Às 0 horas do dia 15 de Agosto de 1947 a
Inglaterra, através do seu último vice-rei Lord Mountbaten,
oficializa o abandono do enorme território que vinha administrando
desde há dois séculos na província do Decão, e a que se chamava
entre nós de Índia inglesa, originando a partição do mesmo,
transferindo os poderes para dois novos estados, a Índia e o
Paquistão, nas pessoas dos senhores Jawaharlal Nehru e Mohammed Ali
Jinnah respectivamente.
No mais amplo território que “calhou” à Índia
ficaram encravados os enclaves de Goa, Damão e Diu, que constituíam
o que Portugal denominava de Estado da Índia Portuguesa e outros
mais pequenos, como Pondicheri, Chandernagor, Mahé, que vinham sendo
administrados até então pela França.
Desde logo o “pandita” Nehru começou a pensar
que estes enclaves deveriam pertencer à União Indiana, como melhor
designou o novo estado, e trata de diligenciar para o efeito. Se a
França lhe fez a vontade passado pouco tempo, Portugal não esteve
pelos ajustes e pela voz melífera de Salazar fazia saber ao
“pandita” que não abdicava da sua soberania sobre aqueles
territórios, que os portugueses de mil e quinhentos tanto tinham
suado para os “conquistar”.
Em 1951 quando eu fui para Goa já as relações
entre Portugal e a novel Índia eram bastante tensas e o conflito
agudizava-se ainda que, por enquanto, só a nível diplomático e em
diferendo a tentar ser resolvido pelas Nações Unidas. O tempo
passava, Portugal não fazia a vontade ao senhor Nehru e este
insistia na anexação.
Eis senão quando, o “pandita” se lembra de
tentar a anexação pela via iniciada tempos atrás por Mahatma Gandhi
quando este lutava pela independência da “sua” Índia, ou seja pela
designada via da não-violência. E é então que aparecem os
“satyagrahis”.
Façamos um parêntesis para introduzir a ideia
deste palavrão. O termo começa com “Satya” que na filosofia hindu
significa a verdade pura, a realidade suprema. Daqui deriva
“satiagraha” (tradução directa “fecho da verdade”), o espírito dos
adeptos da “ahîmsa” (ou não violência), quando decididos a obter
qualquer coisa, sob o plano religioso ou político, ainda que a custo
da própria vida. Como “satiagraha” ficou conhecido o movimento
não-violento de resistência a uma opressão, iniciado por Gandhi em
1894 na África do Sul, e prosseguido na Índia a partir de 1920 com
fins políticos. Os que seguem o “satiagraha” são designados de
“satiagrahis”.
Apesar das invasões destes “satiagrahis” se
autoproclamarem de pacíficas, e que inicialmente não passavam da
fronteira porque os militares os não deixavam prosseguir, elas não
deixaram contudo de fazer mossa quando em 22 de Julho de 1954, em
escaramuças nos enclaves de Dadrá e Nagar-Aveli, que pertenciam ao
território de Damão, um sargento e um soldado indígenas foram
abatidos pelos tais “pacíficos” adeptos da não violência. Como
resultado da escaramuça, apossaram-se daqueles dois enclaves, que
Portugal reclamaria depois em vão.
Esse ano de 1954 foi o início a sério dos
“satiagrahis”. Um dos mais acérrimos defensores da integração de Goa
(e necessariamente dos dois outros territórios) na União Indiana era
Peter Alvares, auto-proclamado presidente do “National Congress
(Goa)” e que em Julho deste ano de 1954, em pregão lançado de
Belgão, anuncia que no mês seguinte seria lançada uma ofensiva
“satiagraha” de jacto, de avalanche, do “agora ou nunca”.
Efectivamente a 15 de Agosto, coincidente com o aniversário da
independência da Índia, uma fila de “satiagrahis” organizada ao som
de cânticos de paz, tendo as respectivas famílias a despedirem-se
(não esqueçamos que o movimento admitia, se necessário, o custo da
própria vida), colares de flores ao pescoço, todos de branco
vestidos, em ritmo de procissão romperam fronteira portuguesa
adiante. Diziam-se eles próprios contratados a 4 rupias por cabeça
(ao câmbio da altura correspondia isto a cerca de vinte escudos,
veja-se a miséria do contrato).
Como não vinham armados, não perturbando
demasiado a ordem pública com excepção do aparato da procissão em si
e por tal motivo dificultar o escoamento do trânsito por ocuparem as
vias, foram deixados avançar até Pangim. Aqui começaram as
manifestações mais impertinentes e a ofensiva verbal de denegrir a
soberania portuguesa. Naturalmente que a polícia de Goa, comandada
que era na altura por um militar “de barba rija”, que tinha andado
na guerra civil de Espanha, o capitão Romba de seu nome, estava
atenta a estes movimentos e logo que eles extravasaram um pouco
tratou de activar os seus efectivos e de os levar para a cadeia do
Altinho, alcandorada na colina que domina a cidade de Pangim, ou
Nova Goa como então era mais conhecida.
Na sua maior parte os integrantes desta
invasão pacífica eram banais rapazolas, alguns mesmo adolescentes, a
quem lhes teria sido prometido mundos e fundos. Para ver da
ingenuidade destes “aboletados”, um que desfraldou a bandeira da
União Indiana e gritou “Jai Hind” (Viva a Índia), disse depois que
lhe tinham garantido que, logo que levantasse a bandeira, milhares
de goeses se juntariam a ele. Juntou-se-lhe só um, mas foi para o
prender.
Por aqui se pode ver o quanto esta gente vinha
enganada e manipulada, não fazendo a mínima ideia do que vinha
fazer. Havia até quem levantasse a suspeita de que o “satiagraha”
podia eventualmente ser uma solução para a crise e para o desemprego
que se verificava então na União Indiana. Para os que entretanto
foram presos, e durante o tempo que estiveram na cadeia do Altinho,
poder-se-á dizer que “tiraram a barriga de misérias” e testemunharam
até terem sido bem tratados. A este respeito, convidamos a ler uma
obra de um insuspeito Coronel francês, Remy de seu nome, que tendo
estado nesses anos em Goa, escreveu depois a obra “Goa, Rome de
l’Orient” onde relata conversas que entreteve com alguns destes
“satiagrahis”.
Com maior ou menor actividade estas invasões
de “satiagrahis” foram-se sucedendo, mas não sendo obtidos os
resultados que pensaram obter com estes movimentos, os mesmos
foram-se diluindo com o tempo. Até que, em 1961, resolveram agir de
outra maneira, mandando a não-violência “às malvas” e actuando como
se sabe para se apoderarem dos territórios dominados por
quatrocentos e cinquenta anos pelos portugueses.
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