Pormenor do retrato a óleo de José Estêvão existente na sala de professores.

Escola Secundária José Estêvão
SEUC - Nível Secundário

 
Unidade 12 - PORTUGUÊS


Miguel Torga
Tema do "desespero": "humanista" e "religioso"


(págs. 141-142 do Guia):

- a revolta contra os limites do eu

- a problemática religiosa (a dúvida e a incerteza na relação com o divino)

 

Segundo a obra de Miguel Torga, a evolução da história humana revela o progresso da autoconsciência da liberdade; e quanto mais esta autoconsciência define e aperfeiçoa o perfil do Homem, mais a imagem de Deus se atrofia e distorce.

O humanismo de Torga expressa-se na intenção de confinar a realidade humana unicamente no Homem e na sua aventura cósmica, embora essa intenção não encontre no espírito total do poeta uma estrada luminosa e larga, mas antes a porta estreita de uma agonia pessoal. Em frente de Deus, a atitude de Torga ora é de desafio, ora é de conflito pessoal, ora é de acusação do Deus ausente que parece ter renunciado à sua própria existência e se remeteu ao silêncio.

Torga revela-se indeciso face ao absoluto, ao sagrado, ao divino. Esperança e desesperança exprimem o conflito íntimo que se desenvolve no interior do poeta. Prefere negar a existência do transcendente que lhe perturba a razão. É a ausência de um deus humano e imanente, próximo e revelado, que perturba o poeta.

Por um lado, o apego ao terreno que, individual ou colectivamente, define o Homem; por outro, a revolta contra os limites terrenos (as imperfeições humanas ou a própria morte).

           

Sobre o poema “Esperança” (pág. 141 do Guia):

Nos dois primeiros versos, o Eu poético afirma a sua insatisfação face à esperança, apesar de esta apresentar diversas formas. Nos quatro versos que se seguem, coloca a possibilidade de a esperança vir no amor, mas logo reconhece que se o amor “é um grito (...) que apenas ouve o eco...” é porque se trata de um sentimento (tal como os sons) breve, logo não pode conter esperança. Nos quatro últimos versos, encontramos uma explicação para o facto de o Eu poético não conseguir encontrar a esperança: o ser “absurdo humano” (próprio do Homem) de querer o impossível (conciliar o “sagrado” com o “herético”).

 

      AQUI DIANTE DE MIM

Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão em leme da nau
Nesta deriva em que vou.

            Me confesso
           
Possesso
Das virtudes teologais,

           
Que são três,
E dos pecados mortais

           
Que são sete,
Quando a terra não repete

           
Que são mais.

            Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo

           
Andanças
           
Do mesmo todo.

            Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco

           
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.

           
De ter raízes no chão
            Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
            De ser anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
            De ser o monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.

            Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!

 

«Assunto do poema: o poeta confessa-se como um “eu” dividido entre o bem e o mal, entre a virtude e o pecado, entre a raiva e a ternura, entre a luz e a sombra, entre o divino e o humano. Consideramos que o assunto se desenvolve em quatro partes. A primeira parte (1ª estrofe) contém logo uma síntese de todo o poema: o poeta confessa-se como é – um misto de bondade e de maldade; na segunda parte (2ª, 3ª e 4ª estrofes), a confissão desce ao particular e é já uma concretização da dualidade antagónica do poeta: virtude e pecado, raiva e ternura, luz e sombra (charco e luar de charco); na terceira parte (5ª e 6ª estrofes) o poeta exprime, por meio de dois pares de metáforas- símbolos (Abel – Caim e anjo – monstro), a mesma antinomia do seu “eu” (o bem e o mal), mas apresenta a razão de toda essa contradição: me confesso de ser homem (a natureza humana é um misto de matéria e espírito, de luz e de sombra); finalmente, a última parte (última estrofe) prova o caminho circular do desenvolvimento do assunto: o poeta volta ao princípio ao afirmar “me confesso de ser eu tal e qual como vim” (na primeira estrofe afirmara “me confesso de ser assim como sou”).

De notar que, na longa enumeração dos pares antitéticos, reveladores da dualidade antagónica do “eu”, com excepção de duas vezes (3ª e 4ª estrofes), é sempre o bom que vem primeiro que o mau, sugerindo precisamente o “anjo caído do céu”. (...) Esta inspiração de fundo cristão é ainda evidenciada por palavras e expressões retiradas deliberadamente de formulários cristãos: “eu pecador me confesso”, “possesso das virtudes teologais que são três”, “dos pecados mortais que são sete”, “de Abel e de Caim” (conteúdo bíblico), “anjo caído do tal céu que Deus governa” (teoria do pecado original). (...)

No aspecto morfo-sintáctico é evidente a predominância dos substantivos e verbos, o que está de harmonia com um discurso confessional, de frases continuamente declarativas. Há apenas uma meia dúzia de adjectivos, quatro dos quais constituem dois pares muito expressivos: “facadas cegas e raivosas” e “ternuras lúcidas e mansas”. O verbo fundamental do texto é o verbo “confessar” (confesso, sempre no tempo presente), como convém a uma monólogo meditativo, definidor do “eu”, no presente. A forma da 1ª pessoa do singular “confesso” é usada nove vezes, para realçar a insistência do sujeito lírico sobre a revelação do seu “eu”. (...) Isto mostra que o texto é directa e essencialmente um monólogo. Só indirectamente, pelo seu conteúdo humano, pelo problema de identidade, que é universal, é que o poema se poderá também considerar um diálogo com os outros. A insistência sobre o “eu” e a obsessão das suas contradições estão dentro do psicologismo tão próprio dos homens da Presença.» [Bibl.]

 

Poema a que respeita a ficha de trabalho da página 148 do Guia:

                DESFECHO

Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte).

Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado e paciente...

E lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.

Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.

 

 

«Pode sintetizar-se assim o assunto do poema: o “eu” lírico passa a vida a fugir de Deus e a negá-lo e Deus sempre a persegui-lo silenciosamente, numa luta inglória para qualquer das partes.

O assunto desenvolve-se em três partes lógicas. Na primeira parte (as duas primeiras estrofes), o poeta afirma que passou toda a vida a negar Deus, gastando todas as palavras sem conseguir irradiar do seu caminho essa presença divina, calada, mas impertinente. Na segunda parte (terceira estrofe), o “eu” lírico aponta a estratégia utilizada nessa altura contra a incómoda presença divina: a recusa agressiva e o grito. Na terceira parte (última estrofe), introduzida pela adversativa “mas”, é-nos dado um resultado inglório dessa luta: o tempo moeu os gritos opressivos do poeta, reduzindo-o ao silêncio, restando assim os dois adversários mudos e malogrados.

Mais uma vez notamos a tendência de Torga para a estrutura circular dos poemas: no princípio o poeta já não tinha mais palavras e, no fim, ficou reduzido ao silêncio, verificando-se assim um retorno ao começo. Note-se que só o “eu” lírico é que muda (do grito ao silêncio), já que Deus permanece sempre a mesma divina presença permanente... e paciente.

(...) O diálogo implícito que aqui se trava é entre a imanência (o poeta como homem) e a transcendência (a divindade). Este mesmo problema tem ainda maior incidência na poesia de José Régio, o grande mentor do Movimento Presença. Só que neste poeta se exprime sobretudo a angústia de não compreender o mistério insondável da divindade, ao passo que em Miguel Torga se vê sobretudo a rebeldia em aceitar o Deus tradicional.

Afinal a rebeldia está no cerne de toda a poesia de Torga: rebeldia contra si mesmo, contra os outros homens de letras, contra as tertúlias literárias, contra os políticos, contra toda uma sociedade que não quadra com o seu espírito naturalmente rebelde.» [Bibl.]

 

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