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Cecília Sacramento – Uma história de Vida(1)

 

Equipa Moliceiro – Sabemos que tem tido uma vida muito cheia, muito rica. Gostaríamos que nos falasse um pouco de si. Do seu percurso... Da sua história desde menina... 

Cecília Sacramento – Desde menina... Então a menina que vocês querem conhecer nasceu em Ovar.  

E na altura em que a menina teve de decidir se depois da quarta classe continuava a estudar ou não, a mãe dessa menina fez tudo para ela ir para um Colégio interna porque não havia Liceus por ali... Os únicos Liceus que havia eram os de Aveiro e do Porto, de maneira que as meninas daquela altura iam para os Colégios aprender línguas, aprender francês, aprender pintura e tal... e essa menina, teve uma maturidade que eu nem entendo. Queria era ir estudar e tirar um curso que lhe desse uma profissão.

E, então, vinha todos os dias num comboio que saía de Ovar às sete menos dez da manhã, e da minha casa a Estação era quase meia hora de caminho; por isso levantava-me por volta das cinco e meia. Vinha para cá, tinha as minhas aulas e chegava a casa à volta das sete. Portanto não tinha tempo nenhum para estudar. Então estudava no comboio para lá e para cá e quando um professor faltava nos intervalos das aulas e no intervalo do almoço. Não havia sequer Cantina, de maneira que trazíamos um lanche... 

Mais tarde, nos dois últimos anos, já havia Cantina, já era melhor, já havia oportunidade de comer uma refeição quente. De forma que foi assim um sacrifício grande vir estudar para o Liceu. Mas tive a sorte muito grande de ter belíssimos professores e então em Português... Sempre gostei muito, muito, muito de Português. De forma que fui muito afortunada, com o nosso José Pereira Tavares, que foi um professor que me marcou imenso, que me ensinou muito, e que ficou muito meu amigo. Na primeira aula, ele pegou na caderneta, começou a folheá-la enquanto perguntava aos alunos donde eram, onde é que moravam... depois chegou ao meu nome “Cecília, donde é que tu és?” “Venho de Ovar.” “Ah, de Ovar?! Então como é que tu vens de Ovar? E estás cá logo de manhã...” “Venho de comboio.” Ele ficou cheio de pena de mim e depois, como sempre um grande pedagogo, desviou a conversa. “Olha, tu sabes o que é que o teu nome me faz lembrar?” E contou-me, a mim e à turma toda, a história de Santa Cecília, padroeira da Música, que é uma história muito linda e muito triste passada nas catacumbas onde os cristãos se escondiam para escapar às perseguições. 

Depois seguiu-se o curso... E tive o nosso Dr. José Pereira Tavares a Português e depois a Latim. Gostei muito de Latim, certamente por ser dado por ele, porque ele era realmente um óptimo professor. E tenho dele uma recordação muito, muito afectuosa e ele foi também um grande, grande amigo. Não só meu amigo como, depois, também do Mário. Do Mário por razões especiais. O Mário era um aluno excepcional em Português. Ele até guardou o caderno diário do Mário.

 

Equipa Moliceiro – Conheceu o Dr. Mário Sacramento quando? 

Cecília Sacramento – Conheci-o no Liceu. Foi meu colega. E eu até vou falar do Jornal da Escola porque ele está ligado à minha vida. O Mário Sacramento era o Presidente da Academia e era o Director do Jornal “A Voz Académica”. Bem, e é preciso dizer que nessa altura o Jornal era só dos alunos rapazes... E, um dia, o Reitor mandou um aviso para as alunas dos últimos anos se reunirem no dia seguinte em determinada sala. E nós lá fomos a essa reunião. O Reitor era, nessa altura, penso eu, o Dr. João Pires. E quem é que aparece nesse encontro? O Reitor, acompanhado do Presidente da Academia e Director do Jornal, Mário Sacramento. Então, disseram ao que vinham: que era uma injustiça que se cometia não haver representação de alunas no Jornal da Escola. Então vinham ali para dizer às alunas mais adiantadas que pensassem e escolhessem uma aluna para as representar na Redacção do Jornal. E o que é que aconteceu? Olhem escolheram-me a mim e eu fui, portanto, a primeira aluna a fazer parte da Redacção do Jornal da Escola, o que me honra muito. Vejam lá como os tempos eram, não é? Hoje, felizmente, já não há diferença entre alunos e alunas. A primeira coisa que eu escrevi para o jornal foi um artigo de incitamento para que todas fizessem o que pudessem para, enfim, o Jornal também ser nosso. E depois fiz outras coisas, por exemplo, fiz uma série de artigos com a história de Camilo Castelo Branco e de Ana Plácido. E as alunas e os alunos gostaram... De maneira que esta história é o começo de um romance... Aconteceu assim...

 

Equipa Moliceiro – Então e depois?... 

Cecília Sacramento – Então, foi uma vida normal como outra qualquer... Normal é como quem diz. Nunca mais nos perdemos um do outro e depois aconteceu o casamento, não é?... E depois... 

Mas falando ainda do Jornal, olhem que era um Jornal de muita categoria. E lembro-me de muitos jornais pedirem autorização para publicar artigos que eu escrevia e sobretudo artigos do Mário Sacramento. Mas a determinada altura o Jornal foi suspenso pela Censura, pelos Poderes Políticos. Estávamos muito longe do 25 de Abril, de maneira que os alunos agora nem podem entender isso. E a perseguição ao Mário Sacramento começou já aí. O Mário sofreu a primeira prisão com dezassete anos e depois foi sempre perseguido e sendo ele perseguido a minha vida tornou-se muito difícil.

 

Equipa Moliceiro – E a perseguição reflectia-se em termos de trabalho? 

Cecília Sacramento – Ah, sim. E de que maneira... Por alguma coisa é que eu, que gosto tanto de escrever, eu só comecei a escrever depois de me reformar. Com o Mário tantas vezes preso, meses e meses preso, anos preso, o que é que originou? Ele estando preso não ganhava dinheiro, não é verdade? E pior que isso, como era medico, tinha um consultório, tinha que pagar a renda do consultório e as duas empregadas que tinha. E donde vinha esse dinheiro? Era do meu ordenado de funcionária pública que era um ordenado tremendamente baixo. Pois não! Então o que é que eu tive que fazer? Tive de dar as minhas aulas oficiais, ao mesmo tempo dava aulas no Colégio de Fátima, que era o Colégio Feminino de Aveiro e no Colégio D. Pedro V, que era o Colégio Masculino. Portanto, eu dava duas vezes mais aulas do que aquelas que daria numa vida normal. E isso fez com que eu não tivesse nem um minuto para mim, porque, às vezes, até dava aulas particulares em casa, ainda. Tive uma vida muito, muito difícil nesse aspecto. Mesmo muito difícil. De forma que o tempo passou, acabaram as prisões e ele morreu, com quarenta e oito anos. E eu ainda estava longe de chegar à minha reforma. Mas a vida continuou a ser complicada, porque eu fiquei com os meus filhos para criar. E tive que continuar a trabalhar o triplo do que devia. Foi assim, a minha vida. Mas tive sempre muita sorte porque tive saúde suficiente para aguentar isso, o que eu considero uma grande sorte. Uma grande, grande, grande sorte.

 

Equipa Moliceiro – E teve com certeza experiências muito ricas... Conheceu gente muito interessante... Quer falar-nos de pessoas que mais a tenham marcado ao longo da vida... 

Cecília Sacramento – pessoa que mais me marcou foi a minha mãe. Mas claro que os meus professores de Português me marcaram muito. Já falei no Dr. José Pereira Tavares, quero referir também o Dr. Salgado Júnior e, depois, na Faculdade, o Hernâni Cidade, que era um Mestre extraordinário e o Vitorino Nemésio. Contactei também bastante com o Agostinho da Silva por intermédio do Mário, porque o Mário era um dos colaboradores do Agostinho da Silva. 0 Agostinho da Silva dentro do Liceu não ensinava só, era um professor extraordinário. Organizava campanhas de solidariedade dentro da Escola e fazia muitas outras coisas interessantes dentro da Escola, e o Mário era o braço direito dele. Tanto que o Agostinho da Silva diz num dos seus livros isto que vou ler: 

“Creio também que entre os alunos houve sempre o costume de discutir sem barreiras e que, para além dos caminhos diversos e até divergentes que cada um pudesse ter tomado, ficou sempre a ideia de que pertenciam a um grupo e que não quebrar a irmandade com o grupo era mais importante do que assegurar o triunfo da sua própria invenção neste ou naquele sector especial; gostaria, neste momento, de lembrar o nome daquele que porventura mais ilustrou este princípio ou norma, o de Mário Sacramento, filósofo no gosto da sabedoria a encontrar, religioso na inteira fidelidade ao seu amor e piedade dos homens, republicano na ideia etimológica de que as coisas são públicas e não do domínio de uns tantos que têm fortuna, favor ou força, aquele Mário Sacramento que levou para a sua vida inteira a modéstia operosa com que vendendo lápis e papel ajudava no reerguer da Caixa Escolar do Liceu de Aveiro o grande erudito Salgado Júnior”. 

Mas a minha mãe, sim, a minha mãe marcou­-me muito. Sabem, porque nós não éramos ricos nem éramos pobres... éramos pessoas vulgares em questão de proventos económicos. Era difícil, muito difícil dar a cinco filhos um curso superior, e a minha mãe conseguiu fazê-lo. Eu era a mais velha e tinha medo que os meus irmãos ficassem prejudicados se também não estudassem. Mas tive o gosto de ver que os meus irmãos tiraram todos o seu curso superior, porque a minha mãe lutou a par connosco para vencer todas as dificuldades económicas que foram aparecendo.

O meu pai tinha ido para África na altura da Grande Guerra e veio muito doente. Ficou doente para sempre, de maneira que tinha uma reforma, mas era uma reforma pequeníssima. Quando a minha mãe resolveu que eu fosse para a Faculdade, ela é que me deu o ânimo todo. Foi para Coimbra, alugou uma casa grande e dispunha, portanto de quartos que alugava. Dava-lhe muito trabalho, mas ela aguentou esse trabalho todo e com isso conseguiu aguentar a vida.

Por exemplo, uma das pessoas que lá esteve foi o Agostinho Neto, o primeiro Presidente da República de Angola que era como se fosse da família. Ia connosco para férias e tudo. E, olhe, o Zeca Afonso era nosso vizinho da frente e era como se fosse mais um filho da minha mãe e um irmão nosso. Depois eu formei-me e já pude também auxiliar economicamente a vida e os estudos dos meus irmãos. 

De maneira que tenho por ela uma grande admiração. A minha mãe foi um exemplo de força que eu tive na vida inteira. Eu não tinha o direito de desanimar perante coisas que me aconteciam, porque ela me deu um exemplo extraordinário. 

 

Equipa Moliceiro – Não quer falar de mais ninguém que a tenha marcado? Conheceu tanta gente... Conviveu com tanta gente... Com políticos e intelectuais… 

Cecília Sacramento – Sim, é verdade... Mas também posso falar de pessoas que me marcaram pela negativa... Olhe, vou-lhe contar uma relação humana muito interessante. Toda a gente sabe que quando uma senhora aparece numa sala e estão lá cavalheiros, eles levantam-se, não é? Mas o contrário não era de acontecer. Chegar um cavalheiro e uma senhora levantar-se... Então, uma vez eu fui tratar de uma visita para o meu marido que estava preso e aconteceu aquilo que acontecia muitas vezes... tinha a visita marcada previamente, mas depois chegava e já não havia visita porque o preso não sei quê, o preso estava noutro sítio, não era naquele, enfim... trapalhadas para complicar, para dar cabo de nós. E nesse dia cheguei e disse ao funcionário que lá estava a atender “Eu tenho visita marcada aqui para o Aljube, às tantas horas...”. Respondeu-me que não tinha lá nenhuma visita marcada. Mas eu disse-lhe para fazer o favor de se informar porque isso tinha sido feito. “Ah, então a senhora entre para ali que eu vou saber disso.” E entrei lá para uma sala que tinha uns sofás, e eu sentei-me numa cadeira. E o homem lá tratou do que tinha a tratar e depois veio dar-me o recado. Entrou e disse assim: “Levante-se.” E eu levantei-me. E só depois é que ele me deu o recado. Isto é bom que se saiba; é um episódio que marca uma época. E de uma indelicadeza, não é? 

Mas conheci um médico, e conheço, que felizmente ainda é vivo, quando estive doente no IPO. Fiz umas análises, uns exames, umas coisas, e fui tendo consultas com ele, e na terceira ou quarta consulta, depois desses exames todos prontos ele deu-me o resultado a que tinha chegado e o resultado não era nada animador. Era um resultado que me levava a uma operação. E eu fiquei muito, muito angustiada e pedi-lhe “O Sr. Dr. dê-me licença, por favor, para eu fazer um telefonema para a minha irmã.” O médico, então, perguntou-me o que é que se passava. “É que eu quero-lhe pedir para ela me vir buscar que eu não estou assim, realmente, com muita força para ir sozinha assim por aí adiante” expliquei. E ele disse “Não é preciso chamar a sua irmã, eu vou levá­la. E sem nunca me ter conhecido, conhecia-me apenas como doente, atravessou Coimbra inteira e foi-me levar a casa da minha irmã. Isto é uma coisa extraordinária, não é? Eu fiquei com uma admiração extraordinária por este homem. E depois confirmei que ele, de facto, é fora de série. Acontecia, por exemplo, o seguinte: Eu estava numa enfermaria com cinco camas e, claro que as doentes precisam de levar injecções de tantas em tantas horas, conforme os casos, e lá havia casos desses. De maneira que o que se passava era que as enfermeiras vinham sempre a conversar em voz alta e acordavam logo toda a gente que estava na enfermaria. E, mais ainda, abriam a luz de cima, não a luz da cama da doente a quem iam dar a injecção, e de quatro em quatro horas repetia-se esta história... E, sabem como é que esse médico fazia? Vinha sempre fazer-me a visita diária depois do trabalho dele, aí pelas nove e meia, dez horas da noite. Chegava e não abria luz nenhuma, nem sequer a da minha cama. Vinha com um foco, entrava com o foco só direito à minha cama... Agora tire as suas conclusões... Há realmente pessoas extraordinárias, não é preciso contar mais nada dessa pessoa para se ver como ele é, pois não?!...

 

Equipa Moliceiro – Também sabemos que tem livros publicados. Quando e como começou a escrever? 

Cecília Sacramento – Não pude escrever nunca enquanto trabalhei, só depois de me reformar. Mas... era difícil, claro, começar tão tarde...

Começar aos setenta anos a escrever... E a minha filha foi a grande ajuda que eu tive. Empurrou-me para a escrita. E verdade, devo-lhe isso. Deu-me muito ânimo.

Ora bem, então só comecei a escrever por volta dos setenta anos. E olhe, até agora, já tenho oitenta, já escrevi quantos livros? Três... quatro... cinco. Cinco livros!

 

Equipa Moliceiro – E tem algum projecto para breve? 

Cecília Sacramento – Tenho um para sair brevemente, que se chama “O Rasto dos Dias”. É um livro de memórias, como o nome indica. Gostei muito de o escrever precisamente por ser de memórias. De memórias e afectos. Neste livrinho eu lembro pessoas de quem gostei muito...

 

Equipa Moliceiro  – E projectos?... 

Cecília Sacramento – Projectos não sei... Vamos lá ver... Estou a escrevinhar uma história de amor. Não sei se sou capaz de a fazer se não... Deixo essa para publicar só depois de eu morrer...

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(1) – Entrevista publicada no jornal escolar “Moliceiro”, n.º 62 de Dezembro de 1969, na Escola E. B. 2/3 João Afonso de Aveiro.


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