Pormenor do retrato a óleo de José Estêvão existente na sala de professores.

Escola Secundária José Estêvão
Departamento de Línguas Românicas e Clássicas

PORTUGUÊS

José Régio, A Moderna Poesia Portuguesa, pp. 86-89.  


O SEGUNDO MODERNISMO 2º JOSÉ RÉGIO

Já tem sido discutida a prioridade do termo; e não a defenderemos nós, se por modernismo se julgar definir suficientemente um muito complexo movimento artístico contemporâneo. Só o aceitaremos à falta de melhor, - e por se ter imposto à conta de vulgarizado. Aceitando-o, entenderemos modernismo por uma vontade, consciente ou obscura, de valorizar certa psique tida por moderna (consequentemente, em arte, a sua expressão voluntariosa ou ingénua) em desfavor duma julgada ultrapassada. Por outras palavras, e talvez mais completamente: Modernismo será a tendência a valorizar o actual e o novo (na expressão como no expresso), em virtude quer dum cansaço das formas e substâncias passadas, esgotadas, quer duma descrença nas tidas por insuperáveis, modelares, eternas. Sob certo ponto de vista, - o modernismo não é coisa nova; como o não foram o roman­tismo ou o realismo. Em todos os tempos houve homens desprendidos do passado por antes votados para aquela parte do presente que se in­clina no futuro. Isto é: em todos os tempos houve modernistas, como houve românticos, realistas, etc., no mais largo ou filosófico sentido das palavras; - e afigura-se-nos muito provável que sempre os haja. O que faz com que em dada época pareça coisa inteiramente nova qualquer destas posições é, primeiro, o exclusivismo ou absolutismo com que em dada época se afirma; depois, a melhor consciência que então de si toma; por fim, a coloração particular que a época lhe empresta.

Ora, indiferente às correntes nacionalistas estudadas no capítulo anterior, uma arte digamos cosmopolita, e mais ou menos contemporânea daquelas começava de se revelar nas tentativas da nova geração. Alguns dos artistas que então se ensaiavam, e depois vieram a criar um nome, sofriam essa torturada ânsia de novidade e libertação que fez da arte moderna uma empresa dramática. A esses, e a alguns que se lhes seguiram e os continuaram, se chamou modernistas. As mais arrojadas concepções estéticas apareciam então lá fora, ou haviam aparecido, - proclamando cada qual por sua vez a descoberta da verdadeira arte actual: o futurismo italiano, o cubismo, o dadaísmo, o ultra-realismo franceses, o expressionismo alemão e todas as correntes mais ou menos derivadas ou apenas - lançavam então no ar o fogo dos seus manifestos estridentes, rangentes, intolerantes: fogo que algumas vezes ameaçava apagar-se com uma facilidade proporcional à com que esfuziara. Em tais manifestações se misturava o espirito de blague e sarcasmo com a seriedade consciente ou involuntária. Não se via, talvez, aparecerem as obras-primas de arte que, devidas embora ao génio individual, para sempre ilustram uma escola, uma corrente, uma época; mas vincava-se uma atitude de inconformismo e aventura, procura e audácia, decerto favorável à criação libérrima: o romantismo erguia a sua nota mais aguda - atingia as suas extremas consequências. As próprias manifestações estéticas dos povos primitivos, das crianças, até dos moradores dos manicómios e cadeias, eram estudadas, pelo menos coleccionadas, com um interesse inquietante e sôfrego: nelas se pretenderia sugar uma arte inédita, mais sintética e, pensava-se, mais pura; isto é, mais nua de todos e quaisquer preconceitos e convenções de origem mais ou menos academicista. Simultaneamente, o cabotinismo, a superficialidade e a moda rebuscavam tudo cuja antiguidade, cujo esquecimento, cujo desconhe­cimento ou cujo exotismo pudessem sugerir, ou simular, o ineditismo duma criação nova.

Eis, a muito largos traços, o estado de espírito e as circunstâncias que então começavam de se reflectir também na poesia portuguesa. De 191O em diante, são cada vez mais sensíveis entre nós os ecos de todas essas correntes estrangeiras. Mas nem só ecos de movimentos estranhos encontraremos em revistas como Orpheu, Portugal Fu­turista, Contemporânea, Athena, e, mais tarde, já com propósitos de critica que bastariam a denunciar o seu aparecimento posterior, Presença: a verdade é que nestas e outras publicações se manifesta ser o chamado modernismo um largo movimento geral, internacional, uma profunda e complexa disposição da sensibilidade moderna, que naturalissimamente também em Portugal achava representantes e expressão. Procurando as características essenciais e comuns a este modernismo português, achá-las-íamos, talvez, nestas duas tendências antagónicas: tendência do artista para se abandonar o mais inteira e candidamente possível ao seu próprio instinto criador e individual - à sua inspiração. Tendência do artista para conceber completamente a arte que vai realizar. Assim teremos uma arte toda intuitiva, di­recta ou indirectamente filiável em Bergson, a par, ou misturada, com uma arte toda intelectualista, ansiosa de construção, equilíbrio, norma. Estas mesmas duas tendências, e até a sua aberração, as encontraremos nos dois maiores poetas do modernismo português - Má­rio de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa.

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