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António Carretas, Sawadi Krap! - Crónicas de Viagens, 1ª ed., Aveiro, 1994, págs. 107 a 111.

Chandni Chowk


«Tanto quanto sou capaz de julgar, nada foi deixado por fazer, quer pelo homem, quer pela natureza, para que a Índia seja o país mais extraordinário que o sol visita na sua volta. Nada parece ter sido esquecido...»  Mark Twain

 

Namasté!...

Para quem não esteja familiarizado com o que se passa no subcontinente asiático que é a Índia, fica a saber que com esta palavra, acompanhada de um juntar de mãos à altura do peito, o estão a saudar. Portanto, Namasté!... amigos.

A Índia deve fazer um bocado de confusão a grande maioria das pessoas. Conhecido como um país de grandes contrastes, onde o fausto e a miséria podem aparecer lado a lado, a Índia é um país que ou se ama ou se detesta. Incapazes de suportar o choque cultural derivado do / 108 / contacto inicial com as suas gentes e os seus costumes, com a miséria que lhes é proporcionada constantemente, o calor e os insectos, com a própria mentalidade do povo indiano e a confusão de línguas, de cultos, de deuses, imensos turistas, inicialmente curiosos de conhecer este país, querem fugir o mais depressa possível deste mundo caótico, contrário a qualquer ordenação habitual nos povos ocidentais. Quem no entanto consegue resistir, o resultado é ficar fascinado com este universo único, por esta realidade tão diferente, mais forte e mais intensa que aquela a que estão habituados, ficam "clientes" e vão voltar na próxima oportunidade a esta acolhedora terra.

Um teste para qualquer um poder resolver se foge ou se fica, é passear com calma por uma rua de uma grande cidade indiana. Nela está retratada toda a vida deste imenso orbe. Ao contrário de uma qualquer rua da Europa, que acaba por ser um lugar neutro de passagem, a rua indiana é tudo, consegue ser um microcosmo da Índia. A rua indiana é um local de encontro, um jardim para crianças e um asilo de velhos, é uma cozinha mas ao mesmo tempo um estábulo, é uma feira, com cheiros agradáveis de flores e frutos, mas ao mesmo tempo uma latrina, ela é um imenso bazar de cores garridas e violentas, um mundo enfim onde o pitoresco e a beleza se dão mãos com o trágico e o sórdido.

Quem começar a sua visita à Índia pela cidade de Delhi, aconselha-se que vá de imediato até Chandni Chowk. Esta avenida, outrora com palácios de aristocratas e ricas casas de comerciantes, é uma das artérias mais congestionadas e, por isso, mais significativas da parte velha de Delhi. Fica situada face ao forte Vermelho (Lal Qila, na versão indiana), imponente cidadela de barro vermelho, símbolo do fausto / 109 / da época moghul.

Chandni Chowk não passa hoje de um centro de negócios. Negócios de toda a espécie. Não raro é chegar aos ouvidos dos transeuntes murmúrios de inúmeros intermediários perguntando se quer haxixe, erva, ópio ou cocaína. Para quem estiver interessado, naturalmente. Rua óptima igualmente para os "pickpockets" (carteiristas, amigos do alheio), que ao mínimo pretexto sacam dos haveres de cada um. Convém não mostrar que se tem, o mínimo gesto de manusear dinheiro é pretexto para uma pessoa se ver rodeado de umas boas dezenas de mãos ávidas, o que pode transformar-se em situação difícil. Os próprios guias turís­ticos, indianos, desaconselham vivamente dar qualquer es­mola em sítios destes, porque o simples gesto de meter as mãos ao bolso ou à carteira pode desencadear uma movi­mentação desagradável. Assisti a uma dessas situações, acontecida com um turista nórdico, à saída do Forte Verme­lho, quando teve a veleidade de, altruisticamente, pretender esmolar um dos inúmeros pedintes ali postados. De repente viu-se encurralado por dezenas de outros, em molho tentan­do sacar-lhe dinheiro da carteira, e só se safou porque, dada a sua altura, conseguiu colocar a carteira que reteve na mão a uma altura inacessível às mãos dos indianos até à inter­venção rápida da polícia que conseguiu dispersar os sitiantes.

Os olhos gulosos que alguns outros mostraram, ao olhar fixamente para as malas de mão de algumas senhoras do grupo e que depois nos seguiram durante o passeio que efectuámos por esta Chandni Chowk faziam crer que ao mínimo descuido os mesmos poderiam efectuar qualquer manobra menos digna. Todos os cuidados são poucos nesta babeI.

/ 110 / Voltando ao ambiente desta típica Chandni Chowk, como bazar que é, ela tem todo um conjunto de "boutiques" de tipo medieval, onde os fritos (com recheio de batata, couve-flor, cebola, etc.) servidos com um molho picante, se misturam com pratos de grão torrado, de favas ou milho assado, cozinhados de carneiro com os legumes mais variados, frutos normalmente bem apresentados, as mais diversas especiarias. Os odores dos fritos, dos legumes e dos frutos, a contrastar com o cheiro da urina e dos excrementos de animais, ou ainda com os perfumes doces do incenso ou das especiarias!...

Para além disso, as profissões mais diversas que se possam imaginar, como mecânicos, ferradores ou até barbeiros ao ar livre, têm igualmente o seu lugar nesta enorme avenida. Ainda os mercadores de xarope, com as suas garrafas multicores donde tiram infusões agradáveis (mas talvez pouco recomendáveis) ou os vendedores de água fresca, a copo (igualmente pouco recomendáveis), matando a sede aos seus clientes, com pouso fixo ou a patrulhar os dois lados da avenida, nas suas carroças ou triciclos.

Acrescente-se o trânsito caótico e de toda a espécie de veículos motorizados ou não, que circulam continuamente nos dois sentidos da avenida.

O barulho é ensurdecedor, pois além das vozes dos mercadores e clientes, nas diversas línguas, os ruídos das motorizadas (calcula-se que não exista inspecção dos escapes das mesmas), as buzinas dos táxis e dos velhos autocarros que são utilizadas em contínuo para afastar tudo e todos que lhes apareça pela frente. E no tudo, aparecem as vacas que como sagradas que são podem andar por onde lhes apetecer, em quaisquer sentido ou mesmo deitarem-se / 111 / pachorrentamente em plena via, obrigando as viaturas a desviar-se. Vaca é sagrada!... Depois a música de cinemas, de gira-discos ou de cassetes no máximo de som possível, torna o ambiente de feira e impossível de aturar por muito tempo.

Como em qualquer rua das grandes cidades indianas podem ver-se em Chandni Chowk homens e mulheres pertencentes a todos os grupos étnicos e linguísticas, todas as castas e seitas da Índia. Se os "sikhs" ou os "raj puts" se podem facilmente identificar pelos seus turbantes, uns pretos outros coloridos, os muçulmanos pelos seus barretes típicos de algodão ou os "sadhus" (ascetas) pela sua indumentária de cor alaranjada, os restantes são mais difíceis de distinguir porque a maior parte enverga vestimentas de tipo europeu. As mulheres, pelo contrário, continuam fiéis aos seus "saris", amplos tecidos de algodão ou seda, das cores mais garridas e imagináveis.

Chandni Chowk possui igualmente, como qualquer outra grande artéria das restantes cidades, o seu cortejo de mendigos, dos quais impressiona a grande quantidade de leprosos que atiram à cara dos transeuntes as suas mazelas no intuito de lhes extorquir uma esmola para já não falar nas crianças mutiladas, de propósito, e exibidas pelas mães lacrimosas (?!).

Julgo que se deu uma imagem de uma rua indiana que, como se disse, é a amostra fidedigna do que se passa no continente indiano e que poderá afugentar o turista incauto que não esteja minimamente preparado para este mundo tão sórdido quanto belo. O belo virá para quem conseguir ficar....
 


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