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            A Blanche foi minha colega nos 4º e 5º anos do 
            liceu, no colégio Abade Faria, que se situava na rua do mesmo nome 
            em Margão, no tempo já a segunda cidade do estado (português na 
            altura) de Goa. De nome completo Maria Blanche Araújo Silva, era 
            filha do director do colégio, o professor Joaquim Silva. Tinha um 
            irmão mais novo, o Jerónimo, mas que era tratado familiarmente por 
            “Babuló”. A casa do sr. Director ficava mesmo ao lado do colégio, na 
            esquina oposta. Foi isto nos anos de 1951 a 1953. 
            
            Deixei de ver a Blanche desde o último destes 
            anos, porque enquanto eu seguia para Pangim para fazer os 6º e 7º 
            anos, ela ficou por Margão e enveredou pelo magistério primário. 
            Assim como igualmente deixei de ver o irmão. 
            
            Entretanto o Jerónimo completou o liceu e veio 
            para o “continente”, onde se licenciou e acabou por fixar, enquanto 
            a Blanche como professora primária por lá ficou por Goa e por 
            Margão. Nas minhas deambulações mais recentes (de há meia dúzia de 
            anos a esta data) pela Casa de Goa, em Lisboa, tive ocasião de 
            voltar a encontrar o “Babuló”. E falámos naturalmente da irmã e da 
            vontade que ambos teríamos em nos reencontrar, quase cinquenta anos 
            passados, pois não houvera entretanto ocasião para nos vermos de 
            novo, após o meu regresso de Goa. 
            
            A Blanche estivera de visita ao irmão em 
            determinada altura, mas só tive conhecimento da sua estadia entre 
            nós na véspera do seu regresso a Goa, tendo no entanto ainda 
            oportunidade de a contactar por telefone e prometer-lhe uma visita 
            em futuro muito próximo, já que me preparava para efectuar um novo 
            “tour” por aquelas paragens. 
            
            E de facto assim aconteceu. Não só nos 
            reencontrámos como ainda tivemos hipóteses e tempo de darmos conta 
            das alterações entretanto sofridas pelos dois, uma vez que 
            simpaticamente me aboletou em sua casa nos derradeiros cinco dias 
            que estive em Goa em Janeiro de 1999. 
            
            A ideia com que ficara dos dois irmãos nos 
            anos cinquenta era a de dois “descendentes”, já pelos nomes 
            europeizados, como ainda pelo tom de pele que me pareceu na altura 
            mais claro do que a maioria dos goeses. Apesar do irmão se encontrar 
            já devidamente integrado no ambiente e na vida lisboeta, continua 
            “goês”, de tom de pele e mentalidade, e a Blanche, vim agora a 
            constatar, nunca deixou de o ser. Tive que rectificar a ideia que me 
            ficara do passado, não só pelo aspecto exterior, como por conversas 
            que nesta visita tive com a Blanche, já que com treze, catorze anos, 
            que tínhamos na altura, essas particularidades nos passavam ao 
            largo. 
            
            A Blanche, agora já viúva, saiu de casa do pai 
            Silva para casar com um médico, de nome Luís Peregrino D’Costa 
            (assim mesmo!...), indo depois viver para casa deste, nos arredores 
            de Margão, mais propriamente num local chamado Raawanfond, também 
            conhecido por Aquém de Baixo. A casa, tivemos ocasião de o 
            constatar, é uma enorme moradia, uma bem conservada casa de família 
            com cerca de trezentos anos, de arquitectura tipicamente hindu ainda 
            que adaptada a gente católica como eram na altura os Silvas e os 
            Peregrinos D’Costa. Tem ainda vestígios da defesa que os ascendentes 
            do Aquém Doutor (como é por aqui conhecido o falecido marido da 
            Blanche) foram obrigados a ter para se defenderem de possíveis 
            ataques dos “ranes”, quando estes tentaram atacar Goa em épocas 
            passadas, tais como orifícios-viseiras nas paredes, de onde poderiam 
            ser assestadas armas de fogo a disparar para o exterior. 
            
            Ambos, embora assumidos praticantes, tanto que 
            até uma capela existe no interior da moradia, eram descendentes de 
            católicos “forçados”. Como a história refere, muitos dos católicos, 
            ou melhor cristãos, eram oriundos de famílias hindus que, nos 
            séculos quinze e dezasseis, eram, em pequenos, desviados das 
            famílias e forçados a ser baptizados levando normalmente o apelido 
            do padre que efectuava tal cerimónia. Daí os Costas, os Silvas, os 
            Albuquerques, os Fernandes, os Viegas e muitos outros nomes 
            portugueses que proliferam ainda hoje por aquelas paragens. 
            Tenho que considerar que me fazia efectivamente impressão na altura 
            quando algum destes cristãos se apresentavam como sendo brâmanes uns 
            (os letrados), vaisyas outros (os comerciantes) e depois a grande 
            maioria sudras. Como sabemos, estas são as designações das castas 
            hindus, e portanto embora cristianizados, continuavam todos a fazer 
            questão na sua casta. E alguns problemas poderiam surgir por causa 
            disso. Foi o que aconteceu com o casamento da Blanche com o Aquém 
            Doutor, como era conhecido o Luís Peregrino D’Costa na aldeia de 
            Raawanfond, pois enquanto ela era brâmane, considerada a casta 
            superior, o doutor era sudra, que é a mais baixa das quatro castas 
            existentes na Índia e então grande celeuma ocasionou esta paixão que 
            foi durante bastante tempo contrariada, mas que o amor de Blanche 
            pelo seu “peregrino” conseguiu fosse ultrapassada a barreira das 
            castas. Perguntarão, como é que isto ainda acontece neste século?, 
            mas isso é um facto e um estigma que os indianos não conseguiram 
            ultrapassar, ainda que, como neste caso, os intervenientes se 
            admitiam já como cristãos praticantes. 
            
            O caso, desta minha colega de liceu, vem 
            confirmar a descendência hindu de grande parte dos cristãos que 
            fomos encontrar em Goa naqueles tempos. A adopção do “sari” usado 
            preferencialmente pela Blanche, como traje habitual no contacto com 
            o exterior, o seu casamento com o doutor D’Costa que pertencia a uma 
            casta diferente da sua, (doutor que foi um “freedom fighter”, 
            lutando com persistência pela integração daqueles territórios na 
            Índia), o tipo de vida que leva ainda agora em Raawanfond, tudo isto 
            mostra que os Silvas não estariam tão ocidentalizados quanto eu 
            pensava e que a sua ancestralidade continuava presente. 
            
            Os nomes próprios destes cristãos, forçados ou 
            não, que até se alargar o território eram portuguesíssimos, a partir 
            de 1961 deixaram em grande parte de o ser, e para o confirmar, o 
            casal D’Costa-Silva, de nomes próprios Luís e Maria, colocaram ao 
            filho, nascido em 1965, o nome de Pradip, que quer dizer “raio de 
            luz” em língua local. Este, por sua vez, casou com uma jovem, 
            nascida também depois da integração e de nome próprio, igualmente 
            não português de todo, Eileen. Mas é bom referir-se que, apesar de 
            terem nascidos “integrados” na grande nação indiana e de a língua 
            portuguesa ser completamente banida em termos de estudo ou ainda de 
            conservação, ambos falam a língua portuguesa sem dificuldade de 
            maior, isto para além de serem umas jóias de pessoas, e a quem se 
            deveu muito do bem-estar que me foi proporcionado nos tais últimos 
            dias passados em Goa em Janeiro de 1999. 
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