Trilhos de Ferro em Leitos de Sedução

A Linha do Vale do Vouga

I

Seria, certamente, um rei agastado aquele que no dia 23 de Novembro de 1908 acenou às varinas, de canastras à cabeça, do cimo do laudau real, na marulheira localidade de Espinho.

O cansaço da longa viagem, desde a capital até às margens do Douro, já se tinha desvanecido, para o qual muito tinham contribuído os retemperadores passeios diletantes pelos jardins românticos da Macieirinha, embora, em abono da verdade se deva acrescentar que, no momento preciso da chegada, toda aquela cerimónia a que haveria de presidir, o rígido protocolo real e os ares nortenhos lhe tivessem parecido algo enfadonhos, quiçá mortificantes.

Há cinco dias que tinha chegado à cidade do Porto, com poiso escolhido na Rua dos Quartéis, onde desentorpeceu o corpo dorido do constante balancear da carruagem da locomotiva, uma Henschel & Sohn potentíssima, a convite do duque do Porto, irmão do rei D. Carlos. Mais tarde, haveria de rumar, então, até à Quinta da Macieirinha, para se espreguiçar na casa de campo que fora do ilustre Carlos Alberto de Sabóia.

Um dos momentos altos, para impressionar os forasteiros da modernidade da Invicta, tinha sido a excitada travessia da imponente e robusta ponte Maria Pia, nome da sua zelosa avó, Dona Maria Pia de Sabóia, filha do rei Victor Emanuel II, e a quem, diga-se, se aplicam os mesmos adjectivos usados para a Maria Pia de ferro.

Apesar das mordomias a que estava habituado, sua alteza não era diferente de qualquer outro dos comuns mortais; por isso, também sentira as mesmas dores nos costados e a mesma indisposição. Não se sabe, contudo, se a dita indisposição que lhe revolvera as entranhas reais se devia ao balanço insensível do vagão da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses ou aos excessos de ruralidade de um Portugal distante, acordado por um comboio que, insistentemente, lhe lembrava, pelo retinido do apito e pela cauda da fumaça, que o desenvolvimento havia chegado, mesmo que ele, o camponês rústico, se limitasse a levantar, levemente, a cabeça e a olhar, embasbacado, suspenso de enxada nas mãos, para aquela máquina escura e infernal. Depois, lembrando-se da sua pequenez, haveria, calmamente, de levar o lenço amarelado à testa molhada, estendendo o momento de descanso ou de pensamento, antes de desferir mais uma pequena quantidade de cuspo sobre a mão direita, esfregando-a, de seguida, sobre a esquerda, para que o cabo rugoso não limasse, ainda mais, as mãos gretadas da pobreza. Neste hiato de vanguarda, o homem sonhava, também ele, a dar o salto para a fartura de outras terras, que lhe abonassem uma mesa farta e uma criançada feliz. Primeiro, haveria de vir a cidade, com as suas fábricas e serviços; depois, quem sabe, o desejado Brasil. Mas o comboio passava e com ele a ilusão. Ficava o fumo escuro a menear-se no ar e o cheiro do carvão, a irritar os olhos alagadiços daquela mescla de suor e lágrimas.


  El-Rei D.Manuel II

Para D. Manuel, a paisagem, em boa verdade, era órfã de eléctricos a tilintarem nos carris, das carruagens de trote vivo e dos passeantes da Baixa lisboeta, com os seus cafés a regurgitarem de clientes ao fim da tarde. Também não havia semelhanças com as coutadas de Vila Viçosa, nem com o luxuriante Palácio da Pena, na romântica serra de Sintra, nem, já agora, com o próprio palácio da Ajuda. No olhar que se espelhava na janela embaciada, por momentos cruzado com o do camponês, vislumbrava-se, mais, uma grande incerteza quanto ao futuro de Portugal.

Notava-se outra cor no rei, outros ares, comentavam os camareiros reais, mas a sua juventude, de vigorosas 18 primaveras, não deixava encobrir a tristeza que o havia tomado.

Ao lado de Dona Amélia de Orleães, sua mãe, D. Manuel II esforçava-se por corresponder a uma população desejosa de o ver a ele e à rainha, no fundo, ao séquito real. A curiosidade era enorme, uma vez que aquelas gentes nunca tinham visto tamanho aparato, mais ainda depois do que acontecera no Terreiro do Paço, em Lisboa. Assim, por entre rumores que davam o rei como desfigurado, o vulgo acotovelava-se para chegar o mais próximo possível da comitiva. Os que conseguiam, à força de músculos e impropérios, lá se pasmavam perante a riqueza das roupagens e, se calhar desiludidos, a imaculada face pueril do jovem monarca. Afinal, o filho mais novo de D. Carlos apenas tinha trazido, em meses anteriores, um braço ao peito.

Era bem verdade, para D. Manuel II, que essa tarde fatídica de 1 de Fevereiro de 1908 tinha de ser ultrapassada, mas a imagem do rei D. Carlos I, seu pai, e do príncipe herdeiro Luís Filipe, seu irmão, a serem assassinados em pleno Terreiro do Paço não se lhe desprendia do pensamento. Agora ali, rodeado, à distância, por aquela população maioritariamente campesina, via-se, também ele, a ser alvo de um atentado, talvez por parte de um elemento infiltrado da Carbonária. Mas que receios eram esses, que medos poderiam advir de uma população que lhe dirigia urras de alegria, que temores de um povo que queria, sobretudo, melhores condições de vida, de forma a suavizar a pobreza generalizada?

Placa evocativa da inauguração do Vouguinha (23/11/1983) - Clicar para ampliar.

Na verdade, ele estava ali para isso mesmo, para inaugurar o primeiro troço da linha do Vale do Vouga. Por isso, a população estava radiante. Era dia de festa pela presença de sua alteza, mas essencialmente porque as gentes que habitavam as terras férteis do Vouga, e seus afluentes, poderiam muito mais facilmente se deslocar das suas aldeias isoladas para os centros mais desenvolvidos, aproveitando, assim, para comercializar o que a terra lhes oferecia em troca do suor com que o camponês humedecia os seus torrões.

Do cimo de um estrado, o que restava da família real tomou os seus lugares.

– É com especial aprazimento que venho aqui hoje, dia 23 do gracioso mês de Novembro, deste nosso pesaroso ano de 1908, inaugurar a linha do Vale do Vouga, prometendo, desde já, que a este primeiro troço, desde esta mui nobre localidade de Espinho, que muito prezo, e a não menos altiva Oliveira de Azeméis, se hão-de seguir outros, por forma a esta chegar a Aveiro o mais rápido possível. O rei não se esquece das suas gentes e o seu serviço é o bem público – disse o monarca, pouco expressivo.

Logo se seguiu um enorme júbilo por parte dos presentes.

– Viva o rei! Viva a rainha! Viva Portugal!

O povo não sabia, como hoje ainda não sabe, mas isto de inaugurar é uma coisa e entrar em funcionamento é outra. Portanto, não tiveram outro remédio senão esperar pelo dia 21 de Dezembro para apreciar o desempenho da magnífica máquina a vapor. Enfim, já vêm de longe estas práticas!

O rei, parece, veio a gostar particularmente daquelas terras beirãs. Quem diria!? Comentava-se, pelos lavradios, os fogosos encontros amorosos entre D. Manuel II e uma esbelta bailarina de cabaré francesa, no majestoso Hotel do Buçaco. Encomendado pelo seu pai, o rei D. Carlos I, e executado pelo reputado arquitecto italiano Luigi Manini, cenógrafo do Teatro Nacional de S. Carlos, foi, inicialmente, um pavilhão de caça, construído entre 1888 e 1907. Só em 1909 foi transformado em hotel, com toda uma ala para a família real, o que era aproveitado, e de que maneira, por D. Manuel II.

Aspecto do palácio do Buçaco em 1922. Foto de Lívio Salgueiro. - Clicar para ampliar.

Aspecto do palácio

do Buçaco em 1922.

Foto de Lívio Salgueiro.

Neste ex libris de arte neomanuelina, mais precisamente na luxuriante ala, denominada “Vila dos Brasões” ou “Aposentos do Pavilhão”, o rei mantinha escaldantes encontros amorosos, típicos de uma monarquia europeia em decadência.

A bordo do “Vouguinha”, assim carinhosamente baptizado o comboio da Linha do Vouga, não se sabia pronunciar bem o nome daquela cortesã, mas os folhetins achincalhantes dos republicanos não deixavam dúvidas: «Caros concidadãos, enquanto o português trabalhador se mata para ganhar o seu mísero sustento, o rei rebola-se, satisfeito, nos lençóis conspurcados pela mancebia em que se envolveu com essa duvidosa bailarina francesa, Gaby Deslys. Enquanto a Monarquia se afocinha no chiqueiro do deboche, o povo trabalhador luta, todos os dias, de sol a sol, por um naco de pão bolorento e um bocado de toucinho rançoso. Abaixo a Monarquia! Viva a República!»

D. Manuel II haveria de voltar, ainda em festa, uma última vez àquele paraíso verdejante. No dia 27 de Setembro de 1910, presidiria ali às comemorações dos cem anos da famosa batalha do Bussaco, ou Buçaco, como se apraz escrever hoje.

No dia 8 de Setembro de 1911, concluir-se-ia o último troço da almejada linha do Vale do Vouga, entre Albergaria-a-Velha, Sernada, Águeda e, finalmente, Aveiro. Houve festança da rija, com direito a um pezinho de dança, aproveitando os rapazolas para cortejar as moçoilas descomprometidas. Naquele dia, folgou-se das lavras e as gentes de Águeda acorreram em grande número à cidade de Aveiro, mais ainda porque a viagem era de borla. Vestidos a rigor com os trajes domingueiros, lá iam cantarolando as suas glosas, habituados que estavam a estas cantilenas que ajudavam a suportar o duro trabalho da jorna. No braço direito ou em cima de uma rodilha, não faltava a giga com o farnel para a janta, que por estas bandas significava almoço. Aliás, não se saía de casa de manhã sem comer um bom prato de sopa ou umas sopas de “cavalo cansado”, para dar rijeza ao corpo e fortalecer os músculos, bem precisos para dirigir o arado puxado por bois encorpados.

Por esta altura, D. Manuel II, a mãe e a avó, a velha rainha Maria Pia, já haviam partido para o exílio, a bordo do iate real Amélia, primeiramente para Gibraltar, de onde seguiriam para Inglaterra.

D. Manuel foi o 36.º e último rei português, após ter sido deposto em Outubro de 1910, com a revolução perpetrada pelo movimento republicano.

Mais de 100 anos volvidos e de quase 99 anos de República, como está esta linha, que viu desboroar-se uma monarquia gasta e incapaz, para ver emergir uma república promissora, mas nem por isso competente? Ontem e hoje, afinal, estão muito próximos de nós.

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