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Aniki-Bóbó
O filme
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Produção: António Lopes
Ribeiro; Argumento: Manoel de Oliveira, inspirado no conto
"Meninos Milionários», do Dr. Rodrigues de Freitas; Diálogos:
Manoel de Oliveira, Manuel Matos, António Lopes Ribeiro e
Nascimento Fernandes; Versos: Alberto de Serpa;
Fotografia (preto e branco): António Mendes; Cenários: José
Porto; Montagem: Vieira de Sousa; Música: Jaime
Silva (Filho); Som: Sousa Santos; Assistente de
realização: Manuel Guimarães; Assistente de imagem:
Perdigão Queiroga; Interpretação: Nascimento Fernandes
(o |
logista), Vital dos Santos (o professor), Manuel de Azevedo (o
cantor da rua), Fernanda Matos (Teresinha), Horácio Silva
(Carlitos), António Santos (Eduardito), António Morais Soares (Pistarim),
Feliciano David (Pompeu), Manuel de Sousa (o filósofo), António
Pereira (o Batatinhas), Rafael Mota (Rafael), Américo Botelho (o
Estrelas), Armando Pedro (o caixeiro); Duração: 102
minutos.
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Sinopse |
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Cenário: os bairros populares
da cidade do Porto. Próximo da via férrea, nas margens do Douro,
as crianças brincam despreocupadamente. Mas as suas brincadeiras
são também formas de iniciação ao mundo dos adultos, da lei e da
ordem. "Aniki-Bóbó» é a expressão mágica que lhe serve para
determinar uma diferença fundamental: quem é política e quem é
ladrão.
A loja onde se vende um pouco de tudo, incluindo os brinquedos que
as crianças cobiçam, é um pouco o centro dos acontecimentos, o
lugar onde todos se cruzam. Para Carlitos, um dos garotos das
redondezas, há um desejo que já se transformou numa obsessão:
oferecer à Teresinha a boneca que o lojista expõe na sua montra.
A dificuldade de obter o dinheiro, a presença constante da
autoridade e as complicações que enfrentam alguns dos seus
companheiros vão marcar todo o seu comportamento.
Um poema cinematográfico
Quando realiza Aniki-Bóbó,
Manoel de Oliveira é, no essencial, um documentarista. Como vimos,
tal designação não pode ser tomada à letra; não pode, pelo menos,
ser reduzida à noção corrente de alguém que se limita a filmar
aquilo que a realidade lhe dá a ver, para depois o apresentar de
forma mais ou menos organizada e "descritiva». Seja como for,
através de títulos como
Douro, Faina Fluvial ou Famalicão,
respectivamente de 1931 e 1940,
Oliveira tinha-se mostrado como retratista de realidades muito
palpáveis: a zona ribeirinha do Porto, a vida quotidiana e uma
feira em Famalicão.
Nesse sentido, podemos
considerar que
Aniki-Bóbó
parte de uma atitude documental. Basta sublinhar o partido que o
cineasta sabe extrair dos cenários portuenses e, de novo, dos
lugares das margens do Douro. Mas é também por aí que
Aniki-Bóbó
começa a ser diferente de um simples testgemunho documental. Por
aí, e não apenas pelo facto de naqueles cenários surgir inserida
uma história
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de confronto de um grupo de crianças com o mundo dos adultos. De
facto, Oliveira filma o Porto não tanto para produzir o seu
«retrato», mas mais para inventar uma cidade imaginária que, como
por acaso, tem como matérias principais as pedras e as ruas do
Porto.
A história do Carlitos e da
Teresinha é assim algo mais do que uma fábula que se vem inscrever
em paisagens conhecidas e facilmente reconhecíveis. Essa sua
dimensão de fábula contamina todos os elementos do filme,
justificando o epíteto que, historicamente, o tem acompanhado:
«realismo poético». Talvez que a designação se preste a equívocos,
em especial porque surge também associada a outros contextos
(franceses, por exemplo) e outros autores (Marcel Carné) bem
diversos e distantes do mundo de Oliveira. Seja como for, ela tem,
pelo menos, um mérito: o de sublinhar que os modos de relação do
cinema de Oliveira com a realidade estão longe de corresponder a
uma qualquer «espontaneidade» do olhar ou das coisas olhadas. Ele
é um cineasta de transfiguração da realidade, alguém
que acredita no poder mágico do cinema face a essa mesma
realidade.
No contexto português da
altura, semelhante atitude estava longe de ser indiferente. Basta
recordar que Aniki-Bóbó foi feito na mesma época de grandes
sucessos populares como O Pai Tirano (1941), de
António Lopes Ribeiro, ou O Pátio das Cantigas
(1942), de Francisco Ribeiro. Perante tais títulos, é óbvio que
Aniki-Bóbó instala uma diferença importante: em vez do humor
directamente ligado ao teatro de revista e às suas caricaturas
sociais, o filme de Oliveira propõe, por assim dizer, uma «evasão»
para um domínio em que prevalece o anti-naturalismo, e até mesmo
algum apelo fantástico.
Basta recordar sequências como
o pesadelo de Carlitos ou da viagem que este faz pelos telhados
para entregar a Teresinha a tão ambicionada boneca. São situações
em que o irrealismo do tratamento dos cenários e objectos vai a
par de um clima ambíguo, dir-se-ia puramente onírico.
Curiosamente, estas
características de Aniki-Bóbó acabariam
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/ por transformá-lo num filme premonitório (ou como
tal considerado) do neo-realismo italiano. Compreende-se que assim
tenha acontecido. Tal como nas obras determinantes do neo-realismo
– por exemplo, Roma, Cidade Aberta (1945), de
Roberto Rossellini, e Ladrão de Bicicletas (1948),
de Vitorio De Sica – existe em Aniki-Bóbó um gosto especial
pela exploração dos cenários naturais e também pela utilização de
actores cuja presença se confunde com a do homem da rua. Não será
até deslocado considerar que todos eles são filmes que se ligam
através de um «sentimento estético» de atenção á vida das classes
mais pobres que marcava muito cinema da época.
Para além disso, porém, importa
lembrar que a origem de Aniki-Bóbó não tem nada a ver com
as determinações históricas do neo-realismo italiano: isto é, a
preocupação – aliada ao imperativo moral – de dar conta das
feridas sociais e individuais da guerra. Neste aspecto, poderemos
dizer apenas que Aniki-Bóbó contém uma mensagem linear e
ingénua de alguém que filmava na mesma altura em que grande parte
da Europa sofria os efeitos dramáticos da Segunda Guerra Mundial:
as crianças são, neste caso, a imagem cândida de uma pureza que o
mundo dos adultos não ostentava.
Porque, afinal, talvez que a
força vital que faz mover estas personagens, mesmo quando a sua
acção parece situar-se num clima mais ou menos idílico, seja esse
medo a que se refere João Bénard da Costa a
propósito de vários filmes de Oliveira: "O medo cresce na
noite, na solidão, nos espaços fechados. O Porto policiado do
Douro está cercado pela barra (...). O mesmo cerco espreita o
pintor na cidade, tentando fechar no espaço da tela a vida que a
tela destrói. Entre algumas ruas, a escola, a loja das tentações e
o molhe onde brincam, estão cercados os miúdos do Aniki-Bóbó que
no escuro encenam a morte e aprendem que não há fugas possíveis
para os ladrões doutro espaço» (in "Manoel de Oliveira»,
Cineasta Portuguesa, Lisboa, Outubro 1981).
Daí que valha a pena sublinhar
a importância do conflito entre o Indivíduo e a Lei em todo o
cinema de Oliveira. Poder-se-á considerar que Aniki-Bóbó
não tem nem a maturidade nem a qualidade de elaboração formal e
técnica de alguns dos filmes mais recentes de Oliveira como, por
exemplo, Benilde ou a Virgem Mãe (1974) ou
Francisca (1980). De qualquer modo, não será abusivo ver
em Aniki-Bóbó uma espécie de ultrapassagem fabulosa
(entenda-se: em forma de fábula) das limitações do quotidiano por
parte do indivíduo. Oliveira filma como evidente ternura as
crianças de Aniki-Bóbó porque nelas reconhece uma força
criativa cuja «irracionalidade» escapa ao mundo de razões (e de
Razão) dos adultos. Não será que, quase quatro décadas passadas,
ele encontrou a mesma força em Teresa e Simão, os protagonistas do
Amor de Perdição que o cineasta foi buscar a Camilo
Castelo Branco?
Se há filmes que, no interior
da história do cinema português, podem ostentar a classificação de
clássicos, Aniki-Bóbó é, por tudo
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/ isso, certamente um deles. Não que a sua
importância se possa medir em termos de descendência. Quantos
filmes portugueses retomaram a herança de Aniki-Bóbó?
Talvez nenhum, tanto mais que o seu autor foi o primeiro a romper
com as suas características.
O valor clássico de
Aniki-Bóbó mede-se na sua própria solidão e singularidade: um
«poema cinematográfico" que assinala um marco na evolução de um
dos mais importantes criadores do cinema português.
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Os actores e os técnicos |
Mesmo os ecos de popularidade
que possamos encontrar, por exemplo, no nome de Nascimento
Fernandes, protagonista do filme, não fazem de Aniki-Bóbó
um filme «dominado" pelos actores. Neste sentido: embora datado do
início dos anos 40, este não é um filme alicerçado na popularidade
de figuras – como Vasco Santana ou António Silva – directamente
ligados a um registo cómico e, especificamente, ao teatro de
revista.
Em termos pedagógicos, esse
poderá ser um bom pretexto para combater a imagem falsa do passado
do cinema português como uma colecção de comédias mais ou menos
ligeiras. Não que se trate de recusar os valores de tais comédias
ou mesmo os efeitos da sua popularidade. A questão é outra: de
facto, e apesar das muitas dificuldades de produção que estiveram
ligadas a quase todas as fases da evolução do cinema em Portugal,
não é justo considerar que se trata de um cinema homogéneo, sem
experiências apostadas em recusar os padrões dominantes.
Nesta perspectiva, será justo
evocar dois nomes que figuram na ficha de Aniki-Bóbó. Um
deles é António Mendes, director de fotografia que iniciara a sua
colaboração com Oliveira em Douro, Faina Fluvial:
ele é, sem dúvida, um dos grandes talentos das primeiras décadas
do cinema em Portugal e, em especial, um notável criador de
imagens a preto e branco. O outro é António Lopes Ribeiro: além de
cineasta, ele foi um dos poucos verdadeiros produtores da história
do cinema português e a sua aposta em Oliveira e no projecto de
Aniki-Bóbó não terá sido das coisas menos importantes da sua
actividade; além do mais, o facto de Lopes Ribeiro ter surgido,
durante largos anos, como uma
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emanação directa dos valores do regime salazarista para o cinema,
confere-lhe o estatuto de personalidade essencial em toda a
história do cinema português até 1974; foi ele que realizou
A Revolução de Maio (1937), uma ficção que é também uma
espécie de panfleto dramático do Estado Novo.
Questões
interdisciplinares |
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Em termos muito simples, vale a
pena utilizar Aniki-Bóbó como exemplo de um cinema
português «diferente», alheio a esses vícios de raciocínio que
tendem a reduzi-lo a uma colecção de comédias populares ou, pior
ainda, a um conjunto de objectos esotéricos.
O paralelismo, precisamente com
as comédias da época, pode ser interessante para mostrar como, já
nos anos 40, a produção cinematográfica portuguesa estava longe de
ser estética e tematicamente homogénea. Além do mais,
Aniki-Bóbó reflecte uma antinomia, se não eterna, pelo menos
muito importante em diversos sectores da história da expressão
pelo cinema: é a que se estabelece entre o «naturalismo» das
imagens e a «fantasia» dos ambientes, no fundo, entre a
constatação realista e a transfiguração irrealista.
Em termos videográficos, não é
muito fácil a comparação do filme com outros momentos da obra de
Manoel de Oliveira (as edições dos seus trabalhos são ainda
escassas). De qualquer modo, havendo possibilidade de acesso a
esses momentos, seria interessante vê-lo a par de Douro,
Faina Fluvial ou O Pintor e a Cidade, filmes
de Oliveira em que a cidade do Porto surge também transfigurada
através de um olhar documental que não esconde a sua dimensão
anti-naturalista.
Por fim, e para além da maior
ou menor justificação que possamos atribuir ao paralelismo de
Aniki-Bóbó com o neo-realismo, será sempre interessante evocar
as suas obras, quer no cinema (italiano), quer na literatura. Além
do mais, convém recordar que o facto de o conto de Rodrigues de
Freitas que serviu de inspiração ao filme ter sido publicado na
revista «Presença» pode permitir uma evocação motivadora da
paisagem cultural portuguesa no inicio da década de 1940.
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Manuel de Oliveira |
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Biofilmografia |
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A história da obra
cinematográfica de Manoel de Oliveira é mais do que o relato
particular do trajecto de um autor. É também, de certo modo, uma
história paralela das dificuldades de fazer cinema em Portugal.
A imagem de Oliveira como uma
espécie de símbolo central do cinema português contemporâneo e,
mais do que isso, como bandeira desse cinema no estrangeiro está
longe de ser uma imagem que o tenha acompanhado deste sempre:
Nascido no Porto, a 10 de Dezembro de 1908, Oliveira esteve ligado
ao cinema desde muito cedo. Mas não esteve sempre ligado ao
cinema, como o demonstram os vários hiatos da sua produção
fílmica.
Em 1928, surge como figurante
do filme Fátima Milagrosa, rodado por Rino Lupa, nos
estúdios da Invicta Filmes no Porto. A sua primeira realização é
Douro, Faina Fluvial, curta-metragem documental
sobre a zona ribeirinha do Porto. O filme teria duas versões: uma
muda, estreada a 21 de Setembro, no Cinema Central, no âmbito do
Congresso Internacional da Crítica, e outra sonora, com partitura
musical de Luís de Freitas Branco, que surgiria nas salas a 8 de
Agosto de 1934, servindo de complemento a Gado Bravo,
de António Lopes Ribeiro.
A evocação precisa da época em
que surgiu Douro, Faina Fluvial revela-se
especialmente importante se tivermos em conta que terá sido a
partir daí que que se instalou (para durar algumas décadas) a
noção equívoca de um Oliveira documentarista mais ou menos
«naturalista». Na verdade, o filme segue uma estratégia
documentarista, mas está longe de se poder incluir em qualquer
vertente naturalista da história do cinema. Aliás, foi o próprio
Oliveira que, desde sempre, confessou ter-se inspirado naquele que
é um dos modelos históricos do documentarismo anti-naturalista,
mesmo com um apelo fantástico: Berlim, Sinfonia de uma
Cidade (1927), do alemão Walter Ruttmann.
Numa opinião expressa por
altura do lançamento do filme de Oliveira O Passado e o
Presente (1971), o crítico e o cineasta Alberto Seixas
Santos resume a atitude criativa de Oliveira,
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/ afirmando: «Documentarista, se tal título se
justifica, o que duvido, Manoel de Oliveira foi-o marginalmente e
à sua maneira. Ou melhor, à maneira de Entre Douro e Minho, à
maneira de Camilo, Raul Brandão ou Amadeo de Sousa Cardoso. Do
outro lado do realismo."
Parafraseando esta leitura,
talvez pudéssemos dizer que Aniki-Bóbó (1942), a primeira
longa-metragem de Oliveira, pode ser apontado como um objecto que
está "do outro lado do neo-realismo». É, pelo menos, um filme que
nunca deixou de ser aproximado desse movimento que, logo após a
Segunda Guerra Mundial, se impôs no interior do cinema italiano
através de nomes tão emblemáticos como Roberto Rossellini e
Vittorio De Sica. Seja como for, mesmo que reconheçamos em Manoel
de Oliveira um neo-realista "por antecipação» não se pode dizer
que a sua obra se encaixe rigorosamente nos seus modelos e
valores.
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É que, na verdade, se há
tendência que distingue o trabalho de Oliveira é o da
experimentação. Podemos gostar mais de um ou outro dos
seus filmes (e nunca ninguém foi tão discutido no cinema português
como Oliveira), mas é forçoso reconhecer-lhe o gosto pela mudança
e, mais do que isso, a capacidade de surpreender tudo e todos,
resistindo quase sempre a reproduzir num filme as fórmulas
aplicadas em qualquer dos filmes anteriores.
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Sem filmar depois de
Aniki-Bóbó, Oliveira só regressaria ao trabalho de realização
em 1956 (portanto, catorze anos depois) para uma nova
curta-metragem: O Pintor e a Cidade. O pretexto é
constituído pelos quadros de António Cruz, sendo o tema, de novo,
a cidade do Porto. De qualquer modo, o essencial do documentário
que O Pintor e a Cidade também é joga-se numa
dimensão interior, iniciática – entre o «real» e a sua
«representação», entre a evidência das coisas pintadas (e
filmagens) e os seus enigmas.
Pelo caminho, iam ficando
diversos projectos (Desemprego, Gigantes do
Douro, Angélica, Pedro e Inês,
etc.). Oliveira dedica-se a outras actividades, nomeadamente a
agricultura e, em 1955, desloca-se à Alemanha para estudar a cor
no cinema (tal estudo seria, aliás, fundamental para os resultados
(obtidos em O Pintor e
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a Cidade). O Pão (1959) e A Caça
(começado em 1959 e só terminado em 1963) são outras experiências
«documentais» que confirmam a originalidade do universo de
Oliveira. Pelo meio, em 1961-62, o cineasta realiza aquele que é,
para muitos, o núcleo irradiante do seu cinema: Acto da
Primavera, registo de um auto da Paixão, tradição da
aldeia da Curalha, próximo de Chaves, que excede, em muito, a sua
lógica aparentemente documental.
Em Acto da Primavera
está bem patente o gosto de Oliveira pelo Teatro. E não apenas
como «representação em palco», Aquilo que o fascina é a própria
teatralidade, quer dizer, o sentimento de proximidade dos corpos
que representam e, ao mesmo tempo, a ideia de que tudo o que eles
representam é resultado de um artifício que não se esconde. Toda a
sua obra mais conhecida – de O Passado e o Presente
a O Sapato de Cetim (1985) – decorre dessa propensão
teatral.
Os anos 60, em particular
depois de Acto da Primavera, revelar-se-iam
decisivos para a consagração internacional de Oliveira. O filme
recebeu mesmo a medalha de ouro do Festival de Siena de 1964, em
Itália. Um ano mais tarde, Oliveira era alvo de uma consagração de
peso para qualquer autor cinematográfico: uma retrospectiva da sua
obra na Cinemateca Francesa de Henri Langlois. |
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Apoiado pelos membros do Centro
Português de Cinema para a realização de O Passado e o
Presente, Oliveira tem, a partir de então, a possibilidade
de trabalhar com regularidade. Basta dizer que, nos últimos vinte
anos, a sua obra inclui muito mais títulos que nas anteriores
quatro décadas da sua trajectória. Amor de Perdição
(1978), produzido para televisão, ou Non ou a Vã Glória de
Mandar (1990), produção já com significativos apoios
internacionais, podem exemplificar alguns dos sinais, mais
importantes daquela trajectória. Dois merecem ser sublinhados. Em
primeiro lugar, a permanente relação de Oliveira com a literatura
e/ou com a história de Portugal e os valores do ser português;
depois, a sua inserção polémica no próprio espaço da cultura
portuguesa contemporânea (raras vezes
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filmes portugueses como os citados têm desencadeado paixões tão
extremadas e opostas).
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Num célebre texto publicado no
«Diário de Lisboa» (10/3/1972), a propósito de O Passado e o
Presente, o cineasta João César Monteiro terá apontado com
singular rigor algumas das raízes do universo de Oliveira e também
dos seus efeitos contraditórios: «Manoel de Oliveira faz
parte, no contexto português, da pequena minoria de cineastas
católicos (os outros são o Paulo Rocha e, numa escala bem mais
modesta, o autor destas linhas) para quem o acto de filmar
implica a consciência de uma transgressão.
|
Filmar é uma violência do
olhar, uma profanação do real que tem por objectivo a restituição
de uma imagem do sagrado, no sentido que Roger Caillois dá à
palavra. Ora, essa imagem só pode ser traduzida em termos de arte,
no que isso pressupõe de criação profundamente lúdica e
profundamente ligada a um carácter religioso e primitivo.»
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Filmografia
1941 – Douro, faina
fluvial, Curta-metragem
1937 – Em Portugal já se fazem automóveis
1937 – Miramar, praia das rosas
1942 – Famalicão
1942 – Aniki-Bóbó
1956 – O pintor e a cidade
1959 – O pão, média-metragem |
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1962 – Acta da Primavera
1963 – A caça
1965 – As pinturas do meu Irmão Júlio
1971 – O passado e o presente
1974 – Benilde ou a virgem mãe
1978 – Amor de perdição
1980 – Francisca
1982 – Visita ou memórias e confissões
1983 – Lisboa cultural
1983 – Nice – À propos de Jean Vigo / Nice – A
Propósito de Jean Viga
1985 – Le soulier de Satin / O Sapato de Cetim
1985 – Simpósio Internacional de Escultura em Pedra –
Porto, co-real. Manuel Casimiro
1986 – Mon cas /O Meu
Caso
1987 – A bandeira nacional
1988 – Os canibais
1990 – Non ou vã glória de mandar
1991 – A divina comédia
Nota – Outros
filmes foram posteriormente realizados por Manoel de Oliveira.
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Sobre o
filme
e sobre
Manuel de Oliveira
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«Depois de tantos anos maus, o ano de
1941 é o ano bom. António Lopes Ribeiro tinha criado uma empresa
produtora de filmes (o sonoro e a guerra pareceram-lhe propiciar
um surto de filmes portugueses) e ofereceu a Manoel de Oliveira a
oportunidade de realizar Aniki-Bóbó, uma história que no
ano anterior tinha adaptado livremente de um conto de Rodrigues de
Freitas (Meninos Milionários) publicado na revista
"Presença". A planificação passou por três fases e foi mudando de
título: primeiro, o filme chamar-se-ia Corações Pequeninos;
na segunda fase trazia o título de Gente Miúda;
finalmente passou a intitular -se Aniki-Bóbó.
«(...) Quando da estreia do filme, o seu
realismo poético não seduziu tanto o público como seria de
esperar. Uma certa dose de incompreensão marcou, também, algumas
críticas da época. Mesmo os amigos mais chegados de Manoel de
Oliveira (que foram sempre os seus críticos mais exigentes)
puseram alguns reparos de pormenor. O valor e a importância de
Aniki-Bóbó só iriam ser unanimemente reconhecidos muito mais
tarde.»
Alves Costa
(in «Manoel de Oliveira«, Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1981)
«Eu suponho, e talvez erradamente, que procurava um certo
realismo, procurava inserir (...) pequenos arranjos nos
documentários como se fossem naturais, como se fossem casuais,
como se os surpreendesse em realidade. Mais tarde, apercebi-me que
não seria tanto assim! Talvez por isso o Aniki.Bóbó ainda
tenha (porque é o salto que dei do documentário para a ficção) a
aparência de um documentário. Muito recentemente compreendi que o
filme que alterou o meu esquema foi o Acto da Primavera.
Vi que estava dentro de um texto, dentro de uma representação, que
vinha do século XVI, de um acontecimento de há cerca de dois mil
anos e que era mostrado hoje. Isto dá bem a ideia de representar
uma realidade, não simular, representá-la apenas.»
Manoel de Oliveira
(idem)
/ 16 /
«Nas muitas conversas que tive com ele, verifiquei que Manoel de
Oliveira era um excelente técnico, conhecendo profundamente os
diversos domínios respeitantes à feitura de um filme: a imagem, o
som, o laboratório. Por detrás de uma personalidade de artista,
que aparentemente dir-se-ia só se interessar pela parte humana e
expressiva do cinema, está um dos maiores, se não o mais
competente, profissional do cinema português.»
António da Cunha Telles
(in "Manoel de Oliveira",
Centro Português de Cinema, Lisboa, 1976
«Chamo teatro a tudo o que se põe diante da
câmara. Não é propriamente o palco, o teatral. É claro que a
técnica cinematográfica permite uma dispersão, outras facilidades
que o palco não tem e que, influenciado pelo cinema, em certa
medida, procurou. Vários tipos de teatro tentaram ultrapassar,
aproximar-se ou igualar-se ao cinema, mas aí o cinema teve
vantagem.»
Manoel de Oliveira
(in "Manoel de Oliveira".
Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1981)
/ 17 /
«Se me perguntarem porque faço cinema.
Logo penso: não perguntam
antes se respiro?
Faço isto umas vinte e quatro vezes por minuto.
Em dois tempos perfeitamente coordenados:
Primeiro absorvo o
oxigénio, segundo expulso
o anidrido carbónico.
Um, dois...
Um, dois...»
|
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Manoel de Oliveira
(In "Libération", número especial de Maio
1987 contendo as respostas de 400
cineastas à pergunta "Porque filma'")
Manuel de Oliveira
–
Bibliografia
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É vastíssima a bibliografia
dedicada a Manoel de Oliveira, à sua personalidade e à sua obra.
Em especial depois da polémica que envolveu a passagem de
Amor de Perdição na televisão, cada filme do cineasta é um
acontecimento que invariavelmente mobiliza grande atenção e, nessa
medida, muita produção escrita. Estamos mesmo perante um cineasta
que tem sido tão comentado em livros ou catálogos como na imprensa
nacional e estrangeira. Entre nós, o principal modo de acesso a
tal bibliografia é o sector de documentação da Cinemateca
Portuguesa (Rua Barata Salgueiro, 39 – Lisboa); para além da
quantidade de livros e revistas arquivados, a cinemateca possui um
sistema de indexação que permite uma pesquisa eficaz e uma
consulta rápida.
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/ 21
/
Aqui ficam algumas hipóteses, apenas entre livros e catálogos:
– "Aniki-BóBó" – Planificação Integral (Cineclube do
Porto, 1963): pode ser um bom pretexto para um estudo comparado do
filme e da sua planificação.
– Manoel de Oliveira
(Centro Português de Cinema, Lisboa, 1976): antologia de textos
organizada por ocasião do lançamento de Benilde ou Virgem
Mãe.
– II Cinema di Manoel de Oliveira, organizado por
Paola Pelanti (Grupo Toscano do Sindicato Nacional dos Críticos
Cinematográficos de Itália, Florença, 1978): uma das muitas
perspectivas estrangeiras sobre a obra do cineasta.
– Introdução à Obra de Manoel de Oliveira, de
José-Augusto França, Alves Costa e Luís de Pina (Instituto de
Novas Profissões, Lisboa, 1981): antologia de textos biográficos e
analíticos.
– Manoel de Oliveira (Cinemateca Portuguesa, Lisboa,
1981): catálogo editado por ocasião da primeira retrospectiva
integral de Oliveira, incluindo uma mesa redonda com o cineasta.
– Alguns Projectos Não Realizados e Outros Textos,
de Manoel de Oliveira (Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1988):
textos de projectos que Oliveira nunca filmou (por vezes incluindo
já pormenorizadas planificações com diálogos, tipo e duração de
planos) e outros sobre várias questões da sua prática
cinematográfica.
/
23 /
Videografia
Além de Aniki-Bóbó,
só existe mais um filme de Manoel de Oliveira editado em vídeo:
Non, ou a vã glória de mandar (Atalanta Vídeo)
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24 /
Para possíveis paralelismos ou contrastes de leitura, poderão
ter-se em conta títulos portugueses com os seguintes:
Ala-Arriba!, de Leitão de Barros (Videotrónica)
Amor de perdição, de António Lopes Ribeiro (Videotrónica)
João Ratão, de
Jorge Brum do Canto (Lusomundo)
O pai tirano, de António Lopes Ribeiro (Lusomundo)
O pátio das cantigas, de Francisco Ribeiro
(Lusomundo)
Ficha técnica
João Lopes
Colaborou na
Cinemateca Portuguesa
e na RTP 2,
como programador. Crítico do
Jornal
"Expresso».
Paginação e Grafismo
Cândida Teresa
Gabinete de
Meios Técnicos e Materiais
da Direcção
Geral de Extensão Educativa
Dim. 21x14,5 cm
Edição
Secretaria de
Estado da Reforma Educativa
Composto e impresso
na Editorial do Ministério da Educação
Algueirão
Reconversão para HTML
Henrique J. C. de Oliveira
Espaço Aveiro e Cultura
Secundária J. Estêvão
Projecto Prof2000
Aveiro - 2012
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