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Rosa Púrpura do Cairo
O filme
Título original: The Purpur Rose of Cairo. Realização:
Woody Allen (EUA, 1985). Argumento: Woody Allen.
Fotografia (cor): Gordon Willis. Direcção artística:
Edward Pisoni. Cenários: Stuart Wurtzel, Carol Joffe e Justin
Scoppa. Guarda roupa: Jeffrey Kurland. Som: James
Sabat e Richard Dior. Música: Dick Hyman. Canções: «Cheek
to Cheek», de Irving Berlin, interpretada por Fred Astaire; «I
Love My Baby, My Baby Loves Me», de Bud Green e Harry Warren; «Alabamy
Bound», de Ray Henderson, B. G. De Silva e Bud Green. Montagem:
Susan E. Morse. Produção: Robert Greenhut e Charles H.
Joffe, para Jack Rollins-Charles H. Joffe Production/20th Century
Fox/Orion. Duração: 81 minutos. Intérpretes: Mia
Farrow (Cecilia); Jeff Daniels (Tom Baxter/Gil Shepherd, alias
Herman Bardebedian); Danny Aiello (Monk); Irving Metzman (o
director do cinema); Stephanie Farrow (a irmã de Cecilia); David
Kieserman (o dono da cafetaria); Elaine Grollman, Victoria Zussin,
Mark Hammond, Wade Bernes, Joseph G. Graham, Don Quigley e Maurice
Brener (clientes da cafetaria); Paul Herman, Rick Petrucci, reter
Castellotti, Milton Seaman, Mimi Weddel, Tom Degidon, Mary Hedahl,
Edward Herrman, John Wood, Deborah Rush, etc. Distribuição:
Filmes Castello Lopes. Edição vídeo: Publivideo (Aluguer) e
Casablanca (Venda Directa). Classificação: Maiores de 6
anos/Filme de Qualidade.
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WOODY ALLEN
De «gagman» até
«Rosa Púrpura do
Cairo»
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Dado tratar-se de um dos mais interessantes cineastas do moderno
cinema norte-americano, autor de uma obra relativamente ampla,
documentando diversos períodos, pareceu-nos oportuno recordar o
trajecto de Woody Allen, desde os seus inícios como escritor de
«gags» para outros cómicos, até à realização de "Rosa Púrpura do
Cairo", uma das suas películas mais perfeitas e significativas do
seu universo pessoal e filmográfico.
1. O homem
Voltemos todavia, um pouco atrás e vejamos quem é este humorista
de vincado desencanto, que nos tem dado uma visão muito sua da
Améria e do american way of life. Nascido em Nova lorque, a
1 de Dezembro de 1935 (signo Sagitário, a quem pertencem, entre
outros, Jean Genet, William Blake, Edith Piaf, Heine, Rilke,
Toulouse Lautrec, Florbela Espanca), de origem judaica, o seu nome
de baptismo é Allen Stewart Konisberg. O pai, Martin Konisberg,
trabalhou durante grande parte da sua vida no negócio de diamantes
e foi empregado do Sammy's Bougery Follies, Informações que não
são todavia concordantes com a descrição do próprio Woody Allen,
que, deste período da sua vida, diz: Nasci numa família
"burguesa"; o meu pai era motorista de táxi e a minha mãe vendia
flores. Como não arranjaram vaga na escola para mim, colocaram-me
num colégio para atrasados mentais. Aos 12 anos ainda fazia
bolinhas nos cadernos. Aos 15, sonhava ser agente secreto;
estudava impressões digitais, lia tudo sobre crimes e só esperava
pelo momento de ser contratado pelo FBI. Mais tarde, ao saber que
os agentes secretos tinham de engolir os microfilmes, e, como o
meu médico me tinha proibido de comer gelatina... comecei a
estudar artes mágicas. Cansei-me logo de tantos coelhos, lenços e
caixas secretas e, como não tenho boa memória, acabaria certamente
por enforcar os coelhos nos lenços. Assim, decidi escrever...
anedotas. De dia trabalhava em relações públicas, e à noite
escrevia piadas. Escrevia coisas de uma idiotice total.
Começa realmente a escrever, aos 17 anos, «gags» para alguns
/ 5 / dos mais famosos cómicos e «entertainers» da
televisão norte-americana, como Sid Caeser, Ed Sullivan, Garry
Moore ou Sid Corney. Torna-se realmente um nome muito solicitado
para os «shows» televisivos, mas a TV deixa-lhe más recordações e
cedo se afasta: Naquele tempo, a televisão precisava de gente e
qualquer pessoa, mesmo um cretino, arranjava um «lugarzinho». A
televisão melhorou muito o meu senso critico. Tanto que hoje já
não a vejo.
No teatro, é autor de várias peças, duas das quais já adaptadas ao
cinema (Play it Again Sam, dirigida por Herbert
Ross, com o próprio Woody Allen no protagonista: "O Grande
Conquistador» em português: e ainda Don't Drink the
Water "Não Metas Água», com realização de Howard Morris).
Igualmente em jornais e revistas começa a aparecer com bastante
regularidade: «Fundei uma espécie de agência com um só
funcionário − eu próprio. Escrevia e despejava artigos da minha
autoria como quem vende salsichas, "Esquire», "Ufe», "New Yorker»,
"Play Boy», teatro, televisão, "boîtes», tudo foi invadido por
Woody Allen. Na América, se alguém quisesse ignorar-me era
impossível: eu estava lá e, como o custo de vida, subia
vertiginosamente...» Algumas recolhas de textos seus, conhecem
um sucesso invulgar em todo o mundo onde são editados, inclusive
em Portugal.
Por 25 dólares por semana, ao que consta, Allen passava o tempo
que lhe restava dos estudos na Universidade de Nova lorque
escrevendo piadas que um dia o produtor Charles Feldman encontrou
«cinematográficas». Assim surgiu a sua estreia no cinema, como um
dos autores de «What New, Pussicat?» (Que há de novo, Gatinha?),
filme de Clive Donner, comédia absurda com uma base de
«vaudeville», onde Woody Allen surgia igualmente como actor, em
meia dúzia de cenas que eram ainda o que de melhor o filme
oferecia.
Sobre «Pussicat» disse Woody Allen: «Aprendi alguma coisa de
como fazer filmes. Quando se está a rodar um grande filme de 4 000
000 de dólares, temos sempre à nossa volta uma quantidade de gente
que diz estar a "proteger os investimentos». Eles queriam um filme
rapariga-rapariga-sexo-sexo para fazer uma fortuna. Eu tinha mais
qualquer coisa na cabeça. Conseguiram um filme
rapariga-rapariga-sexo-sexo que fez uma fortuna.»
Woody Allen surge depois numa aventura burlesca e louca do fatal
007 − «Casino Royal». Não aparece entre os autores do argumento.
Mas, para lá da sua participação, descobrem-se muitas ideias e
diálogos obviamente da sua autoria.
Antes de iniciar a carreira como realizador (e autor integral de
filmes), Allen ainda adaptou um filme de espionagem japonês a
comédia americana e escreveu uma peça de teatro «Don't Drink the
Water») de que Howard Morris, em 1969, extraíra um filme − «Não
Metas Água», medíocre aproveitamento de uma situação com o seu quê
de estafada − uma família de New Jersey, composta por
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/ «Americanos típicos» é desviada para a Bulgária,
onde é tomada por espiões.
De 1969 é o primeiro filme de Woody Allen, aquele que o revelaria
nos EUA e na Europa − «Take the Money and Run» (O Inimigo
Público).
2. «O Inimigo Público»
Na linha do melhor burlesco americano, Woody Allen conta com
antepassados ilustres como Buster Keaton (de quem herda uma certa
qualidade nostálgica de olhar), Chaplin (que lhe trespassa o ar
abandonado de pobre diabo), Bucha e Estica ou os irmãos Marx (e o
seu universo caótico e profundamente absurdo). Mas Woody Allen não
se fica pelos antepassados remotos e vai beber a Jerry Lewis as
influências inequívocas (sobretudo na convivência desastrada com
os objectos, as máquinas, etc.). Acontece, porém, que depois de
ter visto muito cinema, Woody Allen resolveu iniciar um caminho
pessoal. Assim, as influências são manifestas, mas nunca o plágio.
Woody Allen deixou-se impregnar pelo espírito do burlesco
americano, pelo seu mecanismo de riso, mas reinventa os «gags»,
repensa a sua utilização redescobre o cinema. Ou seja: sabe o que
quer e como quer. Não hesita. «Take the Money and Run», seu
primeiro filme de fundo, escrito, realizado e interpretado por si,
é um atestado de maturidade e a afirmação de um talento de
recursos inesgotáveis.
Intencional e cáustico na sua sátira, Woody Allen não deixa
qualquer pormenor ao acaso. Todos os seus «achados» têm uma
justificação. A escrita é moderna, sincopada, integrando a
entrevista de TV (como sejam os casos das diversas personalidades
que são chamadas a depor sobre Virgil Starkwell, incluindo os seus
pais que, envergonhados com a conduta do filho, se disfarçam com
elementos de Groucho Marx), o comentário «off» com a narrativa
linear das desventuras de um «inimigo público». Tudo isto se
consegue sem uma falha de ritmo, sem uma concessão, sem perca de
unidade, muito embora grande parte dos «gags» seleccionados
tivessem sido já utilizados em anteriores «shows». Allen, de uma
inteligência revigorante, obriga a acção a galopar. Difícil se
torna comentar os «gags» que se sucedem. Anotemos, porém, alguns
como exemplares: Virgil desde criança que é apanhado sempre que
tenta qualquer expediente. Como castigo, deitam-lhe os óculos fora
e pisam-nos. Inclusive o juiz do tribunal. Tempos depois, quando
uma evasão se logra, Virgil é o primeiro a aceitar o falhanço e
ele mesmo tira os óculos e os pisa, em autopunição. Toda a
sequência do assalto preparado com máquina de filmar e quatro
cúmplices de má estirpe, é perfeitamente antológica − o realizador
é Fritz e deverá ter algo a ver com Lang −, bem assim como a fuga
dos seis condenados, ligados por uma corrente. Desconcertante e
profundamente absurdo. «O Inimigo Público» ficará como uma das
mais importantes estreias em comédia dos últimos anos. Através
dela renova-se um «género» um tanto ou quanto depauperado e que
Woody Allen reconduz a primeiríssimo plano, servindo-se para tanto
de uma
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paródia inspirada ao filme negro e à biografia de «gangsters» de
uma genuína tradição americana.
3. «Bananas»
«Bananas», se por um lado, confirma o talento de um cómico, por
outro define certos limites que o seu primeiro filme não deixava
antever. Tal como «O Inimigo Público», também «Bananas» é
arquitectado com base em pequenas sequências recheadas de «gags»
que, ligando-se umas às outras, através de um ténue fio de
intriga, formam a obra. A globalidade do filme resulta assim, não
tanto do desenrolar de uma intriga, como sobretudo de um clima de
humor que é necessário manter. Ora, «O Inimigo Público» mantinha
essa unidade de estilo, essa globalidade de clima. «Bananas» está
longe de possuir o mesmo fôlego. Cedendo aqui e ali, «Bananas» é
um filme demasiado construído ao nível de argumento, para
conseguir a cadência cómica de «Take the Money and Run». Como
assim? Obrigando a intriga a certas paragens, necessárias ao
argumento Woody Allen vê-se constrangido a prolongar determinadas
sequências por zonas que o humor não atinge. Como resultado
verifica-se, portanto, algo de extremamente curioso: «Bananas» é
um filme que se segue como maior interesse ao nível da intriga
(isto é: «que acontecerá agora»?) e com muito menos interesse
cómico. Menos ligado, no plano da «estória», «O Inimigo Público»
possuía, todavia uma grande unidade de estilo. Um ritmo sem pausas
era a característica da primeira obra assinada por Woody Allen;
uma cadência entrecortada de silêncios é a dominante de «Bananas».
Em Woody Allen a crítica é dispersa, ainda que repleta de alusões
intelectuais. Se as instituições americanas não são poupadas, a
verdade é que, por exemplo, os guerrilheiros da América do Sul
também não. Haverá quem diga que Woody Allen tem uma visão
desencantada e pessimista dos homens, da política, das
instituições. É verdade. Em «Bananas», o chefe dos guerrilheiros
depois de ascender ao governo, torna-se num ditador, parecendo que
daí Allen extrai uma lição: «Todo o poder corrompe». Mas
cuidado. A forma por que nos não são apresentados tanto o ditador
como o «Ieader» revolucionário, não é idêntica. O coronel de S.
Marcos é bem mais fustigado, impiedosamente zurzido. O chefe dos
guerrilheiros, mesmo no momento em que assume o comandante de S.
Marcos, é olhado de forma bem diversa. E será conveniente não
esquecer que são ainda os companheiros desse «Ieader» quem irá
continuar a luta. Um pessimismo radical, é certo, mas uma, ainda
que diminuta, distinção de valores. Woody Allen parece dizer-nos
que a justiça é impossível de atingir. É ele quem afirma: «Nunca
sonhei realizar um filme político. Sou apenas um americano médio
que lê os jornais e escreve sobre este mundo em que vivemos. Agora
se este mundo tem alguma coisa de ridículo, isto não é comigo.
Quero é divertir o público, fazê-lo esquecer as suas tensões, os
seus problemas diários.»
Woody Allen sabe que o seu cómico não se destina só a divertir.
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/ Vai muito mais longe. É perfeitamente corrosivo.
Vejam-se as sequências televisionadas (o assassinato de um
presidente em S. Marcos ou a noite de núpcias de Fielding Mellish);
veja-se a chegada das tropas americanas a S. Marcos «A CIA joga
pelo seguro: metade das tropas americanas do lado dos
revolucionários, a outra metade do lado dos governamentais»);
veja-se a sequência da operação... Há no cómico de Allen uma
densidade negra, uma gargalhada sarcástica, uma ironia que penetra
para além das aparências e vai até ao fundo das pessoas, das
instituições, dos credos.
Imaginoso, genial por vezes, Woody Allen continua a recolher as
receitas do seu cómico nas origens da comédia americana e aos seus
cultores recentes.
Que dizer de toda a cena em que Woody Allen experimenta um
dispositivo de ginástica para escritório, senão que se trata de
uma adaptação notável de uma outra cena Chaplin «Os Tempos
Modernos» − a máquina que alimenta os operários, enquanto estes
trabalham)? Que dizer das cenas de amor de Woody Allen, senão que
elas constituem uma admirável homenagem a Buster Keaton? Que dizer
da primeira cena de redução de Nancy, senão que Woody Allen viu
«Os Amores de uma Loura» e que gosta de Milos Forman? Que dizer
das relações entre Woody Allen e os objectos (puxadores de portas
que lhe ficam na mão, armas que se montam de forma estapafúrdia,
etc.,) senão que Allen se coloca do mesmo lado da trincheira de
Jerry Lewis?
4. «O Grande Conquistador»
Se bem que realizado por Herbert Ross, «O Grande Conquistador» é
um filme predominantemente de Woody Allen. Sua é a peça de teatro
donde é extraído o filme «Play it Again, Sa»), dele a adaptação,
dele ainda a construção da personagem principal, um crítico de
cinema que vive obcecado pela imagem tutelar de Humphrey Bogart,
símbolo da inequívoca virilidade do americano e de um certo pendor
romântico.
Logo no início do filme se coloca o tema central de «O Grande
Conquistador». Absorvido pelo cinema (as imagens finais de
«Casablanca», com Bogart, reflectem-se nos óculos de Woody Allen)
Allen transfere para si situações vistas e «vividas» no écrã.
Fascinado pela figura mítica de «Bogey» procurará assumir na sua
vida particular o «sonho americano». Do cinema para a vida vai,
todavia, um espaço lacunar, difícil de preencher. De «Bogey» a
Allen, o caminho da frustração. O que com «Bogey» resulta, em
Allen falha. As mulheres que caem aos pés de «Bogey» fogem dos
«encantos» de Allen. As facilidades do «charme» do mito assumem-se
como cruéis desilusões na vida real.
«O Grande Conquistador» situa-se assim num plano de íntima relação
dialéctica entre a realidade e a fantasia, entre a existência e o
sonho. Quando a mulher de Allen o abandona porque prefere a vida
ao «écran», porque sente necessidade da alegria e da virilidade
que o marido lhe não oferece, Allen imagina-a nos braços de um
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/ «anjo no Inferno», de cruz gamada nos braços.
Quando Allen tenta aproximar-se da nova «conquista» estabelece-se
um inquietante (e delicioso) diálogo entre este Bogart
ressuscitado para as funções de «mestre de cerimónias» de uma
declaração. Mas, Allen nunca conseguirá assimilar o mito à sua
personalidade. A frustração que o falhanço acarreta será sempre o
resultado atingido. Até que, finalmente, numa cena que revive o
final de «Casablanca», Allen consegue afastar o «modelo» e assumir
a sua verdadeira personalidade, Mas consegui-lo-á mesmo? Não será
este gesto de recusa mais uma homenagem ao mito inspirador?
De qualquer forma, «O Grande Conquistador» é uma comédia
profundamente inteligente, irónica, vergastando com desapiedado
humor o mito do «super-homem» americano, vulgarizado sobretudo
pelo cinema, Woody Allen confirma o seu invulgar talento de
comediante, organizando em seu redor um caos de «jongleur», Poucos
actores (e voltamos a relembrar aqui Jerry Lewis), conseguiram, em
tão curto espaço de tempo, desorganizar um «décor», o mesmo será
dizer organizar o caos, A realização de Herbert Ross, sem ser
brilhante (reservando até essa faceta para o protagonista),
procura dominar o intérprete nos seus possíveis excessos,
integrando-o numa linha de humor coerentemente desenvolvido, O que
demonstra igualmente o profissionalismo do actor que se integra
num trabalho de equipa, servindo um ritmo que não é o seu,
Voltaremos a vê-lo, se possível com uma maior contensão e
auto-disciplina, em «O Testa de Ferro», de Martin Ritt.
5. «O ABC do Amor»
Woody Allen volta a assumir a realização e interpretação
simultânea, sendo ele próprio quem escreve o argumento de «O ABC
do Amor» (Everything you Always Wanted to Know about Sexy but were
afraid to Ask). Adaptação satírica de um ensaio sexológico da
autoria do dr. David Reuben, «Tudo o que Você sempre Desejou Saber
sobre o Sexo, mas sempre teve Vergonha de Perguntar» (tradução
literal do titulo americano) organiza-se no estilo dos filmes em
episódios, constituído por sete pequenas histórias «capítulos», na
estrutura narrativa adoptada de Woody Allen), ilustrando
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/ conceitos enunciados numa legenda inicial, e todas
elas relacionadas com a obsessão da sexualidade na vida moderna,
ainda que nem todos os «sketches» se localizem na actualidade.
O filme documenta mais uma vez a imaginação tumultuosa do autor,
mas aqui algo desequilibrada de história para história. A primeira
anedota localiza-se na Idade Média, com uma reconstituição que
goza «Decameron» ou «Os Contos de Cantuária» e, que nos fala de
filtros de amor e bobos de corte. Mas a mediocridade domina, o que
irá acontecer igualmente num mal aproveitado episódio sobre um
concurso de televisão durante o qual vários inquiridos depõem
sobre as suas perversidades sexuais preferidas. A ideia poderia
dar um apontamento ao nível do melhor Woody Allen (relembre-se as
cenas de TV em «O Inimigo Público»), mas tudo se pode
ingloriamente. A sequência relâmpago do «travesti» não é
igualmente muito feliz, começando o filme a adquirir certa força
somente no episódio da mulher frígida que só consegue atingir o «climax»,
fazendo amor em locais públicos. O tom da narrativa relembra a
comédia italiana (o estilo Dino Risi) que Woody Allen assimila com
facilidade, sendo até de notar as semelhanças que existem entre
esta sua película e algumas de Dino Risi «Os Monstros, Os
Complexos», sobretudo «Vejo Tudo Nu...» ou «Sexo Louco»).
Os melhores episódios são, porém, os três restantes, todos eles
transbordantes é a história de um sábio louco (interpretado por
John Carradine, no papel do Dr. Bernardo...), um Frankenstein do
século XX que, após uma explosão no seu laboratório, vê sair para
a rua, em perfeita liberdade, um enorme mamilo humano que irá
provocar uma delirante perseguição. Quando os desastres são já
inúmeros (alguns transeuntes morrem afogados em leite, à passagem
da assustadora visão...), a polícia inventa novos processos de
captura, entre os quais um mastodôntico «soutien». Aprisionado o
mamilo desertor, assiste-se a um diálogo indescritível entre Woody
Allen e um polícia que espera a todo o momento prender o segundo
mamil, já que ele está habituado a vê-los sempre andarem aos
pares!) e estabelecer um infantário com o leite que deles sai.
Outro «sketch» brilhante é uma paródia à «Viagem Fantástica», de
Richard Fleischer, que descreve a viagem de um espermatozóide
tímido. Todo o mecanismo da excitação masculina é visto do
interior do organismo, assistindo-se aos receios e temores de um
espermatozóide pouco afeito às grandes emoções, receoso do mundo
«lá de fora», onde pairam as ameaças.
Mas o melhor pedaço de «O ABC do Amor» é uma história, por acaso
não interpretada por Woddy Allen, mas sim por Gene Wilder.
Trata-se de um psicanalista que cai apaixonado por uma ovelha,
paixão que irá arruinar-lhe a existência, e levá-lo à mais negra
decadência física e moral, sucedendo-se as bebedeiras com leite.
Mesmo tendo em conta o desequilíbrio evidente desta obra, e a
desilusão que constituem alguns dos seus episódios, a verdade é
que «O ABC do Amor» documenta novamente o talento de Woddy Allen,
que mantém as características que o indicam como um dos grandes
nomes da comédia de origem americana.
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6. «O Herói do Ano 2000»
Sátira aos filmes de ficção científica (o autómato de «2001», de
Stanley Kubrick, está sempre presente), «Sleeper» parte de uma
anedota simples: Miles Monroe (Woody Allen) prepara-se para fazer
uma operação cirúrgica num hospital de Greenwich Village, quando
acorda e se descobre no ano de 2173. Duzentos anos de
adormecimento fazem dos contemporâneos de Woody Allen relíquias
que se estudam com cuidados arqueológicos. A cena com Woody Allen
definindo personalidades actuais é inimitável de graça, de poder
corrosivo, de angústia. Mas, em 2173, se alguns problemas se
encontram resolvidos (entre eles o das empregadas domésticas,
substituídas por «robots» de casaca a que se pode pedir tudo),
outros permanecem no da utopia. Os governos insistem na ditadura
(o «chefe» continua a zelar pelos seus contemporâneos que, quando
não «pensam como deve ser», sofrem lavagens ao cérebro) e alguns «Ieaders»
(caso do «chefe») sobrevivem mortos, no segredo dos deuses. Terão
Sal azar e Franco servido de musas inspiradoras a Woody Allen e ao
seu «gag» do nariz do chefe?
No capítulo das relações amorosas, a tarefa parece estar
simplificada (com globos de prazer e máquinas de orgasmo), mas as
sobrevivências tradicionalistas ainda retemperaram o espírito de
outra forma.
Havendo ditadura, há resistência, e o «maqui» está presente.
Algures no planeta conspira-se contra o grande «chefe», que todas
as noites se dirige aos seus concidadãos, através do vídeo, para
lhes desejar umas agradáveis «boas noites».
Um ritmo veloz de sátira, uma imaginação consegue acompanhar esse
ritmo, ultrapassando-o por vezes, eis as melhores credenciais
desta obra de Woody Allen, que além de actor e realizador, é ainda
argumentista e autor da música. Se o seu argumento possui ideias
invulgares, se a realização é por vezes modelar na construção dos
«gags» , o trabalho interpretativo de Woody Allen coloca-o ao
nível dos seus mais genuínos predecessores. Na linha dos Irmãos
Marx, de Chaplin (de que volta a reter «gags», de «Tempos
Modernos» ou de «O Grande Ditador», por exemplo), de Harold Lloyd,
de Keaton ou de Jerry Lewis, Woody Allen empunha com igual vigor a
bandeira do burlesco de origem norte-americana, demonstrando por A
mais B que esta é uma tradição que tão cedo se não há-de perder em
terras do tio Sam, e sobrevive amalgamada com a própria vida
americana, o seu ritmo, a pedalada imposta pela competição.
7. «Nem Guerra, nem Paz»
Filme de «backgroud» ostensivamente «culto», Love and Death» é uma
obra que se articula com base nas citações e situações que refere.
Na banda sonora, Serge Prokofiev e o seu «Ivan, o Terrível», cuja
sombra se estende ainda por sobre alguns planos de W. Allen. Se a
estrutura de intriga de «Guerra e Paz», de Tolstoi, é um fio que
conduz a meada desta sátira, outros escritores russos não deixam
de estar obsessivamente presentes, como Dostoievski, cujas obras
são
/ 12 / enunciadas ao longo de um diálogo, durante o
qual Boris Gruchenko (W. A. de «Crime e Castigo a «Idiota»,
enumera, em encadeado os títulos mais importantes.
É, porém, no campo cinematográfico que as referências se
multiplicam, de Eisenstein a Chaplin, de Bergman a King Vidor.
Eisenstein surge por diversas ocasiões, bastando citar os célebres
leões que Woody Allen utiliza aqui com um significado simbólico
diverso (os leões surgem a ocupar o tempo físico de um acto de
amor que vai da sua preparação à síncope final, o que as figuras
de pedra reflectem pelo encadeado da sua montagem). Bergman é
lembrado a propósito de «O Sétimo Selo», onde o seu nome
inclusive, referido ou num dos planos finais que ressuscita os
dois rostos de mulher de «Persona». As referências a Chaplin são
igualmente de uma límpida transparência, com alguns planos onde o
acelerado da imagem recorda cenas de amor de Carlot e Edna
Purviance. Mas é Groucho Marx o cómico sempre presente, não tanto
pela citação, como sobretudo pelo estilo de representação, pelas
características do humor. De todos os cómicos contemporâneos,
Woody Allen é aquele que mais se aproxima do humor de Groucho
Marx. É o que utiliza melhor o diálogo nesse sentido, soltando
réplicas repentistas que liquidam o interlocutor pela
agressividade e a lógica. Nesse aspecto «Nem Guerra Nem Paz»
dir-se-ia que por vezes pede emprestadas tiradas a «Uma Noite na
Ópera» ou a «Os Grandes Aldrabões». Nomeadamente nos diálogos
entre Boris Gruchenko (a figura que W. Allen interpreta chama-se
Gruchenko por alguma razão!...) e as mulheres, a lógica implacável
do seu raciocínio sai directamente da cabeça de Groucho Marx.
Aliás, e curiosamente, Woody Allen evoluiu bastante nos seus
últimos filmes no que diz respeito às relações que estabelece com
as mulheres com que contracena. Assim, se nos filmes de início de
carreira a sua figura se aproximava muito da assexualidade algo
misógina de um Jerry Lewis (as mulheres são sempre colocadas à
distância, num misto de terror e admiração) «Love and Death»
significa de alguma forma uma viragem neste percurso que agora se
mostra mais desenvolto, por vezes mesmo «castigador» e de um
cinismo irreverente.
/ 13
/
«Nem Guerra, Nem Paz», no nihilismo da sua visão (onde os
valores «eternos» desaparecem e no lugar de Deus surge o vazio;
onde conceitos como «patriotismo», «heroísmo», «amor», «amizade»,
família», entre outros, são continuamente desmontados e oferecidos
na sua nudez total), assume-se como obra de um autor que
progressivamente vai ganhando voz própria no confronto com as
raízes mais profundas e revivificantes da comédia americana,
assimilando criticamente o melhor de um filão inesgotável
reconstituindo-o com a modernidade do seu olhar, perspectivando-o
em termos de contemporaneidade, Um grande cineasta que se prepara
para lá do grande actor cómico que já se conhecia, As etapas
seguintes são de consagração.
8. «O Testa de Ferro»
«O Testa de Ferro», de Martin Ritt, assinala um excelente trabalho
interpretativo de Woody Allen, mas é definitivamente um filme de
um outro autor, a que W. A. oferece o seu contributo e o prestígio
do seu nome. Uma época trágica na história dos EUA está na base
desta obra. Durante o fim da década de 40, princípios da de 50, em
plena «guerra fria», desencadeia-se uma perseguição sistemática e
sinistra ao mundo do espectáculo, empreendida pela tristemente
célebre Comissão das Actividades Anti-Americanas. Hollywood é
particularmente visada, sob a acusação de aí residir um poderoso
núcleo de «vermelhos» que era imperioso expulsar. Intimados a
comparecer perante a Comissão (onde o senador MacCarthy e Richard
Nixon desempenhariam papéis de relevo), numerosos técnicos,
argumentistas, realizadores e actores vão conhecendo sorte
diferente, consoante os ditames da consciência: desde a denúncia
declarada à confissão pública, do assumir da solidariedade mais
firme ao suicídio e à colisão frontal (ao que se supõe a réplica à
colisão frontal (ao que se supõe a réplica de Woody Allen a
finalizar o filme, dirigindo-se à Comissão, é atribuída ao
escritor Dashill Hammett), de tudo houve, nesses dias dramáticos
que lançaram na prisão e no desemprego dezenas, centenas de
artistas, Todos os que não aceitaram retratar-se e colaborar com a
Comissão foram inscritos numa «lista negra» que os impossibilitava
de trabalhar. Em cinema, na televisão, em teatro, no «music hall»
, onde quer que se estendesse a influência da Comissão.
O filme de Martin Ritt evoca esses tempos de coragem e desespero,
contando-nos um episódio entre vários possíveis, que dá todavia o
tom ao ambiente vivido: para poderem sobreviver, alguns escritores
passaram a assinar os seus trabalhos com nomes de amigos (os
«testa de ferro»), Woody Allen interpreta o papel de um deles,
enquanto Zero Mostel, não resistindo à afronta por que o obrigam a
passar, se lança de uma janela sobre a morte.
Afastando toda a grandiloquência e demagogia fácil, Martin Ritt
escolhe o dia-a-dia e a força da sua persuasão, neste filme que
não será muito significativo no contexto da obra de W, A., mas não
deixa de ser importante como referência de uma tomada de posição.
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9. «Annie Hall»
É o lado aparentemente confessional (mas suficientemente equívoco,
nos limites entre o «confessado» e o «imaginado», para se furtar a
qualquer interpretação mais abusiva) de Annie Hall é algo que se
vem repercutindo de filme para filme, desde O Inimigo Público. As
alusões à infância, aos pais, à vida em família, à desadaptação,
aos traumas e às obsessões (a morte e o sexo, em grande plano),
tudo isso se identifica com um discurso que se vem reproduzindo
invariavelmente desde o início da carreira, ainda que obedecendo a
uma certa maturação progressiva.
«Annie Hall» é a história de um casamento que se desagrega e cujo
passado se interroga. A impossibilidade da relação, para lá do
amor que continuamente se confessa «Annie Hall» é, por detrás do
filme que se representa, uma declaração de amor de Woody Allen a
sua ex-mulher, Diane Keaton). Sintoma de uma esquizofrenia
domesticada e latente que emerge de «uma maneira americana de
viver», as personagens interpretadas por Woody Allen e Diane
Keaton oferecem-nos o retrato da sua instabilidade, do nervosismo
galopante que tudo invade e corrói, e dos subterfúgios inventados
para desviar a atenção do essencial, da aspirina à droga, da
psicanálise à televisão. Com um olhar de grande agressividade
crítica na solidão dos seus gestos e no desespero do seu olhar,
Woody Allen investe contra a mentira da vida e a hipocrisia do
espectáculo, tendo por pano de fundo o «Face to Face», de Bergman
e «Chantons sous l'Occupation», de Ophuls. De Bergman, o confronto
do casal que analisa as ruínas; de Ophuls o drama do judeu que
Allen não renega e constantemente relembra.
Viagem pelos grandes mitos da sociedade e da civilização
norte-americanas «Annie Hall» é um filme de um humor cerebral,
interiorizado, discreto, que explode por vezes, como nas
sequências consagradas a Hollywood, Beverly Hill, Los Angeles, o
cinema das «majors companies» e a televisão (esta última tratada
com a raiva que provoca o vómito e o estertor).
Nesta sua última obra, Woody Allen não será tão freneticamente
cómico como nalgumas outras anteriores. Mas a qualidade do olhar
amadurece com a experiência, enquanto o estilo se torna mais
fluente e a modernidade da narrativa brota sem artifícios nem
rebuscamentos. «Annie Hall» é um filme que se sente rodado na
primeira pessoa do singular. Um autor que se confessa, mesmo
quando mente ou julga mentir, quando inventa ou julga inventar. É
Woody Allen quem nos surge sempre, de olhos nos olhos, desafiando
o espectador. Coloquial, como quando «saca» Marshall McLuhan de
detrás de um cartaz para contrapor a essência da sua teoria às
«explicações» levianas de um emproado «prof.».
Se a obra de Woody Allen nos aparece até aqui particularmente rica
e promissora, a verdade é que muito se pode continuar a esperar do
talento e do universo caótico deste humorista-moralista que,
fotograma a fotograma, nos dá o seu retrato da vida e da América.
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Acompanhado de cartas de amor voluptuoso e arrebatado. Para Diane
Keaton, mulher e actriz da sua sofrida memória. E como é belo o
cinema que se escreve com amor, de Sternberg a Godard!
10. «Intimidade»
O filme mais bergmaniano de Woody Allen, o primeiro que ele
escreve e dirige, mas onde não aparece como actor. Temos então que
este título procura ser algo de diferente na carreira deste
cineasta que, sendo um dos maiores autores do cinema
contemporâneo, surgiu no cinema como um cómico, designação de que
progressivamente se foi afastando para se assumir como o autor
completo das suas obras. O seu cinema, porém, aprofunda com humor,
mas por vezes com dramatismo e quase desespero, a condição humana,
numa via paralela à de Bergman, ainda que numa tonalidade que nos
repugna chamar mais ligeira, mas que é sobretudo mais aberta ao
humor e, ultimamente, mais optimista.
Interiors ocupa-se de uma família: um casa! com três
filhas, duas das quais já casadas. Arthur e Eve separam-se, no
entanto, apesar da longa vida em comum e da avançada idade que
ambos contam já. O divórcio provoca a amargura, a incompreensão, o
desencanto das filhas. Arthur irá rapidamente casar com Pearl, mas
Eve, fechada e ressentida, não aceita a ruptura e provoca o
desenlace trágico. Num cenário algo tchecoviano, num clima de
angústia que relembra Bergman, Woody Allen cria uma obra densa,
rica, complexa, aqui e ali irresistivelmente irónica, mas sempre
austera, profunda e dilacerante no retrato psicológico que
oferece.
11. Manhattan
Manhattan é a casa de Woody Allen, a sua «terra natal», o local
onde se refugia quando todos os outros locais do mundo lhe surgem
insuportáveis. Manhattan, a "Grande Maçã", é assim o seu local de
eleição, as ruas, as casas, as pessoas, os bares que ele conhece
como as suas próprias mãos, que ele ama, que habita. Manhattlan
está presente em quase todos os seus filmes, mas é homenageada, de
forma muito directa, em Manhattan, filme de 1979, rodado a preto e
branco com a magia das coisas que se amam. Mas Manhattan é mais do
que isso. E também uma viagem por outras paixões, as mulheres da
sua vida, por exemplo, mas o cinema e os cineastas da sua
particular estima, a música do seu fascínio, o jazz e Gershwin...
Um filme de amor, portanto, por onde se dispersam ainda algumas
ferroadas venenosas que se dirigem a certos aspectos mais
antipáticos da sociedade nova-Iorquina.
Woody Allen, judeu, é Isaac Davis, argumentista de comédias de
televisão, que tem uma ligação com Tracy, estudante de arte
dramática. A rapariga conta apenas dezassete anos, o que confere a
Isaac uma grande insegurança. Confessa-se então a Vale, o seu
melhor amigo, que atravessa igualmente uma fase difícil, pois a
mulher abandonou-o, levando consigo o filho de ambos. Vale iniciou
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/ uma relação, com Mary Wilke, por quem Isaac nutre
grande amizade e afeição.
Com esta teia de sentimentos cruzados, Woody Allen oferece-nos o
retrato de um certo retrato social, suas virtudes e vícios
maiores. Mas à grandeza de Manhattan, de uma perfeição formal
admirável, não é alheia a fabulosa fotografia de Gordon Willis e
ainda a notável composição de um elenco feminino, dirigido com mão
de mestre, onde sobressaem Diíane Keaton, Mariel Hemingway, Meryl
Streep (num papel de início de carreira) e Anne Byrne.
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12. «Recordações»
Que «Stardust Memories» é um filme contra o
espectador parece-nos evidente. Mas há muitas formas de se estar
contra o espectador e esta revelada por Woody Allen não nos parece
a mais interessante, sequer legitima. Tentaremos explicar porquê.
De que fala «Recordações»? De um cineasta, Sandy
Bates (interpretado por W. A.), que começou a sua carreira como
autor de comédias, depois enveredou por um cinema «mais sério», e
é unanimemente considerado «um génio por toda a gente, que o
persegue por todo o lado com as questões mais estúpidas, as
maiores impertinências, quebrando toda a sua privacidade. Enquanto
isto, Sandy Bates roda o seu oitavo filme (os sete primeiros são
estudados num «seminário» frequentado por uma multidão de
monstruosas personagens que se albergam no Stardust Hotel, numa
estância de veraneio). Mas, apesar do êxito do cineasta, os
produtores querem impor-lhe cortes e substituições do seu novo
trabalho. Acossado por todos, inquieto e instável, Sandy Bates
chama em seu socorro uma, duas, três mulheres (Charlotte Rampling,
Marie Christine Barrault, Jessica Harper), a quem manuseia com um
secreto à-vontade e uma total ausência de escrúpulos.
Deste enunciado (que não procura resumir o filme, mas apenas
oferecer um ponto de partida para uma meditação rápida) que se
poderá concluir? Primeiramente, que ele não foge muito da linha
dos últimos filmes do autor. Depois de uma primeira fase da sua
carreira, abertamente cómica, na tradição do burlesco americano (Groucho
Marx, Buster Keaton, Stan Laurel, Chaplin, etc.), Woody Allen,
fervoroso admirador de Ingmar Bergman e Frederico Fellini
(representantes máximos do cinema europeu solidamente credenciado
no mundo da cultura) deixa-se tentar pelo estilo dos mestres («Annie
Hall»; «Intimidade» ou «Manhattan» são obras obviamente
influenciadas, sobretudo por Bergman). «Recordações» vai, no
entanto, mais longe, perdendo em originalidade, em
«americanidade», a troco de uma mais vincada influência da dupla
Bergman-Fellini. O Bergman de «Morangos Silvestres», o Fellini de
«8 1/2», estão presentes em muitas das sequências, tornando-se
referências obsidiantes. O que é tanto mais incómodo para o
espectador, quanto eles parecem surgir para legitimar a proposta
«cultural», «séria» e «grave» de Woody Allen. Senão, não se
compreenderia a forma como renega indirectamente os seus
anteriores filmes cómicos, pondo diversas personagens,
particularmente grotescas, a perseguir o actor-autor com frases
como «Os seus filmes cómicos é que eram bons!» A sensação é de que
Woody Allen se sente algo inferiorizado com essas constantes
referências à sua obra passada, agora que faz filmes arraçados de
Bergman e Fellini. Mais uma vez a cultura americana se deixa
colonizar infantilmente pela velha Europa.
Por outro lado, a visão que Woody Allen dá do mundo que o rodeia é
de um negativismo total. Sandy Bates, o geniozinho incompreendido
e perseguido, a quem os odiosos capitalistas pretendem desvirtuar
os filmes (segundos as próprias entrevistas de
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/ W. A., este não tem os mais pequenos problemas com
a United Artists que lhe produz os filmes), encontra-se rodeado
por uma humanidade monstruosa que o submerge na sua mediocridade e
estupidez.
Sandy Bates vive bem, tem um apartamento luxuoso, um Rolls Royce,
tudo o que quer (tudo idêntico a W. A.), mas sente-se
profundamente mal, por não encontrar interlocutores à altura. É
esta visão, de um narcisismo monstruoso, que nos revela um autor
em profunda crise, que é inquietante, vinda de Woody Allen. O
desprezo que estas «Recordações» revelam da parte de um cineasta
em relação ao seu público é algo de patológico. Sobretudo quando a
esse desprezo corresponde uma acentuada segurança em si próprio:
«Recordações» é, entre os últimos de Woody Allen, aquele em que o
protagonista surge mais seguro de si próprio, descarregando para
os outros todos os aspectos críticos.
Finalmente «Stardust Memoríes» é um filme que se coloca
subtilmente no plano da chantagem com o seu futuro espectador: ou
aceitas o filme que vês como genial, ou és um atrasado como todos
esses «freaks» que aparecem ao longo da obra.
O certo é que o próprio autor sente o impasse: Foi filme mal
entendido. Mas, uma vez mais pode ter sido um problema meu, o não
ter tido a habilidade de o tornar claramente entendível.
(...) Admito que uma quantidade de gente que viu o filme saiu a
pensar: este é um filme em que o Woody Allen odeia os seus fans,
estúpidos, pegajosos e grosseiros. Ora de facto isso não é
verdade.
Não é assim que eu sinto. Nem tenho essa quantidade de fans, nem
eles são pegajosos. Eu queria fazer um filme sobre um personagem
totalmente fictício- Eu explico: um tipo que tinha toda as
armadilhas exteriores do sucesso − um apartamento, uma limousine,
um «chauffeur», fama, um séquito, tudo isso. E, no entanto, estava
à beira da depressão. Ele estava completamente doente. Nenhuma
destas coisas aconteceu comigo por acaso, mas o que se passou foi
que as pessoas pensaram que o tipo era eu.
(...) Muita gente que viu o filme pensou que este Sandy Bates era
o Woody Allen e que detestava toda a gente. E quem era este tipo
para possuir um apartamento, uma «Iimousine» e uma atitude
arrogante? Claro que eu não estava a ter nenhuma atitude
arrogante.
Pelo contrário, a minha atitude foi a de tomar o público
seriamente. Penso que o público é tão inteligente quanto eu. Ou
ainda mais.
13. «Comédia Erótica de Uma
Noite de Verão»
O certo é que A Midsummer Night's Sex
Comedy, o seu filme seguinte, se afasta do ambiente desse
último título e retoma o melhor de Woody Allen, o seu gosto pelos
clássicos, a sua admiração por Bergman, é certo, mas também por
uma certa tradição literária russa, tal como já havia acontecido
em Nem Guerra, Nem Paz.
Há, em Midsummer Night's Sex Comedy,
uma ambiência tchekoviana que banha toda a obra e, apesar de se
manter um certo pessimismo na análise das relações humanas, a
verdade é que o
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espaço se tornou mais habitável num tom de «vaudeville» que
relembra as comédias de Feydeau, nomeadamente «Hotel Paraíso».
A Midsummer Night's Sex Comedy
fala-nos três casais que se encontram numa casa de campo, seis
personagens carregadas de frustrações e traumas que, em contacto
com a natureza bucólica que os rodeia, em contacto consigo mesmo,
se revelam tal qual são, nalguns casos deixando cair a máscara que
ostentavam (como acontece com o velho professor catedrático,
filósofo do «pragmatismo conceptual», que tem sempre uma última
palavra a dizer sobre todas as matérias e, que acaba sucumbindo a
uma «escapadela» mais violenta), noutros «descobrindo-se»
(vejam-se os restantes exemplos de figuras encobertas pelo
preconceito, pelo trauma, pela simples ideia que, de si mesmo,
querem fazer, e que acabam por descobrir face da sua
personalidade). Neste jogo de desejos inconfessados, que
lentamente se confessam, de insatisfação latente, que
progressivamente se afirma (o caso de Andrew − Woody Allen − é
lapidar: casado com um mulher de quem alguns equívocos o
afastaram, descobre um velho amor de juventude, que julga uma
«oportunidade perdida», mas, depois de uma noite de amor, verifica
que essa história antiga já nada lhe diz), o personagem incarnado
por Woody Allen assume-se como um despoletador de consciências
adormecidas, funcionando como o Puck da comédia de Shakespeare,
verdadeiro condutor do jogo, ainda que de uma forma inconsciente.
Com A Midsummer Night's Sex Comedy
Woody Allen regressa ao melhor do seu humor, desta feita adaptando
ao seu estilo e à sua visão do mundo, uma célebre peça de William
Shakespeare, O Sonho de Uma Noite de Verão, que já servira de base
a Ingmar Bergman para a sua comédia Sorrisos de Uma Noite de
Verão. Aliás, falar em adaptar Shakespeare não será inteiramente
verdade, dado que nos parece muito mais óbvia adaptação de
Bergman, portanto um contacto com o clássico empreendido através
do cineasta sueco que tanto tem condicionado ultimamente a
carreira de Woody Allen. Realmente, e sobretudo a partir de Annie
Hall, mais vincadamente em Manhattan e
Interiors, de forma paroxista em Recordações, Ingmar
Bergman não tem deixado de estar no pensamento de Woody Allen que
refere o mestre directamente, ou de forma velada, através de
directas citações ou sentidas homenagens.
Com excelentes imagens de Gordon Willis, num
colorido de tons dourados, que empresta às paisagens e aos
interiores uma auréola de quadro idealizado por um pintor de
tonalidades quentes, mas doces, esta Comédia Erótica de Uma
Noite de Verão revela-nos, novamente, um Woody Allen bom
observador da «comédia humana» excelente retratista de mulheres
(Mia Farrow, Jane Alexander e July Hagerty, são excepcionalmente
dirigidas, com subtileza e pudor), órfão solitário num universo de
amores desencontrados, onde a impossibilidade de relação é quase
total, mas onde continuamente se procura uma saída, ainda que por
formas desajeitadas, prevalecendo, no entanto, uma enorme candura
por detrás da fina ironia do seu humor.
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14. «Zelig»
Zelig é o décimo segundo filme de Woody Allen.
Trata-se de um projecto que lhe levou vários anos a pensar e a
concretizar, dado que já trabalhava nesta obra quando rodou uma
Comédia Sexual Numa Noite de Verão. Mas a própria natureza de
Zelig obrigava a este tempo de preparação e a uma elaboração
particularmente demorada. O filme, um projecto único e
extremamente difícil de conceber, assemelha-se a uma paciência
chinesa, obra de miniaturista que se entretém na composição de um
puzzle de que vai forjando a umas às outras se completarem e, no
final, permitir uma versão global de uma figura e de uma época.
Figura fictícia e metafórica, época bem real e documentada − os
anos 20 e 30 − nos Estados Unidos da América.
Zelig é, pois, uma figura de ficção que Woody
Allen nos faz passar por uma personagem com existência real.
Começa logo por nos dizer que F. Scott Fitzgerald a ela se refere
nos seus romances, e a partir dai a obra vai acompanhando o
itinerário deste homem que apaixonou a América, tornando-se num
dos seus «enigmas» científicos. Porque Leonard Zelig tinha
características estranhas: adquiria o aspecto físico e mental
daqueles com que se encontrava
no momento. No meio de gordos era gordo, em conversa com chineses
era chinês, cantando com negros era negro, em foco o lado onde
entrasse logo adoptava as características dominantes. Nunca,
porém, mudara de sexo, mas todos lhe começaram a chamar o homem
«camaleão», em função desta sua inclinação para se adaptar ao
ambiente e nele passar despercebido.
A medicina interessa-se por Zelig, e uma médica
psiquiatra, Eudora Fletcher, procura uma explicação psicológica
para este comportamento. Um dia, descobre que Zelig faz tudo isto
para se tornar simpático, para que os outros gostem dele. Mas um
par de oportunistas transforma Zelig em fenómeno de feira a
explorar economicamente. Até que um amuo fatídico volta a colocar
Zelig, nos braços da sua médica. Que o cura. Zelig é, então, o
herói querido da América, a «terra das oportunidades». Mais tarde,
voltará a sê-lo, quando consegue uma proeza de monta, atravessando
o Atlântico num avião, sem brevet, e pilotando-o de cabeça para
baixo, o que o leva a confessar que «nada é impossível a um
verdadeiro psicopata».
Mas com a mesma velocidade com que a América
fez de Zelig um herói, destrói-o. Várias mulheres surgem afirmando
que o «homem camaleão» se casara com elas em alturas diferentes,
sob várias personalidades. É o escândalo, e Zelig regride.
Sente-se ameaçado e volta a esconder-se debaixo da aparência de
outros. A parábola parece evidente. Há qualquer coisa de kafkiano
em todo este processo. Woody Allen sabe-o e aproveita
inteligentemente esta estrutura metafórica para sobre ela erguer
um filme fascinante.
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Fascinante ainda pelo trabalho de montagem, de manipulação de
elementos de diversas origens. Apresentando-se quase como uma
reportagem, um inquérito sobre um homem (um pouco à maneira de
O Mundo a Seus Pés, de Orson Welles), Zelig mistura,
com uma habilidade prodigiosa, documentos da época com outros
forjados, recria um filme dos anos 50 (a que deu o título
The Changing Man) , que o «homem camaleão» surgira,
evoca-o através de canções e de todo o folclore americano
destinado aos seus ídolos, arquiva testemunhos de várias
personalidades abordando o caso de Zelig (e entre essas
personalidades estão, em carne e osso, Saul Bellow, Susan Sontag
ou Bruno Bettelheim, que aparecem como eles próprios),
transformando impressionante sobre a manipulação da imagem e do
som. Aliás, em muitos aspectos, recorda a estrutura de
Cliente Morto Não Paga a Conta, com uma substancial
diferença: enquanto no filme de Gari Reiner os excertos de filmes
antigos comandavam o andamento da obra, neste é a obra que
assimila os documentos que procura e os integra na sua própria
progressão. A maestria é total.
Brilhante será a designação apropriada para
este exercício de talento e de manipulação. Brilhantismo que
alguns acham mesmo excessivo, e que outros acusam de um desmedido
narcisismo (Woody Allen oferece-se como o centro do mundo). Num
caso como noutro, Zelig é ainda uma obra extremamente
significativa quanto à personalidade do seu autor. E até por isso
mesmo importante.
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15. «O Agente da
Broadway»
Em 1984, Woody Allen é, incontestavelmente, um
dos grandes cineastas contemporâneos. Não deixa de ser sintomático
ver títulos seus, anualmente, em quase todas as listas dos
melhores do ano, escolhidos por críticos da América ou da Europa,
o que dá bem ideia do reconhecimento público do seu trabalho. Mas
Woody Allen é também um homem de uma inteligência fria e de um
humor mordaz que por vezes coloca as suas obras no limite do
suportável, quando não ultrapassando-o mesmo, como no caso de
Recordações (Stardust Memories), onde o
racionalismo do autor suplantou por completo a emoção,
envolvendo-a numa teia de sentimentos contraditórios que
transformaram o título numa obra desagradável, agreste, impopular.
Todo o cinema de Woody Allen oscila entre a razão e a emoção, com
momentos em que pende mais para um lado ou para o outro. Em
Stardust Memories a arrogância da sua postura intelectual
perante o seu próprio público ter-Ihe-á trazido problemas. Com a
Broadway Danny Rose atinge um momento de
consagração, deixando o coração falar mais alto do que a frieza
crítica do seu raciocínio.
Broadway Danny Rose é, talvez os
melhores Woody Allen de sempre. Atrás de si fica a lição de
Chaplin, uma emocionante mescla de riso e de lágrimas, de humor e
amor pelo próximo. É evidente que Woody Allen não denuncia a uma
postura crítica e agressiva em relação a certos aspectos da
realidade que enfoca. Mas existe em olhar de grande ternura para
com os seus semelhantes, o que transforma o filme num momento
único ma história da moderna comédia americana.
Broadway Danny Rose vem na
continuação de Zelig, com que se mantém algumas afinidades de tom,
mesmo na tentativa de esboço de um período. O mesmo preto e branco
obsessivo, restituindo as cores dos filmes dessas épocas, o mesmo
esforço de integração de personagens ficcionados nesse clima
histórico. Broadway Danny Rose é o retrato de um
«agente» da Broadway, um pequeno «agente» de artistas sem renome e
sem cotação, que ele vai procurando impor um pouco por todo o lado, lutando por
eles com o ardor e a abnegação de um verdadeiro pai, quer se trate
de um velho cantor de charme, às voltas com a mulher e a amante e
as bebedeiras que o medo engendra, quer se trate de um ventríloquo
ou de um xilofonista sem futuro. Por todos luta sem desânimo.
Quando, porém, os consegue impor e transformá-los em artistas de
êxito garantido, eles são os primeiros a abandoná-lo, trocando-o
por outro empresário mais de acordo com a sua condição actual de
vencedores. Danny Rose nunca passará de um poeta diabo, mas, na
noite de Natal, no seu velho quarto, encontrará a força suficiente
para reunir os amigos que são todos os seus clientes que esperam
uma oportunidade e confiam na sua palavra.
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A juntar a esta história, uma outra que parte de um quiproquo
e conduz o agente até às mãos da Mafia. Tomado por outro, Broadway
Danny Rose será perseguido e quase aniquilado, será traído pela
mulher que Lou Canova lhe confiou, mas, apesar de tudo, não
desanima, regressa sempre, disposto a transformar os outros no
sucesso que lhe está vedado a ele próprio. É esta imagem de obstinada
decisão e de generosa entrega a um ofício e ao espectáculo que faz
de Danny Rose motivo de conversa entre velhos oficiais do mesmo
ofício que o convocam através de pequenas histórias e chistes, que
o filme de Woody Allen ilustrará depois.
Admiravelmente estruturado, interpretado com
meticuloso cuidado por Woody Allen, Mia Farrow e Nick Apoio Forte,
para lá de contar com a presença de muitos outros artistas do
musichall americano, Broadway Danny Rose tem ainda
uma contribuição decisiva da fotografia de Gordon Willis, o mesmo
que já assinara Zelig com iguais resultados. Mas o mais
surpreendente, e o mais notável, neste título de Woody Allen é a
emoção que dele se liberta, conduzida com a mão de mestre por um
homem que parece, finalmente, decidido a pactuar com os
sentimentos e a aceitar deixar-se envolver por eles. Depois de
Chaplin e Buster Keaton, eis Woody Allen no caminho.
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16. «A Rosa Púrpura
do Cairo»
Esta «Rosa Púrpura do Cairo» é bem o tipo de
filme que gostaríamos de dizer muito pouco; apenas o essencial:
veja, não perca, trata-se de uma obra genial. E tudo isto porque,
por muito pouco que se diga, haverá sempre algo que pode
«estragar» o impacte do leitor com a obra, abalando a surpresa que
deverá ser total.
Woody Allen volta a realizar um filme onde não
surge como actor, o que já havia sucedido em Intimidade, mas nessa
altura enveredando por uma linha muito bergmaniana. Agora, depois
da sua ligação com Mia Farrow, Woody Allen parece ter adquirido
uma outra serenidade, uma maior confiança em si e nos seus
semelhantes, o seu cinema deixou de ser tão cínico e pessimista,
passou a desenvolver-se noutros terrenos, numa linha de inspiração
mais chaplinesca, mais humana. mais fraterna, onde valores e
sentimentos como a ternura, o amor, a amizade, a simpatia tudo
parecem envolver e ultrapassar os seus contrários.
Depois, cinéfilo confesso, Woody Allen faz em
Rosa Púrpura do Cairo a mais bela e a mais sincera
das homenagens ao cinema: sem cinema a vida seria quase impossível
de viver, e mesmo quando se descobre que o cinema nada mais é do
que fantasia imaginada numa tela branca, mesmo nessa altura ele
continua a ser necessário. É evidente que Woody Allen fala de
cinema, mas poderia falar de Arte ou de Espectáculo. A nós, porém,
agrada-nos que ali esteja o cinema, «fábrica de sonhos», a ser
saudado enquanto tal. Porque os sonhos podem ser por vezes
negativos, mas são imprescindíveis. E Rosa Púrpura do Cairo
demonstra-o.
Cecília, uma empregada de restaurante, casada
com Monk, um desempregado que sobrevive à custa (tudo isto durante
a grande depressão económica nos EUA), tem como refúgio único uma
sala de cinema, pnde diariamente devora com avidez as histórias
vividas por outros no écran. Um dia, porém, uma das personagens
sai do «écran» e vem instalar-se junto dela, seduzida pela
fidelidade da espectadora. A partir daqui tudo é possível, neste
jogo fascinante
entre a realidade e a ficção, entre o vivido e o sonhado. A ideia
básica desta obra de Woody Allen é realmente notável, mas não é
menos notável a forma como ela é desenvolvida até final, num
inteligente jogo de espelhos, com a Alice colocada do lado de cá,
sendo visitada por uma figura desse país das maravilhas que é o
cinema.
Tom Baker, a personagem de explorador destemido
que sai do filme e se instala na vida real, confronta-se
igualmente com Gil Shepherd, o actor que lhe deu vida (e que se
chama, na realidade, Herman Bardeberian!). A fuga de Tom Baker do
universo de imagens animadas provoca duas tempestades: uma no
próprio filme, onde se instala a confusão, com as demais
personagens procurando afirmar-se como protagonistas; outra, na
realidade, com os responsáveis pelo filme − produtores,
realizador, actor − a tentarem evitar o escândalo que tende a
estender-se a toda a América, pronunciando o pânico generalizado.
Porque o universo do cinema não pode saltar para a vida. Porque no
cinema tudo é perfeito, mas não é real.
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Esta oposição entre o mundo utópico do sonho e a realidade do
dia-a-dia, sobretudo num pais e num período com grandes
dificuldades económicas e sociais, é muito bem dado pela câmara de
Woody Allen que escolhe para o preto e branco do «filme dentro do
filme» cenários exóticos − Cairo, Marrocos, Tânger − referências
exaltantes, personagens imaculadas e situações de excepção, e para
a cor do seu filme, cenários de angustiante desespero e desalento.
Por isso, quando desce à realidade, Tom Baker não se adapta
(Cecília diz-lhe mesmo: «Você não se aguenta fora do écran»). Ele
leva Cecília a dançar, ela leva-o a comer pipocas. Ele dá-lhe
champanhe a beber e paga uma refeição com dinheiro falso, ela
mostra-lhe a sopa dos pobres, a prostituição, a miséria de certos
bairros populares. Quando Monk, o marido de Cecília, o desafia
para um combate de boxe, Tom Baker bate lealmente, mas o outro
arruma-o com um golpe baixo. Ele salta para um carro e julga pô-lo
em andamento sem mais aquelas, tal como no cinema, ela mostra-lhe
uma mulher grávida e ele explica que, no cinema, "o amor se faz em
fusão» (isto é: quando se aproxima a altura do acto amoroso, o
realizador escolhe "a fusão em negro» q6e alude a situação e a
deixa subentendida).
Mas «A Rosa Púrpura do Cairo» não
é só importante por este jogo de espelhos entre a realidade e o
mito, níveis que se não podem trocar ou inverter (quando Cecília
visita» o filme dentro do filme» provoca outras tantas situações
conflituosas, pois altera a ordem estabelecida: "esta mesa é
sempre para 6, não pode ser para 7», diz-lhe o empregado do
restaurante). Ele é igualmente uma muito interessante retrato de
mulher e da sua condição, com um marido que a maltrata, a expolia,
vegetando em casa, com jogo, mulheres e bebida, enquanto Cecília
procura formas de subsistência. A sua imagem pelo cinema é assim
um percurso iniciático que a levará a descobrir a si própria e a
melhor entender o mundo que a rodeia (e a mentira desejada que é o
cinema). Por isso, quando no final regressa à sala escura para ver
Fred Astaire num momento de suprema magia sabe o que a espera - o
cinema é um sonho, uma mentira, mas algo em que, apesar de tudo, é
preciso acreditar para se suportar a existência. É através da arte
que se estabelece o equilíbrio com a realidade. «A escolha é o
melhor atributo do homem». Cecília escolheu.
Escolheu aceitar a vida com todos os seus
problemas, porque ao fundo da rua, existe uma sala escura onde a
magia é possível. Por isso ela a procura, mesmo quando sabe que
está fechada e não há sessão. Por isso ela quer ver o mesmo filme
que já viu, aquele em que ela sabe já o que a espera.
Obra admirável pela complexidade do que põe em
jogo, «Rosa Púrpura do Cairo» é um dos mais belos
filmes de Woody Allen e, simultaneamente, um dos mais fulgurantes
retratos do universo do cinema. Mas Mia Farrow é aqui uma
colaboradora indispensável, um suporte admirável que serve com uma
sensibilidade e talento invulgares os propósitos do autor.
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Filmografia Woody
Allen
Nesta filmografia estão incluídos os filmes
realizados por Woody Allen, mas também todos os outros onde
aparece somente como argumentista ou intérprete. Todas as funções
estão devidamente assinaladas.
1965 − WHAT'S NEW PUSSICAT? (Que Há de Novo,
Gatinha?), de Clive
Dinner W. A.: Argumentista e intérprete.
1966 − WHAT'S UP; TIGER LILY?; de Senkichi Taniguchi. W. A.: Supervisor
de realização, co-argumentista e
intérprete.
1967 − CASINO ROYALE (Casino Royale), de John Huston, Ken Hughes,
Ken Hughes, Vai Guest, Robert Parrish e
Joe McGrath.
W. A.: Co-argumentista e intérprete.
1969 − DON'T DRINK THE WATER (Não Metas Água), de Howard Morris.
W.
A.: Co-argumentista, adaptação de uma
peça teatral de
Woody Allen;
- TAKE THE MONEY AND RUN (O Inimigo Público Nº 1).
W. A.:
Realizador, co-Argumentista e intérprete.
1971 − BANANAS (Bananas).
W. A.: Realizador, co-argumentista e intérprete.
1972 − PLAY IT
AGAIN, SAM (O Grande Conquistador), de Herbert Ross.
W: A::
Argumentista, segundo peça teatral
de sua autoria, e intérprete.
- EVERYTHING YOU ALWAYS WANTED TO KNOW ABOUT SEX
BUT WERE AFRAID
TO ASK (O ABC do
Amor).
W: A.: Realizador, argumentista e intérprete.
1973 − SLEEPER (O Herói do Ano 2.000). W. A.: Realizador,
co-argumentista
e intérprete.
1975 − LOVE AND DEATH (Nem Guerra, Nem Paz). W. A.: Realizador,
argumentista e intérprete.
1976 − THE FRONT (O Testa de Ferro), de Martin Rit!. W. A.:
Intérprete.
/ 27
/
1977 − ANNIE HALL (Annie Hall). W. A.: Realizador, co-argumentista
e intérprete.
1978 − INTERIORS (Intimidade). W. A.: Realizador e argumentista.
1979 − MANHATTAN (Manhattan). W. A: Realizador, co-argumentista
e
intérprete.
1980 − STARDUST MEMORIES (Recordações).
W. A.: Realizador,
argumentista e intérprete.
1982 − A MIDSUMMER NIGHT'S SEX COMEDY (Comédia Erótica de
Uma Noite
de Verão). W. A.: Realizador,
argumentista e intérprete.
1983 − ZELlG (Zelig). W. A.: Realizador, argumentista e intérprete.
1984 − BROADWAY DANNY ROSE (O Agente da Broadway).
W. A.:
Realizador, argumentista e intérprete.
1985 − THE PURPLE ROSE OF CAIRO (A Rosa Púrpura do Cairo).
W. A.:
Realizador e argumentista.
1986 − HANNAH AND HER SISTERS (Ana e as suas Irmãs).
W. A.:
Realizador, argumentista e intérprete.
1987 − RADIO DAYS(Os Dias da Rádio). W. A.: Realizador,
argumentista
e intérprete.
- SEPTEMBER (Setembro). W. A.: Realizador e argumentista.
1988 − ANOTHER WOMAN (Uma Outra Mulher). W. A.: Realizador
e
argumentista.
- NEW YORK STORIES (Histórias de Nova Iorque), de
Martin Scorsese,
Francis Ford Coppola e Woody Allen.
W. A.: Realizador, argumentista e intérprete de um episódio.
1989 − CRIMES AND MISDEMEANORS (Crimes e Escapadelas).
W. A.:
Realizador, argumentista e intérprete.
1990 − ALICE (Alice). W. A.: Realizador e argumentista.
1991 − SCENES FROM A MALL (Cenas Conjugais), de Paul Mazursky.
W.
A.: Intérprete.
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Videograma
Outros filmes de Woody Allen existentes em distribuição
videográfica no mercado português: Casino Royale (Publivideo).
O Inimigo Público nº 1 (Ecovideo).
Bananas (Kodak-Warner).
O ABC do Amor (Kodak-Warner).
O Herói do Ano 2.000 (Kodak-Warner).
Nem Guerra, Nem Paz (Kodak-Warner).
Annie Hall (Kodak-Warner).
Comédia Sexual de Uma Noite de Verão (Kodak-Warner).
O Agente da Broadway (Publivideo).
Ana e as Suas Irmãs (Publivideo) (Casablanca-Venda Directa).
Os Dias da Rádio (Publivideo) (Casablanca-Venda Directa).
Setembro (Publivideo)
Umas Outra Mulher (Publivideo) (Casablanca-Venda Directa).
Histórias de Nova lorque (Filmayer-Alfa).
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Bibliografia
a) Sobre Woody Allen
- Erie Lax: On being Funny: Woody Allen and His Comedy, New York,
Chaster House, 1975.
- BiII Adler & Jeffrey Feinman: Woody Allen, Clown Prince of
American Humor, New York, Pinacle Books, 1975.
- Richard J.
Anobile: Woody Allen's Play it Again, Sam, New York, Grosset &
Dunlap, 1977.
- Lee Guthrie: Woody Allen, A Biography, New York Drake
Publishers, 1978.
- Mauriee Yacowar: Loser Take All, The Comic Art of Woody Allen,
New York, Unger, 1979.
- Michel Lebrun: Woody Allen, Paris Pac-têtes d'affiches, 1979.
- Miles Palmer: Woody Allen, New York, Proteus 1980.
- Gilles Cebe: Woody Allen, Paris, Henri Veyrier, 1981.
- Foster Hirsch: Love, Sex, Death and the Meaning of Life. Woody
Allen's Comedy, New York, McGraw-Hill.
- Diane Jacobs: The Magic of Woody Allen, Londres, Robson, 1982.
- Gerald McKnight: Woody Allen Joking Aside, Londres, W. H. Allen
& Co., 1982.
- Douglas Brode: Woody Allen, His Films and Career, Londres,
Columbus Books, 1985.
- Robert Benayoun: Woody Allen au-delà du langage, Paris, Herscher,
1985.
- Giannalberto Bendazzi: Woody, Paris, Liana Levi, 1987.
- Thierry de Navacelle: Woody Allen, Action!, Paris, Sylvie
Messinger, 1987.
- Neil Sinyard: The Fílms of Woody Allen, Leicester, Magna Books,
1987.
b) Artigos dedicados a Woody Allen
- Collectif: «Tout ce que vous avez toujours voulu savoir sur Woody
Allen sans jamais oser le demander», Télérama n° 1540 à 1545, (1979).
- Pierre Billard: «Woody Allen: drôle de rire», Le Point n° 428,
(1980).
- Yves Alion & Gilles Colpart: «Woody ou Ia comédie du nombril» &
«L'univers de Woody Allen», La Revue du
cinéma n° 398, (1984).
- Joshka Sehildlow: «L'humour des malchanceux», Télérama n° 1813,
(1984).
- Caryn James: «Auteur! Auteur! The Creative Mind of Woody Allen,
The New York Times Magazine, (1986).
- Georgia A. Brown: «Much Ado
About Mia», American Fílm, Março 1987.
- Tom Shales: «Woody, lhe First Fifty Years» , Esquire, Abril
1987.
- Desson Howe: «The Woman who Restructures Woody», International
Herald Tribune, 13 Abril 1987.
- Raphaël Sorin: «Jean-Luc Meets Woody» , Le Matin de Paris, 18
Maio 1987.
- Robert Benayoun: «Sous le pavé, Ia fable», Positif, Julho-Agosto
1987.
- Eric Lax: «For Woody Allen, 60 Days Hath September", The New
York Times, 6 Dezembro 1987.
- Alexander Walker: «Woody Allen tombe les filles et en parle»,
Cosmopolitan, Dezembro 1987.
- Patrick Pacheco: «Ain't Misbehavin», Premiere the Movie
Magazine, Janeiro 1988.
- Jack Kroll: «What's the Matter with Woody», Newsweek, 25 Janeiro
1988.
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c) Obras de Woody Allen
. Recolhas de artigos:
- Para Acabar de vez com a Cultura - Liv. Bertrand, Lisboa, 1980.
- Sem Penas - Liv. Bertrand, Lisboa, 1981.
. Peças de teatro
- Don't Drink the Water, New York, Samuel Freneh, 1966.
- Say it Again, Sam, New York, Samuel Freneh, 1969.
. Argumentos
- Quoi de neuf, Pussycat?, Paris, Avant-scene cinéma nº 59, 1966.
- Annie Hall, Paris, Avant-scène cinéma nº 198, 1977.
- Annnie Hall, Intérieurs, Manhattan & Stardust Memorfes, Paris,
Solar, 1981.
- Zelig, Broadway Danny Rose & Ia Rose pourpre du
Caïre, Paris, Solar, 1987.
- Hannah et ses Soeurs, Paris, Solar,
1987.
. Artigos
- «What's nude Pussycat?», Playboy, aoüt 1965.
- «The girls of Casino Royale», Playboy, février 1967.
- «Ai-je bien lu les journaux?», Libération, 3 février 1988.
- «Woody Allen-Ingmar Bergman», Libération, 1er-2 octobre 1988.
. Discos
- Woody Allen, Colpix CP 488, 1964.
- Woody Allen, volume 2, Colpix CP 518,1965.
- The Third Woody Allen Albun, Capitol St 2986,1968.
- Woody Allen, The Night Club Years, 1964-1968. United Artists UA
9968, 1976.
- Woody Allen, Stand up Comic, 1964-1968, United
Artists UA-La 849-J2, 1978.
.Entrevistas
- Gert Berghoff: Visions International, Maio 1987.
- Henry Behar: Le Monde, 18 Maio 1987.
- Claude Weill: Le Nouvel Observateur, 31 Julho 1987.
- Robert Benayoun: Le Point nº 428, 1" Dezembro 1980.
- Renaud de Dancourt: Le Point n' 573, 12 Setembro 1983.
- Catherine David: Le Nouvel Observateur, 28 Setembro 1984.
- Henry Behar: Le Monde, 17 Maio 1986.
- Jean François Duval: Libération, 20 Maio 1986.
Ficha técnica
Lauro António
Licenciado em História
Realizador de Cinema (Manhã Submersa e O Vestido Cor de
Fogo)
Crítico e ensaísta de cinema em diversas publicações
Autor e encenador de teatro (A Encenação)
Director dos Festivais de Cinema de Portalegre e Viana do Castelo
Coordenador do grupo «Cinema e Audiovisuais» do Ministério da
Educação
Paginação e Grafismo
Cândida Teresa
Gabinete de
Meios Técnicos e Materiais
da Direcção
Geral de Extensão Educativa
Dim. 21x14,5 cm
Edição
Secretaria de
Estado da Reforma Educativa
Composto e impresso
na Editorial do Ministério da Educação
Algueirão
Reconversão para HTML
Henrique J. C. de Oliveira
Espaço Aveiro e Cultura
Secundária J. Estêvão
Projecto Prof2000
Aveiro - 2012
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