Pormenor do retrato a óleo de José Estêvão existente na sala de professores.

Escola Secundária José Estêvão
Departamento de Línguas Românicas e Clássicas

PORTUGUÊS

Eugénio Lisboa, Poesia Portuguesa do «Orpheu» ao Neo-Realismo, pp. 28-32.


O MODERNISMO POR EUGÉNIO LISBOA

Há no mundo decadente e devastado que a Grande Guerra deixa atrás de si o livor de um vácuo aspirativo, originador de vórtices imprevisíveis. Há uma apetência de infância, de recomeço, sem os valores antigamente prezados, contra um fundo de cadáveres ainda mal sepultados. Os profetas são frequentemente apocalípticos. Há um re­ceio de nos analisarmos, há mesmo uma recusa disso, que o futurismo inscreve no seu programa que vai rejeitar sentimentos e complacências e antes apetece a superfície lisa e brutal da máquina que se divorcia do homem e se lhe opõe. Quem somos nós, que homem é este capaz do melhor e do pior ou de coisa nenhuma? Há em nós uma unidade possível ou sequer desejável? Há ao menos uma vontade de questionar­mos a nossa identidade? Tudo nos aponta a direcção que nos leva a sermos vários ao mesmo tempo e ninguém em definitivo. É a época em que o homem vai aceitar, não a famosa e quase pueril alma dupla de Goethe ou Baudelaire, mas sim uma multiplicação quase cancerosa de múltiplas personalidades dentro do mesmo indivíduo. Ou isso ou o suicídio (ou a loucura, forma particular dele ou da deserção para dentro de nós próprios). Muito significativamente, uma das obras de Pirandello intitula-se Um, nenhum e cem mil, emblema desesperado da nossa riqueza e confusão. A sinceridade é posta em questão e a insinceridade proposta como valor fecundo e promotor de uma assunção de personalidades diversas e todas viáveis. Além disso, sermos mui­tos cura-nos do pavor de sermos um deles e apenas esse. Óscar Wilde, outro falso superficial, anunciara-o aliás, atirando bombas como quem faz estalar fogos-de-artifício, pela boca de um dos seus perso­nagens: «A falta de sinceridade é uma coisa assim tão terrível? É simplesmente um método que nos permite multiplicar as nossas perso­nalidades.» Picasso mudará de pele cem vezes e Proteu vai tornar-se o mito em vigor de toda uma geração. Os heterónimos de Pessoa (número modesto, afinal) vão inscrever-se em cheio neste clima de in­sinceridade criadora: «Você o que me está censurando é eu não ser mais gente que uma pessoa só», dirá o Banqueiro Anarquista (altar-ego do autor da Mensagem) ao seu perplexo interlocutor. E é caso para censura. Ser um - eis o pecado. «Sê plural como o universo!», entusiasma-se e entusiasma-nos Pessoa em papéis íntimos que não che­gou a publicar. Chega a abeirar-se de uma esquizofrenia criativa e francamente histérica: «Substitui-te sempre a ti próprio. Tu não és bastante para ti. (...) Acontece-te perante ti próprio.» Ou, en­trando desenvoltamente pela paranóia dentro, como quem se cumpre: «Substitui-te a Deus indecorosamente.,,

(...) Porque, ao contrário do que se possa pensar, a uma primeira abordagem superficial, a multiplicação de personalidades não significa uma busca insaciável e última de si próprio. Como tantos outros grandes criadores do seu tempo ou de semelhantes épocas de crise, Fernando Pessoa toda a vida finge que se procura mas, para não correr o risco de se encontrar, continuamente se inventa (ou reinventa). Em vez de se Inventar outro (o que não chegaria a constituir solução), inventa-se outros. Uma árvore esconde-se melhor no meio de outras árvores e tão bem o faz que se esconde até de si própria: Fernando Pessoa-ele-mesmo não é menos heterónimo do que os outros que abertamente se declaram tais. Onde melhor esconder uma identidade que se não quer ver de caras, do que no meio de outras que também são ela embora sejam, ao mesmo tempo. outra coisa que não ela? A obra de Pessoa é, como as melhores, um exercício tenso e formalmente impecável, de fuga sistemática de si próprio: «Não sei quem sou, que alma tenho», afirma nos papéis que não chegou a publicar. E continua: «Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros)». E noutro ponto, numa repetitiva, e significativa obsessão: «Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas». É este, quanto a nós, o verdadeiro cerne do primeiro modernismo: uma paroxística fuga ao eu, muito mais e muito mais significativamente do que uma mera fuga ao homem - desumanização -, como queria Ortega y Gasset. A ocasional ou mesmo frequente fuga à forma humana, nas artes plásticas, não passa de um caso particular de uma fuga muito mais geral: o homem tem medo de si próprio e multiplica os processos técnicos de se não encarar de frente. Toda a arte, mesmo a mais confessional, foi sempre um processo tortuoso de fuga ao eu e de nos buscarmos, onde pudermos, plurais. A diferença, no caso do primeiro modernismo, é que esse processo se torna paroxístico e, nalguns casos, francamente esquizofrénico. Multiplicando-nos, mentimos e, mentindo, buscamos uma outra verdade mais vasta e plural, ao mesmo tempo que sobrevivemos: «O direito à mentira é a melhor forma de defesa pessoal», disse-o Almada Negreiros...

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