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Notícias Editorial - ISBN 972-46-1420-4 - 1ª Ed. Maio 2003, 150 pp.

Cidade Azul

Apresentação do livro

 

“A vida. A ser novelo redondo, de fio longo, a voltear nele. Fio sem fim. Sempre a ser dobado. Cada vez a ficar mais volumoso tal novelo. Que rodava, engrossando, rodava. Como se fosse para onde?”
(Cecília Sacramento,  Cidade Azul, p. 83)

 

Ao cumprir uma década de fértil produção literária, Cecília Sacramento traz-nos hoje “Cidade Azul”, o seu sétimo livro, que saudamos.

E se não cabe aqui lançar um olhar retrospectivo sobre estes dez anos de pulsão criativa, nem tão pouco tentar demarcar o apogeu da sua actividade literária, nem traçar dados biográficos da escritora, convirá, uma vez mais, e sempre, lembrar que veio capitalizando sucessos e leitores desde o seu primeiro romance; ainda assim, diremos que entrar por esses horizontes retrospectivos nos ajudaria  a estabelecer algumas relações de sentido e pontos de contacto no “corpus” das suas obras: a matéria humana subtilmente observada, com os eternos e universais  valores da humanidade e do humanismo, a reflexão e a indagação, a paciente e sempre renovada busca do conhecimento de si e do seu semelhante, enfim, um estar com a vida falando da vida; por outro lado, essa incursão de conjunto no universo ficcional de Cecília Sacramento salientaria, necessariamente, a componente formal depurada, o estilo ágil e vigoroso, maduro e jovial, musical e cristalino, expressivo e emotivo da sua prosa poética, este, porventura, um dos mais fortes mecanismos de adesão do leitor.

Apresentação do livro. Fotografia de José Caseiro.

Partamos, pois, numa incursão por certas linhas possíveis de orientação de uma  primeira leitura desta “Cidade Azul”, tentando rastrear-lhe apenas certas zonas de sentido, não esquecendo que este é sempre um atrevido exercício de imaginarmos sobre a imaginação do outro...  


A  primeira pista leva os nossos passos a seguir a história contada; mais do que uma história para contar, é uma história que fará pensar; à nossa atenção de leitores, o romance proporá, ainda que implicitamente, a reflexão sobre uma questão do nosso tempo: as implicações sociais e humanas do agrupamento e da coesão parental no crescimento dos filhos. A epígrafe inicial, transcrita de um jornal diário, é disso elucidativa. De resto, trata-se de uma curta história de um amor impossível na qual se encaixa  lá para o final um outro breve episódio, também ele curta história de amor marcante na vida da protagonista, Micaela, uma jovem de dezoito anos, que, no limiar da maturação, descobre o amor sonhado e logo a angústia dolorosa da sua inviabilidade causada pelas contingências da vida: Arnaldo é casado e pai de uma filha bebé.

Tema da solidão, do dilaceramento, do conflito, da perda, da fragmentação, da interrogação de alguém que é empurrado para, a sós, procurar corajosamente  o modo ética e moralmente mais honesto  de resolver o seu drama, superando as perdidas certezas e ilusões, na idade em que é legítima toda a “esperança no gotejar do Tempo” (p. 114). Esta maturação da adolescência não se constitui, todavia,  em vida anulada e amarga; aparentando ser, no início, uma  criatura inerte e sonhadora, Micaela, resolutamente, supera o seu desgosto, não se amoldando definitivamente na solidão, mas disponibilizando-se renovadamente para os “mistérios” da vida futura, ou melhor, para as hipóteses que o condicional possa vir a pôr no seu caminho. Já o sabíamos de outros livros; e aqui, a autora, nesta simplicidade de ingredientes e de um enredo romanesco com um carácter aberto, parece, novamente, surpreender o quotidiano da personagem que ergue “uma construção na areia” (p. 47), experimenta “a espera feita desânimo dentro da esperança” (17), descobre “como será funda a solidão depois do desabar do sonho” (p. 22), para terminar numa muito humana e autêntica atitude de despojamento e coragem. À semelhança de Dora, a ”mulher escrevedora” do filme “Central Brasil” a que Micaela assiste, e que se constitui como reflexo especular de si própria, também esta história de Cecília Sacramento propõe, afinal, uma viagem ao coração da personagem feminina na redescoberta da capacidade de amar e de ser amada, de ter e de exprimir afecto, após imperiosa e sofrida separação.

Amor, vida, procura, tempo, construção – reiteradas marcas semânticas no imaginário literário de Cecília. Flores, rosas, música, ecos, casa, caminho, mar, luz -  algumas das imagens arquétipas  que os seus textos têm vindo a retomar poeticamente de livro em livro, como se estes se tivessem vindo a construir com coesão e coerência  em mútua referencialidade.

À semelhança de antecedentes trabalhos, “Cidade Azul” apresenta dois tipos de discurso entrelaçados: um mais narrativo, como já vimos, e outro mais reflexivo. Assente no rebuscar da memória – “recordar também é procurar” - anuncia-se nas páginas de abertura – a intriga começa a ser narrada  pela própria protagonista, que, quando cansada, dará voz ao seu “fidelíssimo Narrador  (p. 46) de terceira pessoa, por finais do primeiro capítulo, em que se encena um curioso diálogo entre os dois. Assim, o escritor, entidade física, digamos, desnuda-se também ele, na rota das palavras, que é como quem diz da vida, nessa viagem perscrutadora, de aprendizagem e construção que a personagem empreende ao longo da obra.

Deste modo, a vida, tal como a escrita, é a leitura das “folhas do livro em que tudo se lê e nada está escrito”, imagem várias vezes acentuada, nas páginas 43 e 51, por exemplo. Igualmente a este nível,  a autora conduz um interessante jogo que descortina o universo do labor da escrita “fatigada” “sofrida”, “pesada” (p. 43-44-46), configurada como um “diáfano véu” que se vai levantando”, erigindo-se em cansativa travessia “no limbo desse deserto interior” (p. 40-41), cumprindo-se em realização, para terminar na imagem final em que se esvai “a diluir-se, a ser escrita de fumo” (p. 150).

Caminham, pois, paralelamente, a história que está a ser narrada e o livro-a-haver, cuja construção se vai tecendo, “um livro que /Micaela, como cada  um de nós, traz/ escondido com páginas em branco para nele traçar a escrita” (p. 34 e p. 37... ). Eis a razão por que também a narradora autodiegética se interroga acerca do título do  ainda inconcreto, vago “livro-anúncio” (p. 43) : “E se eu chamasse ao meu livro “Restolho”? Realmente o que ficou depois de... Ainda enraizado, preso ao terreno. A ser. Ainda”  (p.19).

A esse propósito, algumas metáforas pertinentes poderiam corroborar esta ideia do labor da escrita/reflexão/pesquisa/criação. Como a da sábia rendeira de bilros  que encontra na sua arte o escape, a harmonia e a placidez da “música” do seu trabalho que a ajuda  a resolver problemas, a adormecer, que fala consigo “até dentro da manhã”,  ou  canta suavemente para ela “até que a paz desce e /lhe/ traz o sono” (p. 17-18) .

Por outras vertentes se espraia a nossa curiosidade e o nosso encantamento  quando lemos “Cidade Azul”.  Seria agora excessiva  uma análise detalhada da “arte poética” de Cecília Sacramento. Permitam apenas uma brevíssima incursão referencial a dois traços de modernidade e maturidade no manejo do seu potencial linguístico e cultural: o saboroso prazer com que nos surpreendemos com ajustados neologismos – exemplos como “a grande acontecência” (p. 93), “ a pensar em coisinhiquices”, “a vida dadivosa”, “a fraternura” atestam a renovada riqueza lexical da escrita da autora. E não  passam despercebidos os encaixes intertextualizantes com que caldeia harmoniosamente o seu próprio texto. Julgamos que estes traços estilísticos se têm vindo a consolidar na escrita literária de Cecília , não como ostentação de saber e erudição, mas com a humilde atitude de reconhecimento e gratidão para com “a voz dos /seus/ poetas, a /sua/ gente” e dialogante companhia (p. 17, por exemplo). Assim, num mosaico de citações, nos títulos dos capítulos ou no corpo do próprio texto, a teia deste livro pede fios emprestados a Sophia de Mello Breyner Andresen e Pablo Neruda (cinco vezes), Manuel Alegre (quatro vezes), Albano Martins e Eugénio de Andrade (três vezes), Vergílio Ferreira, Fernando Assis Pacheco, Pedro Zargo, Reyner Maria Rilke, Manuel Bandeira, Natália Correia, Camões, Marguerite Yourcenar, André Gide, Alberti, Clarice Lispector, Cecília Meirelles, Herberto Hélder, Miguel Torga, Natália Correia, Clara Sacramento, ao cancioneiro popular de Aveiro e dos Açores – esta alusão não é exaustiva nem ordenada, frisamos – e Guimarães Rosa, segundo  a autora, “o mais presente”, e seu “mentor” consoante anuncia logo no início.

É isso: a escrita é também ela  novelo em incessante volteio, desdobramento e renovação, como ”A onda /... / termina num murmúrio – e vem do mar. Grande. Imensa. /Sempre a/ desdobrar-se sobre areia, esta permanentemente disponível, aquela incessantemente renovada” (p. 63).

Tocar os vários espaços do texto implica ainda olhar para o título  “Cidade Azul”. Vimos já como o percurso de Micaela se faz  por caminhos nocturnos ou de errância solar. A  omnipresente cor azul fixada no título equaciona uma relação de sentido com esse trajecto da protagonista, sobretudo no episódio final, rebuscado na memória da infância, ligado ao apaziguamento espiritual, à amizade, à dádiva generosa, e à redenção conotada nas “lindas rosas azuis, da cor do céu “ (p.142) que cobrem o presépio-crucifixo.

A “cidade azul de permanente encanto”,  com o mar verde dos campos”, “onde o rio não /é/ um limite mas um caminho” (p. 67) é cenário da localização espacial da acção. A cidade, a sua “cintura líquida”, “as terras vestidas de água”, orlas limites, “a presença do vizinho Oceano”,  o imenso mar revolto ou em mansas toadas, dunas, céu, “gaivotas desenhando flores de pétalas abertas, a voltear, serenas, na beleza do viver”, “o espelho da laguna”,  pequenos montes de brancura no regaço das salinas” (p. 97-98), brisas, brumas, sol radioso, luar debilmente enevoado, longes, frescuras,  a planície azul” (p. 92, p. 150, ... ), o casario, as gentes da Beira-Mar e a sua milenar sabedoria são projecções frequentes ao longo do livro como comparsas de uma personagem em trânsito, fragmentada, que refaz o sentido da vida, como dissemos. Muitos dos nossos momentos de maior fruição do texto residem nas passagens melodiosas de ritmo e significação que aludem a esta “Cidade Azul”. Diremos, por isso, que este livro dedicado  Vasco é também – e se calhar, sobretudo - Cecília Sacramento o poderá confirmar, um tributo à  linda e leve” cidade de Aveiro. Apenas um excerto ilustrativo:

Os seus pésagora pisavam o chão da sua fresca cidade, onde o azul descia  a deixar uma luz do céu, por ali espalhada. Seguia pelo passeio, rente ao casario, enfeitado de lindos desenhos feitos com pedras esbranquiçadas, de mistura com outras de cor escura, quase pretas. Calcava, assim, flores estendidas, algas e conchas, a proa de um barco, uma âncora, um peixe, até um barco moliceiro com a respectiva vela. Aqui e ali, um barco estilizado, com os remos nele atravessados, a navegar sobre as ondas, desenhadas em traços curvos.

Era o grande Oceano a vir até à sua cidade. A ficar nela”. (p. 94)

 

Paramos, por ora. O novelo guarda mais fios por desvendar... Aqui fica o desafio aos leitores.

Saudemos com o aplauso, que justamente merece, este livro, válido e generoso,  de Cecília Sacramento. Fecharemos circularmente o nosso texto como começámos: citando algumas expressões que fomos recolhendo. E sob este “céu azul a cobri/r-nos/ de luz, que cai, azulinha”, ofereço a Cecília Sacramento, com um fraterno abraço, estas singelíssimas flores; não serão “rosas de luz”, mas são “azuis-azuis”...

Fotografia de José Caseiro. (Clicar para aumentar)

Aveiro, 25 de Maio de 2003
Maria Alice L. de Pinho e Silva


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