A
UMA BICICLETA DESENHADA NA CELA
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Nesta
parede que me veste
da cabeça aos pés, inteira,
bem hajas, companheira,
as viagens que me deste.
Aqui,
onde o dia é mal nascido,
jamais me cansou
o rumo que deixou
o lápis
proibido...
Bem
haja a mão que te criou!
Olhos
montados no teu selim
pedalei, atravessei
e viajei
para além de mim.
LUÍS
VEIGA LEITÃO
in Noite de Pedra - 1952/55 |
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Lisboa
em Crónica
RESOLVI
O PROBLEMA DO TRÂNSITO!
Num
destes dias calmosos adormeci mal. Daí que, para além das revoluções
físicas entre lençóis, também tivesse sonhado, coisa que me
acontece raras vezes. E raro foi, igualmente, o meu sonho. Há
meses que, desafiado pelas contínuas reportagens, artigos e
declarações vindas a lume em muitas publicações lisboetas, me
preocupava com o problema do trânsito nesta capital — algo que
atingiu as raias do paroxismo e diariamente embranquece um
cabelito de motoristas e peões. Circular (de automóvel ou a pé)
na baixa lisboeta é qualquer coisa que, no momento, já é possível
comparar-se às dificuldades do labirinto do Dédalo em Creta (o
minotauro representado hodiernamente pelo agente de trânsito). E
a coisa promete piorar nos anos mais próximos. Donde, o
interesse que os jornais e o Município põem no caso, tentando
encontrar-lhe satisfações reais. Li, inclusive, declarações do
Presidente da edilidade alfacinha sobre o caso e calculei quão
desmedida era a charada.
Bom
munícipe que sou, comoveu-me a aflição do Presidente, a que
juntei reminiscências dos tempos em que eu próprio circulava,
automobilisticamente falando, por tais zonas baixas e recordei
também o último susto apanhado ao, peoninamente, atravessar uma
passadeira nos Restauradores. Bom munícipe que sou, o caso
integrou-se nos problemas aos quais me competia também conceder a
minha fraca preocupação. Cheguei a imaginar vários processos de
o resolver, traçando esquemas no papel, à espera que me
surgisse a ideia salvadora, a qual me apressaria a comunicar, em
carta registada, às entidades competentes. Aconteceu, porém, que
as várias soluções esquissadas exigiam sempre construções
complicadíssimas que iriam dar à baixa (à vastíssima baixa)
lisboeta uma fisionomia de cidade de antecipação científica
quase só imaginável nos domínios do sonho.
Pois
foi dominado por tal problema que, aqui há perto de um mês,
sonhei. E, em pleno sonho, encontrei a solução. Eu conto: vi
toda a zona da baixa completamente despovoada de veículos de
quatro ou mais rodas. Os Restauradores, o Rossio, o Terreiro do Paço,
o Marquês, o Rato, a Almirante Reis assumiam um aspecto de ficção.
As pessoas andavam a pé nos passeios e deslocavam-se de um lado
para o outro com extrema facilidade. Mas, nas actuais faixas de
circulação, houvera uma substituição: para as distâncias
maiores, toda a gente utilizava a bicicleta. Por toda a parte
esses delgados veículos, unicamente propulsionados pelo pé
humano, cirandavam, volteavam, corriam, gentilmente manobrados
pelos seus condutores. Havia as bicicletas próprias, isto é, de
propriedade privada, e havia também os velocípedes de aluguer.
Recordo-me de duas zonas onde se alugavam: em torno das estátuas
do Rossio e do Marquês. As pessoas lá, consoante uma tabela,
apropriavam-se do respectivo veículo. Depois, à noite, o
panorama ciclista mudava muito. Poucos circulavam, mas havia
gigantescos parques de estacionamento. Assisti, no sonho, a um ou
dois recontros entre ciclistas e peões. Um tombo e uma entorse
ficara de recordação aos protagonistas sem azedume nem troca de
companhias de seguros. Não havia sinaleiros e somente dois ou três
agentes de autoridade observavam descuidadamente as montras. Uma
calma espantosa reinava. Nos olhos dos transeuntes a alegria da
confiança. A felicidade. Os risos francos e abertos. O
cumprimento afável. A harmonia.
Acordei
e na manhã seguinte imediatamente me dispus a passar o sonho ao
papel. Mas, a dada altura, extasiado pelo ambiente paradisíaco
que ia descrevendo ao Presidente da municipalidade, estaquei.
Tanta felicidade parecia-me demais. Pouco a pouco, fui achando a
ideia absurda, impraticável, utópica. E, finalmente, desisti,
decidindo reflectir mais sensatamente sobre o assunto.
Eis
senão quando, há três ou quatro dias, leio nos jornais a
pasmosa notícia de que nas principais cidades italianas, com a
intenção de descongestionar o trânsito, fora proibida a circulação
de veículos automóveis (com excepção dos dos Transportes Públicos)
nas zonas de maior movimento.
O triciclo de Rochet,
sem motor - In revista "Civilização", n.º 88, Abril
de 1936, pág. 74.
Por
estranho fenómeno, o meu sonho comunicara-se aos italianos. A
decisão destes não atingia, porém, a radicalidade da minha.
Nesta, nem transportes públicos haveria. E havia bicicletas,
coisa de que não se fala nas reformas transalpinas.
Mas
o que fora absurdo parecia já não o ser. Algures alguém dera o
primeiro passo. E o seguinte, sem dúvida, estava dentro do meu
sonho.
Esta
a razão por que resolvo dar-lhe publicidade. Parece-me agora cada
vez mais que ele é o único que resolve eficaz e definitivamente
o problema do trânsito lisboeta. E logo lhe encontrei adicionais
vantagens de grande importância:
SOCIAIS
— A distinção de classes, na baixa, atenuar-se-ia
extraordinariamente. Todos passaríamos mais ou menos a ser iguais
— na bicicleta.
ECONÓMICAS
— O desenvolvimento da indústria velocipédica, actualmente
pelas ruas da amargura, seria um facto e alcançaria cifras
monumentais; o preço da gasolina teria de diminuir; as multas
passariam a ser de menor custo; as indemnizações dos seguros,
idem; o aumento de consumo de sapatos, enorme; a indústria dos
chapéus, em tão mau estado, levaria forte golpe altaneiro dada a
necessidade de tapar a cabeça; o preço das deslocações na
baixa, ínfimos, etc., etc.
DE
SAÚDE — Acabar-se-ia com os cheiros, com a poluição do ar;
correr-se-iam menores riscos no que respeita a desastres:
terminariam os susto das travagens bruscas, dos atropelamentos,
etc.; reduzir-seiam as crises nervosas e, fundamentalmente,
praticar-se-ia exercício físico quer pedalando quer andando a
pé.
DESPORTIVAS
— Imediatamente consequentes das anteriores: o atletismo, o
halterofilismo, a ginástica ganhariam prováveis praticantes e
maximamente o ciclismo poderia vir a descobrir grandes futuros
ases.
Perante
tantas vantagens, o meu sonho deixou de me parecer utópico. É,
sem qualquer sombra de dúvida, a única solução para o trânsito
das grandes cidades nas suas zonas de mais intenso movimento.
Aqui
fica, pois, aguardando-se que, corajosamente, alguém o ponha em
prática. E recorde-se: que romântico não seria passear-se de
bicicleta ou a pé! Já nem era preciso arrasarem-se as árvores,
os jardins e os lagos! Poder-se-iam até plantar e construir mais!
Oh, sonho!
ORLANDO
NEVES - 1968
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