Estava eu no meu ripanço, balouçando-me
na cadeira-jota, de mão abandonada à leitura da sina que uma
indiana, de olhos de amêndoa como as odaliscas dos haréns muçulmanos,
sibilinamente me augurava aos ouvidos, rodeando-me de um perfume
afrodisíaco, quando um suarento escravo, de olhos esbugalhados, mal
cheiroso e de barba por fazer, me entrega na mão desocupada um
papel qualquer.
Entretido como estava naquele
torpor tão próprio de quem está a ser docemente tacteado, não
dei conta imediata de que tal papel era nem mais nem menos que o
“pasquim do Verride”, transcrevendo uma suposta carta dos
moendeiros do meu burgo, insurgindo-se contra o Duque (Duque de quê?)
e contra o Conde de Barbatesa, numa insolente amálgama do nome de
Conde com o do seu feitor Barbatesa.
Este documento é falso! Tão falso
como essoutro dos genoveses, fabricado como certos vinhos da
Bairrada, uma mistela gráfica para confundir um tal Cristóforo
Colombo, taberneiro e cardador de lã, com o portuguesíssimo Cristõvão
Colon, o famoso Almirante do Mar Oceano!
Qu’é lá essa pantominice? Eu
conheço muito bem a alma e o sentir dos moleiros do meu condado
fontanense! Conheço-lhes a alma e a nobreza do seu carácter! Não
são homens de se queixarem por dá cá aquela palha! E se tivessem
de fazer uma reclamação em ordem, jamais iriam procurar um
qualquer analfabeto para lhes redigir o protesto! Nada disso Sr.
Director do “pasquim dos Verrides”, eles não se quedavam por
uns gatafunhos feitos por esferográfica... Eles agarravam era numa
cachaporra e varriam o local de fio a pavio, derrotando tudo,
deixando campo raso como se por lá passasse um buldozer! E muito
menos teriam uma palavra contra o seu Conde, o primeiro aristocrata
que deles se abeirou, que com eles se agacha à lareira de inverno,
ou com eles joga a bisca lambida, já que a sueca é jogo que não
lhes entra na cachimónia. Porquê? Porque na sueca é preciso
respeitar o naipe do adversário, e eles, nisso de respeitar os
naipes, nem sonhar, mesmo que fosse o ás de copas. São homens
tesos...
Eu sei o motivo que levou esses
Verrides, aliados aos Almeidas y Ruas, a forjar esse repugnante
documento, maliciosamente atribuído aos meus queridos súbditos
moendeiros. A questão é outra: tentar com essa execrável carta,
jogar o povo contra o seu amado Conde, ou, por melhor manha do
autor, desviar a minha desafrontada pena da questão dos brasões e
da transgressão que esses acima referidos fidalgotes fizeram e
fazem das regras da heráldica portuguesa. Mas cautela, que eu não
deixarei pelas ruas da amargura a deontologia que me cabe respeitar
no tocante à ciência — a Heráldica — que trata da utilidade,
do objecto e da antiguidade do brasão.
Nem o dito Duque de Verride, nem
esse fidalgote de Pena Alva, nem o próprio meu amo e senhor El-Rei
D. Mário I me impediriam que viesse à arena defender os símbolos
que ataviam o meu brasão. Ficará para a “aula magna” que
tenciono levar a efeito em um dos próximos números deste
“pasquim”...
Os que pretendem diminuir a minha
linhagem, hão-de ficar a saber que fui baptizado na Igreja de Santa
Cruz de Coimbra onde jaz esse Afonso conquistador; vivi alguns anos
em Ourém, terra antiquíssima e de famosos condes, gente ilustre
onde sobressai o homem que aplicou o estratagema do quadrado, esse
indómito D. Nuno Álvares Pereira, que levou de vencida, em
Aljubarrota, as tropas castelhanas. E foi ainda em Ourém que um
dia, jovens mancebos, abraçados às suas raparigas, organizados em
“Ala dos Namorados”, engrossaram as hostes desse condestável
Nuno Álvares... Mas isto é outra história, como quem diz, é
vinho doutra pipa! E doutro grau!
Até à próxima!
Cochim, 25-061992
Conde de Mataduços y Fontão
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