As dificuldades de relacionamento serão repartidas pelos dois grupos, pois à “insensibilidade” dos “gadjés” para com os problemas dos ciganos opõe-se a “inpermeabilidade” destes. Os ciganos têm um sentido de clã muito activo, que os leva a algum distanciamento.

Haveria talvez que esclarecer devidamente as populações sobre a verdade da etnia cigana, para que os mesmos pudessem ter mais aceitação e se fossem integrando mais na sociedade “gadjé”. Isto pressupõe também algum esforço da parte dos ciganos.


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