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II
Carlos pedira à mãe para
andarem no “Vouguinha”, como carinhosamente as gentes da terra
chamam ao comboio regional da Linha do Vouga. Tinha ouvido nas
notícias que se comemorava, em 2008, os cem anos de existência
daquela linha e, por isso, tinha ficado com curiosidade. A mãe,
inicialmente, estranhou. Sabia que o Carlos gostava de comboios,
pois já tinham feito vários percursos ferroviários e ele nunca
mais se esquecera dos contornos do Douro até ao Pocinho, nem da
Linha do Tua, com todas aquelas escarpas enormes em direcção ao
rio. Contudo, durante praticamente todo o mês de Agosto não largou
o raio do computador, sempre metido no messenger ou a
jogar. Foi mesmo desgastante convencê-lo a sair de casa, para ir à
praia da Barra, passear pelos palheiros da Costa Nova, comer uma
tripa com ovos moles no “Zé da Tripa”, dar um passeio de moliceiro
pela ria ou ir até S. Jacinto de ferry-boat. Todo o Verão
tinha sido um massacre para o tirar da frente do ecrã do maldito
computador. Esteve quase a desafiá-lo para uma caminhada pela
Reserva Natural das Dunas de S. Jacinto, para poderem ver, entre
outros animais, as cegonhas-brancas, os patos-reais, os
ouriços-cacheiros, enfim, o que conseguissem observar ao longo do
percurso arenoso e ornado com as nevadas camarinheiras. Todavia,
recuou. Se se enfadava com um simples passeio até ao mar, nem
valia a pena falar-lhe na Reserva. Mas tudo bem, não ia deixar que
se apagasse aquele relampejo de acção que o filho estava a ter.
Havia que aproveitar a ocasião e delinear um dia perfeito.
O despertador haveria de tocar
exactamente às 7:15, tal como Carlos o havia programado. Tinha
tentado, em vão, negociar com a mãe uma hora mais razoável, mas
não tinha tido sucesso.
– Às 7:00 quero-te de pé,
ouviste? – desferiu a mãe, implacável.
Assim, adiantara,
propositadamente, quinze minutos para poder ficar na sorna mais um
bocado. Depois, compensava com a agilidade em se vestir,
despachando o pequeno-almoço e desleixando a lavagem dos dentes.
Com esforço, Carlos desvia o
lençol da frente da cara e resmunga:
– Ora esta, mas será que o raio
do garnisé não se cala com a cantoria? Mas que chatice!
Nessa altura, aproveitando o
esforço que fizera para levantar a cabeça, decide rodá-la para
indagar as horas, a fim de saborear mais umas horinhas de sono.
–
Sete e... meia? Caraças! Como é
que eu adormeci? Estou tramado!
Ainda mal feito do choque, mas
tentando reagir, mais por instinto do que com sentido, ouve,
petrificado, a voz esganiçada da mãe:
– Carlos, já estás despachado?
Carlosss! Já é a terceira vez que te chamo.
– Ah! Sim, mãe, só me falta
lavar os dentes – balbuciou, tentando demonstrar uma firmeza na
voz que não tinha na decisão.
– Olha, traz a tua mochila que
está no sofá da sala e vem ter comigo à garagem. Hoje, se for
possível! – atirou a mãe a seco.
Carlos lá se desembaraçou como
pôde, à custa de um notório descuidado.
– Olha-me para esse cabelo,
pareces um “rasto”.
– Não, mãe, um “rasta”.
– Vês, até tu o admites. Ai,
não sei o que faça contigo! Bem, o melhor é irmos embora, senão
ainda perdemos o suburbano para o Porto.
A senhora Matilde estava
furibunda. Aquele rapaz cada vez mais parecia andar lerdo,
despardalado. Bem lhe parecia que todas aquelas horas em frente ao
computador lhe haviam feito algum mal.
– Olha-me para essa remela,
Carlos! Ai, desgraçado, tu não me lavaste essa cara, pois não? –
proferiu de olhos arregalados.
– Não, mãe, eu lavei a cara.
Deve ser do computador, faz-me lacrimejar às vezes.
– Eu já te disse para me
largares a porcaria do computador – terminou a senhora Matilde, em
jeito de desabafo.
Carlos, por esta altura,
evitando que a mãe o inspeccionasse, como é hábito nas mães, ainda
pensava no que lhe tinha acontecido. Só havia uma explicação, caso
não acreditemos em fantasmas, que era ele ter-se enganado ao
acertar as horas do despertador.
– Mas que parvo que eu sou!
– Olha, ainda bem que o
reconheces, porque eu cá tenho de ter uma paciência fenomenal para
contigo.
Pois estava claro,
preocupara-se tanto em marcar mais quinze minutos que nem sequer
deu atenção às horas. Lá tinha ficado marcado 8:15. Um pensamento
caiu-lhe como um relâmpago: “O pai chegou do trabalho às 6:00 e, a
esta hora, está a dormir profundamente. Vai-me matar!”
– Acho que estou perdido, mãe!
– Ora, fico contente por saber
que, ao menos, tens essa consciência. Eu bem digo, esse computador
anda-te a pôr azoratado, rapaz – afirmou a senhora Matilde,
lançando pequenos estalidos com a língua no céu-da-boca.
Tentando pôr de lado aqueles
pensamentos sombrios, encaminhou-se com a mãe para a estação de
Aveiro. Haviam deixado o carro no antigo mercado abastecedor e,
como tal, entraram na estação pela parte nova. O edifício mais
antigo estava agora fechado, mas conservava, ainda, toda a sua
imponência artística, sobressaindo nele os magníficos painéis de
azulejos a retratar as vivências de Aveiro.
“Vai sair da linha número três
o comboio suburbano com destino ao Porto São Bento. Atenção à sua
partida.”
Matilde estugou o passo, com os
bilhetes a balançar na ponta dos dedos. Carlos, cada vez mais
contrafeito, arrastava-se atrás. Por fim, entraram na carruagem
que se lhes mostrou mais próxima e, num baque, atiraram-se,
literalmente, para cima dos assentos.
– Irra, foi por pouco! –
silabou a mãe, tentando respirar por entre as palavras.
Um apito soou e o comboio
amarelo começou a andar em direcção ao destino pretendido,
Espinho.
Como facilmente poderão
adivinhar, o Carlos, nem sequer ainda tinham passado Esgueira, já
estava a dormir, com a cabeça encostada ao plástico do
revestimento da carruagem. De modo que, não se incomodou com o
cheiro pestilento da celulose de Cacia, nem com os odores químicos
de Estarreja. Viu-se-lhe um ligeiro remexer de lábios, para
engolir a saliva acumulada, ao passarem por Avanca, sob o olfacto
a Nestum. Descerrou os olhos já em Cortegaça, depois de ter dado
uma valente cacetada com a cabeça no vidro da janela. Sonâmbulo,
deixou-se ficar a olhar para os veraneantes madrugadores, que,
atléticos, se entretinham a enterrar os paus dos pára-ventos na
areia húmida da manhã. Passada Esmoriz, num instante alcançaram
Espinho. A estação aqui também cheira a novo. A linha, em todo o
perímetro citadino, foi enterrada, pelo que a estação é
subterrânea.
Mais uma vez, havia que
apressar o passo, pois a partida do “Vouguinha” estava definida
para as 9:26.
Estado actual
da Estação da Linha do Vouga, em Espinho. |
Era, por isso, necessário fazer
à volta de 300 metros até à desprezada estação da Linha do
Vouga, onde iniciariam
a nossa centenária viagem em via estreita, dividida em duas fases:
a primeira, levá-los-ia de Espinho até Sernada do Vouga; a
segunda, de Sernada do Vouga até Aveiro. No total, empreenderiam
seis horas de viagem, embora houvesse duas horas de paragem
obrigatória em Sernada. |
|
À hora marcada, o comboio
vermelho, adornado por inúmeros grafitis, fez a sua
aparição, vindo de Leste. Mais uns minutos, e a máquina a
diesel começaria a acelerar, depois de uns estridentes apitos,
para apressar algum distraído ou para levar a apagar o cigarro,
inconsolavelmente deixado a meio ainda.
À medida que a brisa do mar
ficava na retaguarda, também o amontoado de habitações ia dando
lugar a algumas árvores, cada vez em maior número. A linha era
extremamente estreita, ladeada por, essencialmente, eucaliptos.
Nos bordos da linha, crescia uma vegetação mais rasteira,
sobressaindo as resistentes silvas. As passagens-de-nível eram
muitas, por isso, ouvia-se, constantemente, a buzina ecoar, a
avisar os condutores ou peões de que ali vinha o comboio, até
porque a maioria das passagens não dispõe de guarda. Havia casas
mesmo encostadas à linha, ou quintais que a ela se vinham
encostar, lastimando a sua inércia e invejando aquele trovão
fumegante. Noutras alturas, era o fumo negro da caldeira e as
faíscas a saltarem da chaminé; agora é o fumo gorduroso da
carburação. Semeadas pela paisagem, havia capelas, casas
apalaçadas, animais a pastorear, alfaias agrícolas a laborar,
pessoas nos seus afazeres.
Ao longo do trajecto,
encontram-se as várias estações de comboios, bastante pitorescas,
com as cantarias, normalmente, em pedra e as paredes pintadas de
branco. Destacavam-se, ainda, os telheiros em madeira, encimados
por telha lusa. Nalguns, podiam-se observar coloridos canteiros.
Mas, como não há bela sem senão, nem todos estes edifícios de
traça única estavam devidamente cuidados, sobretudo aqueles que
fecharam as portas, quando as têm ou enquanto as têm. Situação
sui generis foi encontrada em Ul, em que a estação há algum
tempo que foi transformada em complexo turístico, “Refúgio d’ el
Rei”, o que condiz com o local, bastante sossegado.
Entre Oliveira de Azeméis e
Sernada, algo caricato acontece, o que vem comprovar a
singularidade desta via. O guarda-freios, munido de uma manivela,
sempre que o comboio se está a aproximar de uma estrada e abranda,
salta da locomotiva para ir, apressadamente, fechar as cancelas.
Com estas já cerradas, o comboio passa e pára mais à frente, à
espera que o desenvolto manobrador levante as cancelas, de forma a
permitir que os automóveis passem. O próprio Carlos, a determinado
momento, também já saía do comboio para auxiliar o guarda-freios,
correndo, de seguida, para a última carruagem. Noutros tempos,
quando ainda existia a linha para Viseu, estas passagens de nível
tinham guardas, que desapareceram com o esboroar da via.
Nas proximidades de Sernada, a
paisagem enfeitiça os viajantes. Os contornos dos montes, as
curvas e contra-curvas, são mais evidentes, com ligeiras subidas e
descidas. Quando os montes se empinam, o comboio aninha num
esforço de superação; alcançado um socalco recto, resfolega com
sofreguidão. Antigamente, podia-se pôr a cabeça de fora e sentir o
ar a bater nas bentas, como por aqui se diz, bem como a seguir os
curvilíneos carris. Mas a segurança dos passageiros é prioritária,
por isso não convém expor ao vento as frontes, não se vá apanhar
com um frondoso ramo no meio do nariz. Não menos digno de registo,
era o rio Vouga, a acenar, incansavelmente, os viajantes. O vasto
eucaliptal da serra da Gralheira impõe-se às vistas ávidas dos
forasteiros. Noutras alturas, as mesmas vistas não salvaram a
serra dos lastimáveis fogos. O Homem, por aquelas bandas, tem
pouca presença. Ainda bem!
Por volta do meio-dia, o
“Vouguinha” estancou na estação de Sernada do Vouga. À volta,
algumas casas, salpicando os declives de vermelho. Perto, só mesmo
a estação, com o seu típico café, onde se percebia um linguajar de
emigrantes, a passar férias na terra.
Sernada do Vouga já foi, em
tempo idos, uma importante estação ferroviária, uma vez que era a
partir dela que se fazia a ligação à linha que seguia para Viseu.
Com a desactivação desta via, a localidade perdeu importância e
esmoreceu.
Carlos não adormecera durante
toda a viagem. Em Aveiro, tinha-se arrependido mil vezes de ter
incentivado a mãe para fazer aquela, pensava, enfadonha viagem.
Todavia, aquele sono retemperador na Linha do Norte, ou se calhar
a bordoada na janela do suburbano, havia-lhe dado um outro ânimo.
A mãe, também, via-se, estava a apreciar de que maneira o passeio.
Durante toda a viagem, não se cansou de lhe contar histórias dos
seus tempos de meninice, quando também andou por aqueles lados, em
Cabanões, em casa dos padrinhos. Muitas foram as aventuras no rio,
com as bateiras de um lado para o outro, num constante rebuliço de
garotada despreocupada. Por isso, mesmo que quisesse, Carlos não
conseguiria dormir, nem poderia. Tinha dado a ideia, por isso
devia respeitar a atenção, o carinho com que a mãe abraçou a
proposta e se esmerou, praticamente sozinha, por organizar. Também
sabia que a mãe, naquele Verão, estava sozinha. Bem, tinha-o a ele
em casa, de férias, mas a verdade era que ele lhe tinha dado pouca
atenção. O pai, coitado, trabalhava de turnos numa fábrica de
cerâmica e, para mais, só poderia pôr férias em Novembro. Por essa
altura, já ele estaria de novo na escola e a mãe a aturar a patroa
no supermercado. Caramba, tinha sido bastante egoísta! E foi,
ainda por cima, a irritante da Micaela que lhe fez ver esta
situação tão óbvia, quando lhe disse que ele só tinha amor
próprio. No primeiro instante, não ligou muito. As miúdas não
correspondidas costumam lançar destas balelas, mas depois começou
a matutar naquilo e a aperceber-se de que, afinal, havia algo na
Micaela que lhe preenchia o pensamento: aquela mania de andar
sempre a dizer “ya” e, pois claro, a frontalidade. Havia que mudar
o rumo das coisas. Desta maneira, enquanto os amigos se banhavam
no Quebra-Mar, ele teve a ideia de propor aquela viagem à mãe. Até
ao final das férias, haveria de a compensar, mostrando-se mais
presente e ajudando-a a ser feliz. Assim, nesta reconciliação
altruísta, também ele se sentiria mais completo.
– Carlinhos, queres um “compal”
ou um “ice-tea”? – perguntou a mãe, alegremente.
A mãe estava mesmo contente.
Parecia que tinha feito um tratamento de rejuvenescimento à alma.
Era bom, vê-la assim, a tratá-lo por “Carlinhos”, embora isso
fosse motivo de chacota se algum dos seus amigos ouvisse tal
baboseira. Já tinha quinze anos, mas a mãe via-o sempre como o seu
menino. Diga-se, de passagem, que em Ílhavo se é sempre menino ou
menina. Vai uma freguesa ao mercado comprar hortaliça e a
vendedora trata-a logo por “Eh, menina!”; está alguém a desenrolar
o fio à meada da conversa sobre beltrano e sicrano e é ver as
vezes sem conta em que é proferida a palavra “menina”: “Ai,
menina, então tu não sabes que a galdéria da filha da minha
vizinha só apareceu em casa às duas da madrugada? Olha, menina, eu
não sei que educação é aquela. Pois não queiras saber, mas a
rapariga é cá uma atolambada de primeira ordem. É bem feito,
menina, que a mãe é uma ‘maniácola’. Eh, ‘chopa, escusas de ficar
assim apalermada, porque as verdades são para se contar. Ah, eu cá
sou assim, filha!”
Depois de almoçarem as sandes
que a mãe havia preparado, foram dar uma volta pela aldeia.
Pararam junto do fontenário, adornado com dois belos painéis de
azulejos. De um lado a representação da ponte, do outro o comboio
a vapor. Depois, seguiram em frente, mais uns 50 metros, e viraram
à direita, em direcção à escola primária, hoje do 1.º ciclo. A rua
era extremamente íngreme, mas nenhum dos dois se queixou. No final
da mesma, ironizaram com a placa que viram, “Açôres 2 km”. Ora
muito tinham andado, para mais com poderes só ao alcance do
Messias, que se diz que terá caminhado sobre as águas. Ali,
caminhava-se pela serra, o que não será, parece-me, menos difícil
e, em recompensa do esforço, no alto da montanha, a capela de
Santo Amaro, tal Leonardo de São Galafura, com uma vista
panorâmica soberba. Muda-se o rio e o serpenteado, mas não diminui
a obra do divino. Ao longe, via-se o rio Vouga, com alguns
banhistas e pescadores. Também se vislumbrava nitidamente a ponte
rodo-ferroviária que atravessa o rio, com os seus altivos arcos de
pedra. Deve-se acrescentar, para os menos familiarizados com as
atribuições dos santos, que Santo Amaro é o padroeiro dos
ferroviários. No final, porque estava muito calor, refastelaram-se
no café da estação com um corneto, ele de chocolate, ela de
morango.
Às 14:10 o “Vouguinha” arrancou
com destino a Águeda. Para trás, ia ficando a estação de Sernada,
adormecida pelo calor soturno de Agosto. Com ela, amadornam também
vários comboios que viram o seu tempo chegar ao fim. Para ali os
enxotaram, como rafeiros desprezíveis, votados às artes do
grafiti duvidoso. Nesta espécie de canil de latidos
amordaçados, espera-se o abate.
Logo na primeira estação a
seguir a Sernada, Macinhata do Vouga, que bela surpresa teve
Carlos. O antigo comboio a vapor encontrava-se preservado e em
exposição, podendo-se ainda observar os carris paralelos a um
metro de distância. Pena que o “Vouguinha” não tivesse parado ali
o tempo suficiente para explorar aquela máquina digna dos tempos
do faroeste.
Embalados pelo ondular da
carruagem, mãe e filho dormitavam, deixando-se levar ao sabor da
cadência do comboio. Por vezes, quando as pálpebras estavam quase
a cerrar-se, eis que um apito projectava um ligeiro salto no
banco, com um novo ajuste do corpo às espaldas.
Eram 14:40. O comboio chegava,
indolente, à movimentada estação de Águeda. Minutos depois, nova
partida, agora com destino a Aveiro. Na paisagem, muitas árvores
de fruto, pinheiros, eucaliptos, salgueiros; terras de milho,
minifúndios, pastagens; o serpentinado das casas de habitação;
duas crias de cegonha no alto de uma chaminé fabril, que deixou de
laborar há muito. Cada vez mais casas, estradas, ruas, ruelas,
caminhos. Finalmente, Aveiro. Um derradeiro apito.
“Deu entrada na linha número 5
o comboio regional da Linha do Vouga procedente de Águeda. Termina
aqui a sua viagem.”
– Uf! Estou de rastos, mas acho
que valeu a pena, não achas Carlos? – perguntou a mãe, arrastando
as palavras.
– Sim, foi porreiro – respondeu
o Carlos, um pouco alienado.
Sim, tinha gostado da viagem
pela centenária Linha do Vale do Vouga. Continuava a preferir as
paisagens durienses, mas descobriu, naquela jornada, pequenos
mimos que jamais iria esquecer. De todos esses mimos, destacava-se
uma revigorada cumplicidade entre mãe e filho, pelas histórias,
pelos apartes, pelas despreocupadas conversas que se tiveram.
– Bem, mãe, amanhã, qual é o
programa – atirou o Carlos, para lhe testar a resistência.
– Amanhã? Deixa cá ver,
podíamos pensar em algo que envolvesse água, baldes, pás,
areia,...
– Boa, vamos curtir uma prainha?
– respondeu prontamente.
– Não, vais-me ajudar a limpar
a casa, que quero, antes de começar a trabalhar, deixar tudo
impecável.
– Ui, mãe, agora é que me
lembrei que já tinha combinado com...
– Olha, que engraçado, o teu
pai deixou-me aqui uma mensagem no telemóvel por causa de um
despertador que começou a apitar... Parece que está furioso
contigo...
– Mãe, eu aspiro – assegurou,
completamente vencido.
Nesta viagem,
o bilhete foi só de ida. A volta acontecerá naturalmente, sem
despertador.
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