A poesia bebe a essência no cânone musical
«Chama-se cânone à forma polifónica em que as vozes imitam a linha
melódica cantada por uma primeira voz, entrando cada voz, uma após a
outra; uma retomando o que a outra acabou de dizer, enquanto a primeira
continua o seu caminho: é uma espécie de corrida onde a segunda jamais
alcança a primeira. A palavra cânone vem do grego “kanon”, uma espécie
de vara de medir, nas línguas românicas.
A polifonia é uma técnica compositiva que produz uma textura sonora
específica, em que duas ou mais vozes se desenvolvem preservando um
caráter melódico e contraste privado, contrariamente à monofonia, à
monodia, aos acordes, onde só uma voz existe ou, se há outras, seguem a
principal, em uníssono, ou à distância de oitava(s), ou apenas tecem
floreios em torno da principal».
Sustento este conceito inicial nos estudos do crítico americano
Harold Bloom (1930-2019), que desenvolveu esta tendência ocidental,
entre novecentos autores considerados canónicos, sendo mulheres apenas
uma centena de autoras de livros célebres, quer em prosa quer em verso(1).
A seleção do cânone é um ato e um instrumento político que reflete
o modo de ser, de pensar e de agir da sociedade que o elegeu.
Na literatura, cânone é um conjunto de obras também conhecidas como
clássicas, como património cultural da humanidade. A noção de cânone
existe desde os gregos, mas legalmente teve início em meados do século
XVIII.
Para uma obra literária fazer parte daquele seleto grupo, ela deve
apresentar alguns fatores excecionais. Esta noção de poesia defendeu-a
Eduardo Prado Coelho (1944-2007), no JL. No seu conceito havia dois
tipos de poetas em Portugal: os canonizáveis pela imprensa e os
marginais. Estes eram meros rimadores de frases feitas. Aqueles eram ele
e académicos. Os primeiros eram abomináveis, os segundos eram únicos,
intocáveis, ganhadores de prémios.
A coleção de dez volumes da antologia «Poetas de Sempre», saídos
entre 2000 e 2009, surgiu por causa dessa convicção ditatorial. Foram
compendiados 275 poetas, mais mulheres do que homens, tendo alguns sido
repescados, em 2011, na «Antologia da Memória Poética da Guerra
Colonial», das Edições Afrontamento, pela sensibilidade de Margarida
Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi, sendo ela doutorada em Literatura e
Cultura Portuguesa e docente da Universidade de Coimbra.
Ocorre-me trazer este tema ao debate poético, depois da leitura de
um livro curioso que teria sido mencionado quer na coleção Poetas de
Sempre, quer nesta Antologia da Memória Poética, se a docente
universitária tivesse dele conhecimento. Este livro que foi escrito em
vida, mas se encontrava ainda em fase de organização quando a Autora
faleceu, chama-se PEDAÇOS DE VIDA.
«É uma antologia de poemas de uma autora que teve a poesia como
área preferencial do seu ensino e também como discente; não começou
muito cedo a escrever, nunca chegou a publicar e ter-se-á perdido uma
boa parte da sua produção poética. (…)»
Quem exara esta explicação foi testemunha durante muitos anos e a
tempo inteiro: o Coronel Ribeiro Soares, seu companheiro de vida.
***
Tive a sorte de conhecer o casal numa viagem a Trás-os-Montes, mais
concretamente a Covelães, freguesia do concelho de Montalegre.
Sendo ele oficial superior de Artilharia, conhecemo-nos através de
pesquisas no âmbito da imprensa militar, que ambos desenvolvemos e
também para os três volumes do «Dicionário dos Mais Ilustres
Transmontanos e Alto Durienses», tendo a sua colaboração sido muito
valiosa.
Como nasceu em Angola e prestei lá serviço militar (1965/67) como
alferes miliciano, acabámos por manter assídua e frutuosa colaboração
que aqui agradeço.
Foi nessa qualidade de Homem, com uma cultura geral vastíssima, que
lhe pude servir de cicerone às Terras onde nasci. Essa viagem turística
permitiu-me conhecer esta Grande Senhora que foi companheira admirável
deste grande Cidadão da Lusofonia com quem muito aprendi.
Há cerca de um ano recebi um amável convite para escrever um
prefácio para um livro de poemas. Era para mim uma enorme honra e um
memorável gosto aceder a esse convite. Apenas lhe pedi algum tempo de
espera, pelo facto de ter marcadas duas cirurgias à visão, que
aconteceram em Junho e Julho. Talvez este compasso de espera da minha
parte tenha contribuído para, tão fecunda poetisa, não ter visto, em
livro delicioso, tão generosas e universais mensagens poéticas de paz,
de reconciliação social e de fraternidade cristã.
Que dizer destas quatro dúzias de poemas?
Em primeiro lugar confesso que sabem a pouco, pelo facto de serem
apenas quarenta e dois poemas. A qualidade é muito boa: muito serena,
maviosa, doce, cândida, de fácil perceção, plural e universal.
A revista Visão de 21 de Março de 2004, no dia mundial da poesia,
publicou seis páginas, na sua edição 576 ao longo das quais procurava
responder às seguintes questões:
«- Somos um oásis poético ou vivemos numa miragem – a de sermos
mais e melhores do que os outros? - O que separa um êxito de um
fracasso, ou um poeta de um alinhavador de rimas?»
Sílvia Souto Cunha assinava esse texto e invocava Agustina
Bessa-Luís para dizer que considera a poesia um género preguiçoso. E
adiantava que «os poetas novos não vendem mais do que 300 ou 400
exemplares, mas os livros de poesia têm tiragens da ordem dos mil
exemplares, a mil e quinhentos: se assim é, pergunta a jornalista: -
porque se diz que existem mais poetas do que leitores de poesia?»
No Vol. VII da antologia «Poetas de Sempre», pp. 3/6, ainda não
conhecia os «Pedaços de Vida» de Cristina Ribeiro Soares. É que este
«arranjo floral» com que nos brinda, à hora da morte, quando a Autora
seria mais uma vítima, como são os poetas, prosadores e artistas deste
país, seria desfeiteado, reduzido a cinzas, porque não pertenceria ao
cânone que a revolução dos cravos instituiu neste quase meio século de
corrupção, de negativismo sistemático e de ataque aos valores
essenciais. Nomeadamente à Língua Portuguesa.Na fonte acima citada,
escreveu-se que «esta segregação pirata, anormal e contagiante, galopou
em todas as direções, institui-se como critério seletivo o cânone
ideológico: ou se está com ele, enquanto norma valorativa, ou cessa tudo
aquilo que a ética recomenda. Os poetas têm sido as primeiras vítimas
desta máfia intelectual. A vida literária é uma maçonaria onde é
escusado bater à porta».
Cristina Ribeiro Soares floresceu e legou poesia límpida,
transparente, diáfana e viçosa que vai conquistar quem a leia, em livro
inédito. Trata-se de uma poesia telegráfica, acessível, cantante,
harmoniosa e doce.
É uma poesia fértil, espontânea, sedutora e cheia de frescura. A
Autora, nas décadas de setenta e oitenta, esmerou-se na exercitação
semântica. A datação dos poemas ajuda a perceber que a beleza física da
docente, correspondia a algo interior que antevia uma primavera
fascinante. Estas quatro dúzias de criatividade poética foram
suficientes para adivinhar que, mais dia menos dia, tanta qualidade
artística iria resultar num fim feliz.
Teve durante vários anos um programa de poesia na Rádio Ribatejo e
outro na Universidade da Terceira Idade do Lumiar; foi metodóloga e
orientadora de estágios e fez parte de vários júris de avaliação de
professores, nomeadamente dos exames do 8.º escalão, até 1996.
Lê-se na sua biografia que publicou, em dois volumes (1991 e 1997),
a leitura actualizada de um curioso manuscrito intitulado «Ofertas
Históricas Relativas à Povoação de Vila Franca de Xira para Instrução
dos Vindouros», de João José Miguel Ferreira da Silva Amaral, bacharel
licenciado em direito contemporâneo das invasões francesas; e foi
co-autora de um estudo sobre «O Delfim, de José Cardoso Pires, propostas
para uma leitura orientada» para fins didácticos (2005), todos com o
nome de Maria Cristina Marques, do primeiro casamento.
Teria sido baluarte da verdadeira poesia, se antes do gongorismo em
que mergulhou a arte de versejar último meio século. O mercado livreiro
atravessou uma autêntica pandemia sistémica, que nos fez recuar aos
tempos de Platão que na sua «República» tratava os poetas como
imitadores de terceiro grau. Tratou-os como espécie de pintores que
tentavam desenhar um sapato mas que nada sabiam de sapataria.
Dez séculos depois Prado Coelho, parodiando Platão, escreveu: «a
única coisa que me inquieta é ver o aparecimento de uma espécie de
categoria tonta que é a da ‘escrita pop’. E esta é a escrita de quem
escreve sem nunca ter pensado o que é escrever».
Livros como este «Pedaços de Vida» deram azo ao nepotismo, que o
provérbio lusófono assumiu como sinónimo de «os burros coçam-se uns aos
outros».
Cristina Ribeiro Soares, na pureza da sua poética, é um exemplo de
regresso ao purismo da língua Portuguesa.
Barroso da Fonte
Diretor do Jornal "Poetas & Trovadores"
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(1) -
In «O
Cânone Ocidental» (1994), de Harold Bloom
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