Eugénio
Lisboa, Poesia
Portuguesa do «Orpheu» ao Neo-Realismo, pp. 28-32.
O
MODERNISMO POR EUGÉNIO LISBOA
Há
no mundo decadente e devastado que a Grande Guerra deixa
atrás de si o livor de um vácuo aspirativo, originador
de vórtices imprevisíveis. Há uma apetência de infância,
de recomeço, sem os valores antigamente prezados,
contra um fundo de cadáveres ainda mal sepultados. Os
profetas são frequentemente apocalípticos. Há um receio
de nos analisarmos, há mesmo uma recusa disso, que o
futurismo inscreve no seu programa que vai rejeitar
sentimentos e complacências e antes apetece a superfície
lisa e brutal da máquina que se divorcia do homem e se
lhe opõe. Quem somos nós, que homem é este capaz do
melhor e do pior ou de coisa nenhuma? Há em nós uma
unidade possível ou sequer desejável? Há ao menos uma
vontade de questionarmos a nossa identidade? Tudo nos
aponta a direcção que nos leva a sermos vários ao mesmo
tempo e ninguém em definitivo. É a época em que o homem
vai aceitar, não a famosa e quase pueril alma dupla de
Goethe ou Baudelaire, mas sim uma multiplicação quase
cancerosa de múltiplas personalidades dentro do mesmo
indivíduo. Ou isso ou o suicídio (ou a loucura, forma
particular dele ou da deserção para dentro de nós próprios).
Muito significativamente, uma das obras de Pirandello
intitula-se Um, nenhum e cem mil, emblema desesperado da
nossa riqueza e confusão. A sinceridade é posta em questão
e a insinceridade proposta como valor fecundo e promotor
de uma assunção de personalidades diversas e todas viáveis.
Além disso, sermos muitos cura-nos do pavor de sermos
um deles e apenas esse. Óscar Wilde, outro falso
superficial, anunciara-o aliás, atirando bombas como quem
faz estalar fogos-de-artifício, pela boca de um dos seus
personagens: «A falta de sinceridade é uma coisa assim
tão terrível? É simplesmente um método que nos permite
multiplicar as nossas personalidades.» Picasso mudará
de pele cem vezes e Proteu vai tornar-se o mito em vigor
de toda uma geração. Os heterónimos de Pessoa (número
modesto, afinal) vão inscrever-se em cheio neste clima de
insinceridade criadora: «Você o que me está
censurando é eu não ser mais gente que uma pessoa só»,
dirá o Banqueiro Anarquista (altar-ego do autor da
Mensagem) ao seu perplexo interlocutor. E é caso para
censura. Ser um - eis o pecado. «Sê plural como o
universo!», entusiasma-se e entusiasma-nos Pessoa em papéis
íntimos que não chegou a publicar. Chega a abeirar-se
de uma esquizofrenia criativa e francamente histérica: «Substitui-te
sempre a ti próprio. Tu não és bastante para ti. (...)
Acontece-te perante ti próprio.» Ou, entrando
desenvoltamente pela paranóia dentro, como quem se
cumpre: «Substitui-te a Deus indecorosamente.,,
(...)
Porque, ao contrário do que se possa pensar, a uma
primeira
abordagem superficial, a multiplicação de personalidades
não significa uma busca insaciável e última de si próprio.
Como tantos outros grandes criadores do seu tempo ou de
semelhantes épocas de crise, Fernando Pessoa toda a vida
finge que se procura mas, para não correr o risco de se
encontrar, continuamente se inventa (ou reinventa). Em
vez de se Inventar outro (o que não chegaria a constituir
solução), inventa-se outros. Uma árvore esconde-se
melhor no meio de outras árvores e tão bem o faz que se
esconde até de si própria: Fernando Pessoa-ele-mesmo não
é menos heterónimo do que os outros que abertamente se
declaram tais. Onde melhor esconder uma identidade que se
não quer ver de caras, do que no meio de outras que também
são ela embora sejam, ao mesmo tempo. outra coisa que não
ela? A obra de Pessoa é, como as melhores, um exercício
tenso e formalmente impecável, de fuga sistemática de
si próprio: «Não sei quem sou, que alma tenho», afirma
nos papéis que não chegou a publicar. E continua: «Quando
falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo.
Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe
(se é esses outros)». E noutro ponto, numa repetitiva, e
significativa obsessão: «Sinto-me múltiplo. Sou como
um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem
para reflexões falsas uma única anterior realidade que
não está em nenhuma e está em todas». É este, quanto
a nós, o verdadeiro cerne do primeiro modernismo: uma
paroxística fuga ao eu, muito mais e muito mais
significativamente do que uma mera fuga ao homem -
desumanização -, como queria Ortega y Gasset. A
ocasional
ou mesmo frequente fuga à forma humana, nas artes plásticas,
não passa de um caso particular de uma fuga muito mais
geral: o homem tem medo de si próprio e multiplica os
processos técnicos de se não encarar de frente. Toda a
arte, mesmo a mais confessional, foi sempre um processo
tortuoso de fuga ao eu e de nos buscarmos, onde pudermos,
plurais. A diferença, no caso do primeiro modernismo, é
que esse processo se torna paroxístico e, nalguns casos,
francamente esquizofrénico. Multiplicando-nos, mentimos
e, mentindo, buscamos uma outra verdade mais vasta e
plural, ao mesmo tempo que sobrevivemos: «O direito à
mentira é a melhor forma de defesa pessoal», disse-o
Almada Negreiros...
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