(págs.
141-142 do Guia):
-
a revolta contra os limites do eu
-
a problemática religiosa (a dúvida e a incerteza na relação
com o divino)
Segundo
a obra de Miguel Torga, a evolução da história humana
revela o progresso da autoconsciência da liberdade; e quanto
mais esta autoconsciência define e aperfeiçoa o perfil do
Homem, mais a imagem de Deus se atrofia e distorce.
O
humanismo de Torga expressa-se na intenção de confinar a
realidade humana unicamente no Homem e na sua aventura cósmica,
embora essa intenção não encontre no espírito total do
poeta uma estrada luminosa e larga, mas antes a porta estreita
de uma agonia pessoal. Em frente de Deus, a atitude de Torga
ora é de desafio, ora é de conflito pessoal, ora é de acusação
do Deus ausente que parece ter renunciado à sua própria
existência e se remeteu ao silêncio.
Torga
revela-se indeciso face ao absoluto, ao sagrado, ao divino.
Esperança e desesperança exprimem o conflito íntimo que se
desenvolve no interior do poeta. Prefere negar a existência
do transcendente que lhe perturba a razão. É a ausência de
um deus humano e imanente, próximo e revelado, que perturba o
poeta.
Por
um lado, o apego ao terreno que, individual ou colectivamente,
define o Homem; por outro, a revolta contra os limites
terrenos (as imperfeições humanas ou a própria morte).
Sobre o poema “Esperança” (pág. 141 do Guia):
Nos
dois primeiros versos, o Eu poético afirma a sua insatisfação
face à esperança, apesar de esta apresentar diversas formas.
Nos quatro versos que se seguem, coloca a possibilidade de a
esperança vir no amor, mas logo reconhece que se o amor “é
um grito (...) que apenas ouve o eco...” é porque se
trata de um sentimento (tal como os sons) breve, logo não
pode conter esperança. Nos quatro últimos versos,
encontramos uma explicação para o facto de o Eu poético não
conseguir encontrar a esperança: o ser “absurdo
humano” (próprio do Homem) de querer o impossível
(conciliar o “sagrado” com o “herético”).
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AQUI DIANTE DE MIM
Aqui,
diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão em leme da nau
Nesta deriva em que vou.
Me confesso
Possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.
Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.
Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.
Me
confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me
confesso de ser Homem.
De ser anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.
Me
confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!
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«Assunto
do poema: o poeta confessa-se como um “eu” dividido entre
o bem e o mal, entre a virtude e o pecado, entre a raiva e a
ternura, entre a luz e a sombra, entre o divino e o humano.
Consideramos que o assunto se desenvolve em quatro partes. A
primeira parte (1ª estrofe) contém logo uma síntese de todo
o poema: o poeta confessa-se como é – um misto de bondade e
de maldade; na segunda parte (2ª, 3ª e 4ª estrofes), a
confissão desce ao particular e é já uma concretização da
dualidade antagónica do poeta: virtude e pecado, raiva e
ternura, luz e sombra (charco e luar de charco);
na terceira parte (5ª e 6ª estrofes) o poeta exprime, por
meio de dois pares de metáforas- símbolos (Abel – Caim e
anjo – monstro), a mesma antinomia do seu “eu” (o bem e
o mal), mas apresenta a razão de toda essa contradição: me
confesso de ser homem (a natureza humana é um misto de
matéria e espírito, de luz e de sombra); finalmente, a última
parte (última estrofe) prova o caminho circular do
desenvolvimento do assunto: o poeta volta ao princípio ao
afirmar “me confesso de ser eu tal e qual como vim”
(na primeira estrofe afirmara “me confesso de ser assim
como sou”).
De
notar que, na longa enumeração dos pares antitéticos,
reveladores da dualidade antagónica do “eu”, com excepção
de duas vezes (3ª e 4ª estrofes), é sempre o bom que vem
primeiro que o mau, sugerindo precisamente o “anjo caído
do céu”. (...) Esta inspiração de fundo cristão é
ainda evidenciada por palavras e expressões retiradas
deliberadamente de formulários cristãos: “eu pecador me
confesso”, “possesso das virtudes teologais que são três”,
“dos pecados mortais que são sete”, “de Abel e
de Caim” (conteúdo bíblico), “anjo caído do tal
céu que Deus governa” (teoria do pecado original).
(...)
No
aspecto morfo-sintáctico é evidente a predominância dos
substantivos e verbos, o que está de harmonia com um discurso
confessional, de frases continuamente declarativas. Há apenas
uma meia dúzia de adjectivos, quatro dos quais constituem
dois pares muito expressivos: “facadas cegas e
raivosas” e “ternuras lúcidas e mansas”. O
verbo fundamental do texto é o verbo “confessar” (confesso,
sempre no tempo presente), como convém a uma monólogo
meditativo, definidor do “eu”, no presente. A forma da 1ª
pessoa do singular “confesso” é usada nove vezes, para
realçar a insistência do sujeito lírico sobre a revelação
do seu “eu”. (...) Isto mostra que o texto é directa e
essencialmente um monólogo. Só indirectamente, pelo seu
conteúdo humano, pelo problema de identidade, que é
universal, é que o poema se poderá também considerar um diálogo
com os outros. A insistência sobre o “eu” e a obsessão
das suas contradições estão dentro do psicologismo tão próprio
dos homens da Presença.» [Bibl.]
Poema a que respeita a ficha de trabalho da página
148 do Guia:
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DESFECHO
Não
tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte).
Fosse
qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado e paciente...
E
lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.
Mas
o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.
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«Pode
sintetizar-se assim o assunto do poema: o “eu” lírico
passa a vida a fugir de Deus e a negá-lo e Deus sempre a
persegui-lo silenciosamente, numa luta inglória para qualquer
das partes.
O assunto desenvolve-se em três
partes lógicas. Na primeira parte (as duas primeiras
estrofes), o poeta afirma que passou toda a vida a negar Deus,
gastando todas as palavras sem conseguir irradiar do seu
caminho essa presença divina, calada, mas impertinente. Na
segunda parte (terceira estrofe), o “eu” lírico aponta a
estratégia utilizada nessa altura contra a incómoda presença
divina: a recusa agressiva e o grito. Na terceira parte (última
estrofe), introduzida pela adversativa “mas”, é-nos dado
um resultado inglório dessa luta: o tempo moeu os gritos
opressivos do poeta, reduzindo-o ao silêncio, restando assim
os dois adversários mudos e malogrados.
Mais
uma vez notamos a tendência de Torga para a estrutura
circular dos poemas: no princípio o poeta já não tinha mais
palavras e, no fim, ficou reduzido ao silêncio,
verificando-se assim um retorno ao começo. Note-se que só o
“eu” lírico é que muda (do grito ao silêncio), já que
Deus permanece sempre a mesma divina presença permanente... e
paciente.
(...)
O diálogo implícito que aqui se trava é entre a imanência
(o poeta como homem) e a transcendência (a divindade). Este
mesmo problema tem ainda maior incidência na poesia de José
Régio, o grande mentor do Movimento Presença. Só que
neste poeta se exprime sobretudo a angústia de não
compreender o mistério insondável da divindade, ao passo que
em Miguel Torga se vê sobretudo a rebeldia em aceitar o Deus
tradicional.
Afinal a rebeldia está no cerne de toda a poesia
de Torga: rebeldia contra si mesmo, contra os outros homens de
letras, contra as tertúlias literárias, contra os políticos,
contra toda uma sociedade que não quadra com o seu espírito
naturalmente rebelde.»
[Bibl.]
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