Acesso à hierarquia superior.

Eduardo Cerqueira, José Rabumba, «O Aveiro», 1970, 24 pp.

–  Oração proferida a 27 de Junho de 1969

–  Notas biográficas

–  Louvores e condecorações

EDUARDO CERQUEIRA

 

JOSÉ RABUMBA “O AVEIRO”

 

ORAÇÃO PROFERIDA EM 27 DE JUNHO DE 1969 NA CASA DOS PESCADORES DE AVEIRO NO ACTO INAUGURAL DO MONUMENTO A JOSÉ RABUMBA

HOMENAGEM DO ROTARY CLUBE DE AVEIRO

1970 

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José RabumbaUma colectividade que pretende assumir o significado de uma molécula operante integrada num complexo organismo de dilatadas dimensões à escala mundial, e toma o serviço a outrem ou à comunidade, como anelo e lema, dever e motor de acção; uma agremiação que fundamenta intrinsecamente as razões da sua existência no primado dos imperativos morais e nos valores de feição genuinamente humanista, e neles procura imbuir, dia-a-dia, por livre compreensão e adesão, homens práticos eficientes, profissionais de ramos de toda a sorte, e, através da insinuação na pessoa, conduzi-los à concretização dessas aspirações incentivantes nas suas tarefas e a tudo quanto por vias delas germine; o clube rotário aveirense, enfim, que neste ensejo honrosamente me confiou a missão de interpretar os sentimentos dos seus membros, e em cujas metas primordiais figura o objectivo de que cada um saiba dar de si quanto possa de boa vontade, e esforço, e benefício, e, em cada dia se supere na fraternidade, sendo prestadio, liso e isento, quanto em si caiba olvidando-se, porventura em seu detrimento – tomou esta iniciativa modesta, mais simbólica que venalmente valiosa.

Uma aspiração determinante de superação na lata fraternidade suscita os rotários. Para ela encontraram em José Rabumba um efectivo e acabado paradigma – ele também uma meta, pois é um expoente – que memorizam e apontam aos que desejam manter firmados os pés no solo da vida material quotidiana, mas por alguma preocupação sobrelevante na esfera espiritual são suscitados.

Era de Aveiro este homem que por «Aveiro» se tornou / 8 / conhecido e com o nome da sua terra, como uma legenda antonomástica, se celebrizou.

Assente no substrato geográfico e histórico, o factor humano, que dele recebeu a mesológica influência, confere a cada terra a sua específica alma colectiva.

Produto do ambiente, e ele próprio elemento instigador, o homem, enraizado por ascendência e comunhão de efectivo apego ao torrão de nascimento, recebe e retribui. Indivíduo integral, integrado e integrante, autónomo e parcela da sua comunidade, atraído por centripetação ao berço natal e às cativações que prendem inalienavelmente, por mútua corrente de osmose, o homem colhe e imbui-se, e dá à terra o estilo e as intrínsecas essências caracterizadoras.

A nossa terra é mãe e obra nossa, na cooperação militante e profícua ou na simples presença participante, com o que nos transmitiu e penetrou e deixou gravado nas funduras da personalidade, e com os reflexos que desta revertem.

O nosso diapasão para a musical idade dos sons futuros residirá, vitaliciamente, tanto na canção com que nos embalaram em meninos - e muitas vezes é uma toada de locais feições folclóricas –, como no repique ou no dobre dos sinos do campanário da igreja em cujo aro iniciámos a vida. E, neste caso particular de aveirenses que somos, confundir-se-á também, porventura, com os da «domus» que nos congrega num município, e exprimem, nas horas de cívico júbilo, ou nas infaustas, os sentimentos da nossa comunidade de tão evidentes características peculiares.

A nossa escala de valores provém dos nomes ouvidos pronunciar com veneração, dos fastos exaltados e exaltantes, e dos costumes e tradições radicados, nos quais, se não ainda nós próprios, os familiares e os vizinhos, gente da nossa roda e trato, e da nossa estima, participam em adesão de plena simpatia vinculadora.

A nossa predilecta gama cromática porvindoura, para os que fomos caldeados neste cadinho em que se unificam os múltiplos componentes do aveirismo castiço, resulta da luz que aqui se esbanja, e irisa na atmosfera empoalhada de gotículas líquidas, e da água, que a reflecte e redobra, ao contacto dos tons verdes versáteis e das rubras incandescências dos poentes extasiadores.

Formamo-nos, privando intimamente com a natureza e com a gente. Com esta concelebramos os ritos da nossa devoção à terra que é a nossa; e nela somos uma voz, débil ou forte, e somos um eco.

José Rabumba nasceu e foi criança, há pouco mais de um século, quando esta urbe mesopotâmica enfeitiçadora mantinha ainda a genuinidade que a cosmopolitização vem desvanecendo, nesta terra em ressurgimento, de onde se lhe transmitiram, acrescentadas às hereditárias determinantes, as sugestões da água, que a irriga e penetra com os hálitos de maresia, e em baptismo perpétuo a banha e salga, lhe vinca, indestrutível, a genitura ancestral do mar, que se fez solo e habitáculo, e a ambienta.

Filho de marítimo, neto de barqueiro, o signo da água, corria-lhe nas veias. O lar paterno, humilde e honrado, erguia-se do rés da mesma água, e à beira dela, na então crismada com o sugestivo topónimo de rua das Barcas – e do outro lado do canal, o vinco que é como estigma de progénie da povoação milenária, teve uma réplica de congénere inspiração marítima na rua das Caravelas.

A gente do povo, com quem priva em criança, barqueja, a remo ou à vela que o vento enfuna; mercadeia peixe; amanha as salinas em que o sol se mira, e se lhe reverberam os raios nos pequenos cristais que a água nos deixa quando se esvai na vaporização semi-imaterializadora; cozinha as caldeiradas de aromas delicados e rescendentes; leva a benzer o pão ao S. Cristóvão, o gigante do corpo e da alma, que ao lume da água caudalosa, num hercúleo esforço inquebrantável, só pelo bem sem paga, vencendo toda a sorte de escolhos, todas as fadigas aniquilantes, todos os repetidos e crescentes riscos, à margem desmedidamente / 10 / longínqua conduz a salvo o menino, que era o Menino-Deus.

Tudo lembra e incute, ao rapazinho em que se está forjando a alma heróica, a água que vem ao seu encontro e depois foge, que tem a macieza aliciante de um brinquedo e logo se negaceia e trai blandiciosamente. Tudo lha torna atraente e familiar.

A meia centena de seus passos infantis está o cais e a lingueta em que ele se abre, baloiçam os barcos, atracados e flutuantes, e o homem afoito, de anfíbia actividade, para quem a água é dócil, tem uma rota e uma oficina.

Se a vigilância da mãe, costureira, presa às tarefas do mester ou às lidas domésticas, se interrompe ou afrouxa, na sua necessidade imperativa de infantil irrequietude, o pequeno voluntarioso imita o barqueiro e o pescador, ainda tacteante e inexperto, patinha na ria, molha os dedos, os pés e os cabelos, e saboreia nos lábios o travo salino.

Alguma vez, um passo inseguro trar-lhe-á um momentâneo sobressalto, a sensação do perigo latente na fluidez da água engolfadora, sorvedoura como uma ávida fauce. Mas o rapazio mais crescido, os moços traquinas do Alboi – onde nasceu e lhe proporciona, no seu nome, outra sugestão das naves que sulcam oceanos – e os da outra margem, da Beira-Mar, nadam e recreiam-se como tritões que lhe comandam os caprichos.

Para além da ria alarga-se o mar, da aventura, do imprevisto, dos horizontes a perder de vista, das bonançosas calmarias e das tempestades, caminho de vidas novas a todos aberto em promessa e gerador de tragédias, o mar que é personagem das narrativas empolgantes e o responsável de naufrágios terríficos, nos longes do oceano desmedido ou na «costa-negra» das praias aveirenses.

Completara dez anos, quando António da Benta, seu predecessor aveirense no filantrópico arrostar do perigo com o espontâneo desprendimento do herói, que apenas a fraternidade humana move, salva, ao largo da Costa Nova, trinta e cinco pescadores, que «sem o seu auxílio inesperado – como se afirma / 11 / no diploma que lhe galardoou o feito – teriam irremediavelmente perecido».

Somam-se e conjugam-se os estímulos para o que, nas ingénitas propensões do jovem José Rabumba, apenas necessita de ser despertado.

Andava nos catorze quando o arrais ilhavense Gabriel Ançã efectua, num arrebatador rasgo de coragem, que mais de uma vez repetiria, o salvamento da tripulação do «Nathalie», em frente à praia da Torreira.

Já então tomara os primeiros contactos com o mar. Há dois anos, recém-saído da escola elementar, rapazinho ousado, seguindo na esteira do pai mareante e, porventura, à sua sombra protectora, torrão embarcadiço. Moço de bordo em frágeis unidades mercantes, avalia agora com mais exactidão da valentia do destemido arrais, que o deslumbra e empolga.

Chegado à idade militar, os fados o encaminham para o seu meio de eleição. Cabe-lhe em sorte, que também as sortes acertam algumas vezes em seus desígnios cegos, o alistamento na Armada. O acaso vem ao encontro do que seria a sua opção para dar rumo à vida e, alvoroçadamente, marinheiro por vocação medular, acorre ao apelo do mar, à sua sedução irremovível.

Sulca o Oceano, desvenda-lhe as insídias, aprende a tornear-lhe os golpes e a dominar-lhe os ímpetos. Moço de vinte e seis anos, tripulante da corveta «Sagres», pratica corajosamente o seu primeiro salvamento. Se a espontaneidade com que agia, a prontidão com que avaliava o perigo e concebia o modo de lhe conjurar as malfazejas investidas, e o sentimento irreprimível de abnegação, constitucionais e constantes, o não negassem, esta primeira arrojada proeza, dentro da barra do Douro – quase doméstica e nunca domada – afigurar-se-ia apenas uma estreia reveladora do legendário, «lobo-do-mar» futuro. Tomaria a mera expressão de um ensaio para a extremada personificação da filantropia heróica.

O nome do bravo marinheiro ressoa aureolado pela primeira façanha de incomum valentia. Chega a todos os recantos / 12 / e a todas as alturas – ao próprio soberano que lhe enaltece e louva a corajosa magnanimidade.

Na Armada ganha experiência, tempera-se e adestra-se. Mas, fundamentalmente, não é um militar. Não o atrai a eventual luta contra os homens, mas a luta pelos homens. A estes defende-os até ao último alento: só o mar ataca.

Da mais intrépida força de ânimo, a sua missão ingénita, o seu espírito de servir até ao extremo limite das suas energias, a oferenda voluntária e previsível da vida para as conjunturas de risco iminente, volvem-no exclusivamente contra a morte e as suas ciladas. Empolga-o a intenção de subtrair-lhe as vítimas, e não, seja embora a causa justa e imperativa, e, nunca, acrescentar-lhas.

A predestinação o arrasta para o lugar ajustado à regurgitação da fraternidade humana, que lhe enche o impávido peito desbordante de generosidade. A sua propensão nata e determinadora para o desprendimento das amarras que à vida o vinculam, leva-o a tomar como profissão – que é afinal o seu meio único e parco de a vida manter – aquilo que é uma missão por congénito temperamento: o expor-se, em qualquer momento que uma desgraça possa ser debelada, afoitando-se até à eventualidade da dádiva suprema.

Alista-se como tripulante, e, depois, é patrão do salva-vidas do porto de Leixões, a terra da beira-mar onde se radicou e ganhou maior evidência. Salvar vidas é o seu mais alto destino.

Sempre pronto, por instinto e determinação, por natural simpatia pelo semelhante e por ditame da consciência voluntariosa e prestadia, acorre a repetidas emergências de perigo. Desvanecem-se esses rasgos, reiterados como uma mera obrigação de dever profissional, nos perpetrados feitos de epopeia. Mas torna-se um perito e um símbolo.

Homem amadurecido e temperado, com quarenta e cinco anos vigorosos, em 21 de Outubro de 1911, no naufrágio do cruzador «S. Rafael», à entrada do porto de Vila do Conde, dá a exacta medida da sua estatura de abnegado «lobo-do-mar». A par / 13 / do seu «salva-vidas» acodem à desesperança dos tripulantes que a morte espreita e cobiça, os de Caxinas e da Póvoa de Varzim.

O mar enfurecido amedronta. Ninguém ousa enfrentar-lhe as iras temerosas e consegue dominar o próprio instinto de conservação. Um homem só, entre os que acudiram no propósito de prestar auxílio, será capaz de tomar essa iniciativa quase suicida, e dar o exemplo contagiador, e arrastar atrás de si os hesitantes.

Esse homem sem pavor era José Rabumba, «O Aveiro», em volta do qual se vinha tecendo uma lenda de indomável coragem, aquele a quem se poderia adaptar o pensamento de Beethoven, em que Romain Rolland viu a divisa de toda a alma heróica: «A alegria pelo sofrimento» – a alegria pela imolação benemérita, que é a quintessenciação do sofrimento.

O mesmo genial Beethoven, quando um dia lhe perguntaram as razões profundas que o impeliam a escrever as suas composições de imorredoura beleza exalçante, respondeu esclarecedoramente: – «O que tenho no coração é forçoso que de lá saia; e é por isso que escrevo». Glosando essa declaração, e noutro mais singelo âmbito, o que no coração de mero homem do povo, no cândido coração incomplexo de Rabumba – «O Aveiro» renomado» – se tornava prementemente expansivo para as atitudes de solidariedade humana, era inelutavelmente imperioso que de lá saísse à custa de todo o risco. Não lhe era possível, sem que todo o seu ser se sobressaltasse, assistir a uma desgraça no mar e sem indeclinavelmente intervir com o seu auxílio.

 

José Rabumba arrostou o perigo e com o seu gesto de sobre-humano denodo arrastou e galvanizou os perplexos. Sucessivas vezes enfrentou as fúrias do mar, e recolheu na sua embarcação providencial dois terços dos cento e oitenta e três angustiados náufragos. Reconheceu-o e relevou-o, no relatório escrito sobre o tremendo acidente marítimo, o capitão de mar-e-guerra José da Cunha Lima: «Se este patrão tivesse vacilado um só momento e não se tivesse chegado ao «S. Rafael», os outros barcos fariam o mesmo, pois não creio que houvesse alguém que / 14 / tentasse tão arriscada empresa, vendo recuar esse homem tão experimentado.»

 

As façanhas sucedem-se. Recrudesce-lhe o valoroso ânimo e o prestígio. Menos de um ano e meio decorrido, no encalhe do vapor inglês «Veronese», cerca da Boa Nova, arrebata ao mar cinquenta e dois náufragos. Quando o ano de 1914 chega ao termo, outra unidade inglesa, o «Silurian» naufraga na praia de Angeiras. Ficam a dever a sobrevivência ao seu abnegado destemor mais trinta homens que se supunham já destinados a perecer irremissivelmente.

Nos pequenos feitos quase rotineiros – o pescador a que acode numa contingência dificultosa, o acidente que previne ou a que leva remédio – intercalam-se aqueles em que se agiganta pela audácia, ao mesmo tempo impulsional e reflectida, irreprimível e deliberada, e põe a vida em jogo sem lhe desmerecer o preço.

Já conquistou – aliás sem que à sua índole longânime algum prémio tentasse ou mais incendesse – outros galardões de prata e ouro, do mais significativo lustre, nacionais e estrangeiros, louvores e diplomas de honra. Em 1922, vai fazer agora quarenta e sete anos, o governo concede-lhe a mais alta das veneras nacionais; agracia-o com a Ordem da Torre-e-Espada de Valor, lealdade e Mérito, em reconhecimento das suas reiteradas provas de heroísmo. Acabara de comprová-lo da forma mais relevante, cometendo uma das suas mais destemidas façanhas, no salvamento dos tripulantes do lugre «Felix», um barco mercante que arvorava a bandeira dinamarquesa e soçobrou na praia de Matosinhos.

Aliás, este herói simples manter-se-ia incontaminável às glorificações. Não as buscava, nem no seu peito recoberto de medalhas elas tomavam quaisquer vislumbres de ostensivo envaidecimento aureolador.

Um jornalista que um dia o procura como a uma fonte abundosa de informações sobre as suas acções beneméritas, encontra-o / 15 / reservado e pudibundo, a furtar-se à evidenciação, numa modéstia e singeleza, uma como que candura que desarma a curiosidade de entrevistador indiscreto. A modéstia, nua de todo o cálculo, segundo a expressão que adoptou, chega a afligir: "Para lhe arrancar uma palavra acerca dos seus feitos, só usando de armadilhas e truques, em que ele ingenuamente se deixe envolver».

D. João Evangelista de Lima Vidal, outra alma de eleição, viu-o uma vez, ao patrício abnegado, quando a nossa municipalidade consagrou o nome de José Rabumba na rua em que nasceu. E o bispo insigne, a muitos títulos aveirense de primeira plana e primeira água, observou que, entre a constelação de medalhas, «pela farda azul, da cor do céu e do mar, sem galões nem divisas, lhe corria, em silenciosa glória, impondo respeito, como num templo, o colar histórico, a Torre-e-Espada».

E com aquele ar que, por vezes, se suporia de alheamento do que ao rés da terra se passava em seu redor, se bem que lhe não escapasse qualquer mínima parcela do que à sua roda sucedia, notou penetrantemente: «Parecia, no entanto – tal era a simplicidade da criatura, tal era a sua expressão de inocente que era ele quem menos dava conta da condecoração que assombrava os outros; não a fazia luzir de propósito com os seus intencionais movimentos; não a acariciava complacentemente com os dedos, como é jeito dos quadros a óleo».

Nem a escondia, nem no-la atirava à cara. A Torre-e-Espada não era a aposentação do heroísmo, nem uma jubilação com a consequente dispensa de agir.

Nem ela, com sua aura consagradora, nem a idade, com seus estragos, lhe quebrantam a força resoluta. Já sexagenário, e com o indeclinável ardor longânime da juventude, prossegue a sua missão de audácia e benevolência fraterna. Acudiria ainda ao «Deister», ao «Maria Clara», ao «Rui Barbosa», ao «Gauss», a quantos barcos à sua vista corressem perigo com as suas tripulações. Assim ocorreria ao «Bela Vista», ao «Jamaica», ao «Beger» e quantos mais.

/ 16 / Uma vez que as procelas intimidam os mais ousados, convence-os a acompanhá-lo. Seguem-no para impedirem que se exponha sozinho, contumaz como um iluminado. Quando o vigor físico já não corresponde à decisão do espírito e da vontade que não envelhecem, desfalece, quase sucumbe, mas não lhe consente o ânimo inquieto que fique, espectador e expectante. A nossa espécie tem homens dessa rara espécie. Nós, na nossa mediania de amor ao semelhante, damos a mão que ampara; ele, com o nosso assombro, potencializava o holocausto pleno da própria vida.

Não importa aqui trazer o exaustivo «curriculum vitae» de uma longa vida de épicas benemerências. Confinei-me a dar a traços fugazes e descoloridos, o esboço de uma figura, modesta e de excelsa grandeza, que no povo se confunde e dele emerge nas proporções de um modelo paradigmático. Luziu como um farol de esperança, e restituiu à vida, com incomum e alevantada audácia e simpatia humana – íamos dizer que as fez regressar à vida taumaturgicamente – trezentas existências que o mar já tinha como presa irrecuperável Na grandeza e na glória das lendárias façanhas soube permanecer humilde e não fazer sombra aos homens comuns que quase todos nós somos e, por tantos títulos, lhe ficamos devendo veneração.

O que aqui importa é demonstrar que conhecemos e não esquecemos a lição de humanidade, riquíssima de exemplo e ensinamento, da vida que depreciava em confronto, e, porventura, em troca, com as alheias; é dizer, e sentir que o contamos entre os nossos maiores dignos de perpetuação. Reconhecer, e afirmá-lo, que, quando usou o nome de Aveiro, dignificou a sua e nossa terra e lhe conferiu mais um valioso título de ufania, e juntou mais um raio de viva luz ao resplendor com que na nossa devoção filial vemos envolvido o nosso brasão, de urbe nobre e notável desde remotos tempos.

Deu maior ressalto à águia altaneira das armas simbolizadoras da nossa autonomia municipal e das peculiaridades geo-humanas da nossa comunidade social. Revivesceu, na intensidade / 17 / potencial, a sua ondeante água verde, e o oiro do Sol, e os tons prateados da Lua, representações heráldicas da força que, sem limitações de horizontes, se exerce e expande, e desfere o voo das ascensões. Revitalizou, no brasão emblemático dos nossos predicados e anseios colectivos, o mar, que é fonte de benesses e túmulo de ilusões e de vidas, e os astros maiores para a nossa inspiração, na nobreza acrisolante, na energia criadora, no alçapremar o que em nós tende ao elevarmo-nos e ao purificar de alguma poluição residual qualquer matéria que teima em não se imaterializar, e nos prende ao solo lodoso, ao banal e ao sórdido, ou, nos solta, venturosamente, na evasão reconfortadora dos sonhos – os sonhos, as quimeras, fugidias e atraentes, que são a mais poderosa das forças influentes nos homens, e os tornam perseguidores de ideais longínquos, e criam poetas, e santos, e heróis. E geram o homem másculo e cândido como José Rabumba, «O Aveiro».

Esse «Aveiro», exponencial exemplo de virtudes para os aveirenses seus conterrâneos, recebia inabalavelmente calmo as homenagens de mais alto e rendido preito, como enfrentava os perigos mais feros e temerosos, com a impassibilidade da rocha, sólida e estática, ao rebentar das ondas que nela investem rugentes e iradas. E ao mesmo tempo, a um imprevisto beijo de criança, sensibilizava-se-lhe o coração de perpétua criança sem premeditações, que também era, manancial inexaurível de bondade e benefícios. Então se emociona até às lágrimas, e, homem de bronze, não as reprime. E, pelas rugas, que no rosto cálido de ternura se antecipam às que lhe vincou, com tão flagrante e comunicativa expressão psicológica o escultor Mário Truta, no busto que agora se oferece à veneração dos seus patrícios, as lágrimas lhe correm, salgadas e dulcificantes, como uma bênção purificadora, dos melhores patrocínios. Um herói que chora – um homem em toda a plenitude.

Homens do mundo e homens da sua terra, os rotários aveirenses, na superlativação do que é primordial no seu ideário congregador de boas-vontades compreensivas e cooperadoras, / 18 / encontram um símbolo na cristã sublimação da filantropia de José Rabumba, «O Aveiro», por adenda e antonomásia, alusiva à sua naturalidade, e ao orgulho – se esse sentimento com ressaibos de egoísmo e fatuidade existia no seu coração – que sentia por nela haver nascido. E a Aveiro, à beira da água, à beira da ria, que é a mãe desta terra salgada e enleadora, trouxeram o nome e a fisionomia do homem que se decalca e vinca, e penetra na fundura mais íntima e lídima do aveirismo inspirador de devoções.

Os valores perenes são os autênticos valores das terras, e não os encontramos senão nos homens, e no passado que se conserva no presente para fundamentar o futuro rasgado, nas raízes que permanecem, enquanto as folhas caducas morrem, e fenecem as flores, e os seus aromas se esvaem. Nada mais indestrutivelmente perdura numa terra que os mortos, os mortos que efectivamente viveram e a viveram. Nada a anima mais, e mais a estimula e lhe imprime uma personalidade.

Trazê-lo em efígie, no bronze que afronta o tempo do porvir, num preito de reconhecimento e exaltação e como um exemplo que suscite, é, na sua memória veneranda evocada permanentemente, acrescentar ao património espiritual de Aveiro uma pedra preciosa de mil luminosos reflexos cintilantes.

Creio que Aveiro, e nós, aveirenses. que comungamos no mesmo culto cívico dos nossos maiores, com este singelo e modesto monumento, que só vale pela intenção – e, então, com verdadeiro mérito pela obra dos artistas que o conceberam e tão significativamente no-lo deram: o escultor Mário Truta e o arquitecto Rogério Barroca – e, pelo que desperta, e por quanto representa de admiração pelo gigante que supunha medir-se pela nossa craveira, é um enriquecimento.

Saímos daqui, de certo, mais reconfortados por um acto de rememorativa justiça, sentindo que mais uma força se nos impõe para as generosas e imperativas obrigações de cidadania e, na relembrança incentivante devida a José Rabumba, saímos mais completa e mais alegremente aveirenses, Aveiro neste momento é mais funda e genuinamente Aveiro.

Monumento a José Rabumba.

ESCULTURA - Mário Truta                                               ARQUITECTURA - Rogério Barroca

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NOTAS BIOGRÁFICAS

José Rabumba nasceu em Aveiro, a 24 de Fevereiro de 1866.

Foi redigido nos seguintes termos o assento do seu baptismo: «Aos quatro dias do mez de Março do anno de mil e oito centos e sessenta e seis, n'esta Igreja Parochial da Senhora da Glória d'esta cidade, Concelho e Diocese de Aveiro, baptizei solemnemente e puz os Santos Oleos a um indivíduo do sexo masculino, a quem dei o nome de Joze, que nasceu na Rua das Barcas d'esta Freguesia às nove horas da manhã do dia vinte e quatro de Fevereiro do corrente anno, filho legitimo de Manuel Rabumba, maritimo, e de Bernarda de Jezus, costureira, naturais, recebidos, parochianos e moradores n'esta Freguesia; neto paterno de Luiz Francisco Rabumba, barqueiro, e de Vicencia Angelica, e materno de Antonio Rodrigues Limas, barqueiro, e de Thereza de Jesus, todos naturais d'esta Freguesia. Foram padrinhos Joze Rabumba, casado, maritimo, e Simphrozia Augusta, solteira, costureira, ambos d'esta Freguesia, os quais todos sei serem os proprios. E para constar lavrei em duplicado este assento, que, depois de ser lido e conferido perante os padrinhos, assignei: os padrinhos não assignaram por não saberem escrever. Era ut supra. O Prior, Francisco de Souza Janeiro».

Com dez anos, pouco após a saída da escola primária, iniciou a vida do mar, na Marinha Mercante.

Atingida a idade militar, foi incorporado na Marinha de Guerra, em 1887. Fez parte da guarnição da corveta «Rainha de Portugal», na qual seguiu para Moçambique.

De regresso à Metrópole, foi transferido para a corveta «Sagres», ancorada no rio Douro. Aí, em 1892, iniciou a longa série de heróicos salvamentos, acudindo a um rapazinho prestes a afogar-se.

Ingressou nos quadros do pessoal marítimo do Porto de Leixões, em 1893. Exerceu as funções de cabo-de-mar e de patrão de salva-vidas, sucessivamente nos barcos «D. Carlos», «Leixões», «Porto», «Rio Leça» e, por último, no «Carvalho Araújo».

Faleceu em 25 de Março de 1952.

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LOUVORES E CONDECORAÇÕES

– Medalha de prata, de mérito e filantropia, concedida em 31-12-1892, pelo acto de abnegação e coragem que praticou, com risco da vida, em 3 de Outubro desse ano, lançando-se de bordo da corveta «Sagres», surta no Douro, e salvando uma criança na eminência de perecer.

– Medalha de cobre, do Instituto de Socorros a Náufragos, por salvar um marítimo que caiu ao mar, no porto de Leixões, em 20-12-1906.

– Diplomas de louvor, do I. S. N., por diferentes serviços de salvamento prestados no seu salva vidas, quando da cheia do Douro, de 19 a 26-12-1909.

– Medalha de prata, do T. S. N., como patrão do salva-vidas «Leixões», pelo salvamento, em 8-2-1910, de oito náufragos da barca «Soares da Costa», sob violento temporal, no porto de Leixões.

– Diploma de louvor, do I. S. N., pelos socorros prestados, a bordo do mencionado salva-vidas, durante o temporal de 6 a 12-12-1910, conseguindo salvar muitas pessoas e vidas.

– Medalha de ouro, do I. S. N., por abnegados serviços prestados em 21-10-1911, em diversas sortidas, no salvamento dos 129 oficiais e praças do cruzador «S. Rafael», à entrada de Vila do Conde.

– Medalha de ouro, do I. S. N., pelos relevantes serviços prestados por ocasião do naufrágio do vapor «Veranese», em Leixões (Boa Nova), em que se lhe ficou devendo o salvamento de 25 pessoas, em 16-1-1913.

– Medalha de Honra de ouro, da Société des Hospitaliers Sauveteurs Bretons, por actos de salvamento e abnegação, particularmente no mesmo naufrágio. (16-3-1913).

– Medalha de prata, da Sociedade Humanitária do Porto (9-8-1913), contemplando as seus actos de coragem a favor da Humanidade.

– Medalha de prata, do I. S. N., pelos relevantes serviços prestados, com risco da própria vida, no salvamento dos 30 tripulantes do vapor inglês «Silurian», encalhado na praia de Angeiras, na noite de 12-12-1914.

– Grau de Cavaleiro da Ordem Militar da Torre e Espada de Valor, Lealdade e Mérito, concedido em 10-5-1922, pelo relevantíssimo serviço que prestou, com risco da própria vida e da guarnição do salva-vidas, os tripulantes do lugre-escuna dinamarquês «Felix», no dia 3-2-1922, sob violento temporal, no porto de Leixões.

– Medalha de cobre, do I. S. N., pela esforçada tentativa de salvamento dos tripulantes do vapor alemão «Deister», na barra da Douro (30-12-1929).

– Plaquete concedida pelo governo alemão, e assinada pelo presidente Hindemburgo (25-19-1932) pela sua acção no naufrágio do vapor alemão «Gauss».

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Em 18-2-1923, a corporação dos Bombeiros de Matosinhos-Leça, promoveu uma sessão solene para lhe fazer entrega das insígnias da «Torre e Espada», adquiridas por subscrição pública. Presidiu o vice-almirante Hipácio de Brion, em representação do Ministro da Marinha e enalteceram as qualidades do heróico «lobo-do-mar» os drs. Leonardo Coimbra, Silva Matos e Martins de Almeida e Eduardo de Azevedo.

De Aveiro estiveram presentes deputações da Câmara Municipal, das corporações de bombeiros e colectividades e duas bandas de música.

– Em 19-3-1946, durante as festas comemorativas do cinquentenário da Sociedade Recreio Artístico, e por sugestão desta colectividade aveirense, a Câmara Municipal fez descerrar na antiga rua das Barcas, a lápide toponímica com o nome de José Rabumba.

– Em sessão de 4-9-1948, a Câmara Municipal de Matosinhos considerou-o como filho do concelho, título de que passou diploma em pergaminho.

– A 23-12-1952, o Instituto de Socorros a Náufragos deu o seu nome à Estação de Serviços de Socorros a Náufragos de Leixões.

– A mesma instituição designou um salva-vidas com o seu nome.

Além dos apontados, prestou beneméritos serviços, praticamente em todos os invernos em que exerceu as funções de patrão dos salva-vidas do porto de Leixões, recolhendo e salvando numerosos tripulantes de embarcações de vela e fragatas de carga, e prestando auxílio variado a diferentes navios fundeados naquele porto, sempre com a maior abnegação e perícia.

Composto e impresso na Tipografia «A Lusitânia» Aveiro – Junho /1970

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EDIÇÃO DO ROTARY CLUBE DE AVEIRO

Eduardo Cerqueira, José Rabumba, «O Aveiro». Oração proferida em 27 de Junho de 1969 na Casa dos Pescadores de Aveiro, no acto inaugural do monumento a José Rabumba. Homenagem do Rotary Clube de Aveiro, 1970.

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Para obter um exemplar impresso, mandar imprimir frente e verso e dobrar ao meio, formando um caderno.


–  Oração proferida a 27 de Junho de 1969

–  Notas biográficas

–  Louvores e condecorações

Colab. Énio Semedo
Maio - 2014

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11-05-2019