<<<

NO PRINCÍPIO ERA O CAVALO

No princípio era o cavalo. Mais tarde e contra sua vontade, foi o cavalo dominado pelo homem e, mais tarde ainda, o homem substituiu o cavalo pelo automóvel. Porque teria o homem feito essa substituição? Há várias opiniões. A mais corrente sustenta que o cavalo não tinha capota e que, por Isso mesmo, se tomava incómodo viajar no Inverno. Outros afirmam que o cavalo é um animal pouco funcional e mal desenhado (apesar de Machado de Castro...) que obriga os passageiros a viajar atrás uns dos outros e não lado a lado. Qualquer destas teorias é aceitável. O leitor que escolha.

É claro que, se é verdade que no princípio era o cavalo, é igualmente verdade que no princípio era a mula e o burro. O burro era o cavalo dos pobres e a mula o jipe dos sol­dados. Isto não é de estranhar já que, actual­mente, a lambreta é o automóvel dos pobres e a bicicleta a lambreta dos pobríssimos.


VELOCÍPEDE NOCTURNO


égua de finos quadris
minha bicicleta é pássaro rolante
e leva seus cascos como duas asas
voa de rastos como um som distante

metade alfaia e metade lua
é quando montando nela soltas os cabelos
e vais como Godiva despida noite fora
esperar-me sem medo ao fim da rua

                                              j. a. - 4/12/1984


CAVALOS EM BICICLETAS

ou o modo de resolver o problema dos transportes

Os satélites artificiais e a discussão das suas possibilidades e consequências enchem muitas dezenas e dezenas de livros, muitos milhares e milhares de páginas. Imaginamos nós que a maior parte dessa literatura passará como ridícula aos olhos idos nossos netos? Para que o leitor possa ter uma ideia aproximada do que pensarão sobre o assunto os homens do século XXI, aqui transcrevemos o que o Senhor Jacques Soldaneile escreveu em 1880 sobre a bicicleta. Que preocupações eram as dele? Que preocupações são as nossas?

«Se há cinquenta anos alguém tivesse dito que, graças à ajuda duma maquineta com rodas, o homem tão lento, tão desajeitado a correr, seria capaz de bater os velozes cavalos, ninguém levaria a sério essas palavras. É indubitavelmente estranho que as fracas forças humanas aplicadas numa bicicleta con­sigam atingir tais velocidades.

«Mas significará isto a derrota definitiva dos cavalos? De maneira nenhuma. Mas é preciso grande imaginação para prever que o dia virá em que corcéis (graças ao homem, evidentemente) poderão desforrar-se. De que maneira? Substituindo os homens nas bicicletas (nos triciclos ou nos quadriciclos). É na verdade inadmissível que esse admirável animal não tenha podido ainda utilizar a sua maravilhosa organização numa máquina simples e prática. Nessas condições o cavalo tomará de novo a dianteira sobre o homem e é muito possível que vença a pró­pria locomotiva A partir desse dia o cavalo ganhará de novo a estima de todos nós e a admiração não só da bicicleta como da própria locomotiva. Uma força viva, sempre pronta, pouco volumosa, terá sempre grandes vantagens (sobretudo em pequenos trajectos e quando o número de viajantes é reduzido) sobre uma máquina cega: sem falar no seu encanto incomparavelmente maior do que o da locomotiva.

Aceitemos este feliz augúrio  e na veloci­pedia não vejamos apenas uma excelente utilização da força humana. Vejamos também o meio de aperfeiçoar um dos mais belos animais do nosso planeta - um artifício para salvar da destruição esse animal de incomparável elegância, esse pobre animal que está em risco de desaparecer, por culpa dos progressos no domínio dos transportes.»


Ao anoitecer, dou voltas, às vezes, por aí:


          DISAVEIRANDO

 

   Quando a barra do horizonte
   passa do azul ao cinzento
   e a poalha leve leve
   flutua no azul profundo,
   digo adeus ao Sol — pelas agras.
   Cambo a marcha pelo milho pelintra,
                  a humilde batata.
   Esbelto a barriga de burguês que se nega.
   E desço pelo carreirinho manso ao asfalto da estrada.
   Motores traquejam dividendos para a Sacor
   e há pares que passam na bicicleta,
   ele puxando ao selim.
                  ela lasciviando ao quadro.
   Não olho a Lua:
                  Pousou lá ontem
                  uma americanalhice avariada.
   O cinzento cresce cresce cresce.

            Mário Sacramento, 18 de Julho de 1967, 
            in: «Diário» (fragmento)  


QUADRAS POPULARES

 

O Balão foi a Lisboa, (1)
teve a sorte de ganhar;
ganhou o primeiro prémio,
mas não lho quiseram dar!
O Balão foi às corridas
com camisola amarela;
quem perdeu foi o Bailica, (2)
quem ganhou foi o Capela.
 

 

O Balão foi às corridas
com sapatos de pelica;
quem perdeu foi o Capela,
quem ganhou foi o Bailica.  


In: João Sarabando, Cancioneiro de Aveiro, 1966.
----------------------------------

(1) - Balão - alcunha de António da Cruz Bento, popular ciclista aveirense dos começos do século XX.

(2) - Bailica – Alcunha de Francisco Pereira de Melo, outro popular ciclista aveirense da época do Balão.  

 

BICHOCLETA

Bicho de duas rodas em vez de patas,
seus cornos virados contra quem o monta,
felino assanhado de cio como as gatas
e todavia dócil ora amedrontado
como um bichinho de conta...

É fera amansada se acaso repousa,
mas tanto mais corre, voa, serpenteia e dança
quanto mais alguém, por aventura, ousa
pisar-lhe as garras que voam,
suas asas
e de todo em todo não sabe
se tal fera mansa
é réptil ou símio ou ave
se apenas um brinquedo de criança!...

Joalpinco – 24/11/1984

 

Página anterior          Página inicial          Página seguinte