Da rua de
Sá e depois da capela da Senhora da Alegria, em frente, segue-se a rua
de Hintze Ribeiro, franqueada ao norte pelo largo do Senhor das
Barrocas. Nós, porém, preferimos por momentos outro caminho, ao encontro
das marcas do tempo.
Assim,
mal passada a capela velhinha, tomamos à esquerda uma “travessa” à rua
de Sá, buscando, no seu sinuoso traçado e no acentuado declive, os
passos sofridos de gerações de antanho. E eis que, logo à mão esquerda
se refreiam os passos, pois se nos oferece um momento de pausa à vista
de casa antiga com seu prolongamento de aido em muro robusto onde se
enquadra um belo nicho vazio de imagens, mas cheio de sugestões. Por
trás da pintura queimada que branqueia estes muros, facilmente se
adivinham materiais de outras épocas a darem-lhe resistência e a
consolidarem as divagações do presente. Mas a rua sinuosa e torta
acentua-se nas suas características, deixando ver ao fundo um fontanário
de singelo e formoso recorte, que sugere artes de canteiros barrocos.
À vista
deste fontanário que escadarias antigas envolveram, descobre-se,
sumptuoso e truculento, o templo erguido em louvor do Senhor das
Barrocas, à custa de muitas esmolas que a fé dos aveirenses e anónimos
peregrinos ali depositaram. E assim também tornaram fácil de vencer um
caminho declivado, barrento e frondoso que, por muitas décadas, acoitava
salteadores e aventureiros emboscados, esperando os transeuntes.
À voz dos
milagres se branqueou a imagem do local, convertido pelo princípio de
Setecentos em local de peregrinação. E, por isso, os devotos aveirenses
ali fizeram erguer em pedra branca, comprada longe e para obra grande,
grande e belo como os insondáveis mistérios da Providência, um magnífico
templo ao gosto da época em memória dessa intervenção milagrosa que
levou para bem longe as enfermidades que ensombravam o "caminho régio".
A primeira pedra se lançou em dia incerto, a 8 ou 15 de Novembro de
1722, conforme relatam os documentos, segundo projecto de Gaspar
Ferreira, mesmo que outros defendam Claude Laprade.
Mas,
afinal, – e esta é outra perspectiva – que importava o nome do seu
arquitecto, o dia ou a semana do início do templo, se o que estava em
causa era construir para maior glória de Deus?
Porém,
também assim estava escrito, acabada que foi a obra – e nunca se acabou
de todo como o seu interior comprova, pois já a fé e as devoções dos
aveirenses para ali não convergiam em caudal de esmolas –
interrogavam-se alguns que fazer de tão magnífico templo. E a obra, sem
um destino definido que lhe conferisse uso e dignidade de cerimoniais ao
nível dos sonhos de quem a havia projectado, lá foi ficando como marco
de fé. De fé e de um profundo carácter barroco de que tão poucas marcas
há em Aveiro na vertente de arquitectura… continuando como obra de
referência do património esquecido!
Outras
crónicas também esquecidas, quem sabe, relatam que do alto da cúpula,
bem lá do alto onde se sobe por estreita escadinha colada às telhas, iam
os aveirenses da Beira Mar e dos lugares de Esgueira espreitar o
horizonte da costa atlântica a ver se viam chegar os barcos do mar alto
pela estreita garganta da barra, ao largo da Vagueira, até ao princípio
de Oitocentos.
A partir
daqui, com a entrada fixa na Barra, dilatavam-se as meninas dos olhos
das famílias angustiadas à espera de ver as velas enfunadas no contorno
do Forte e até à entrada do Canal de S. Roque. E terá sido assim que a
igreja das Barrocas foi sucedendo à capela de Sá… na função de atalaia
da Ria!
O espaço
envolvente foi ordenado em várias fases, ganhando maior amplitude e
desenvolvimento pela década de 1980, quando se consolidou ali, a
nascente, uma nova rua, evocando, mais tarde, o emérito estudioso
aveirense Rangel de Quadros. Por ela cresceu o casario em prédios de
propriedade horizontal, dando de seguida lugar a escritórios e outros
estabelecimentos, de entre os quais se destaca, pelo nome granjeado
entre a gastronomia regional, o restaurante Cagaréu – nome
abrangente de todos os que tiveram por berço o bairro da Beira-Mar ou,
de forma mais lata, os habitantes da freguesia da Vera Cruz.
O topo
sul desta rua entronca no eixo principal que, subindo de Sá para
Esgueira, recebeu o nome do Conselheiro Hintze Ribeiro. Não se sabem as
verdadeiras razões que poderão ter levado os aveirenses a honrar esta
figura política. Importa, no entanto, dizer que Hintze teve a seu cargo
diversas pastas ministeriáveis desde 1881 e, entre 1893 e 1906, como
chefe do partido Regenerador, alternou na chefia do Governo com José
Luciano de Castro, chefe do partido progressista. Daí a quase certeza de
que o seu nome tenha vindo para a toponímia aveirense pela vontade dos
seus correligionários, como ainda tão recentemente, com exemplos
contemporâneos, temos visto na toponímia da cidade.
Desta
rua, no entanto, importa ainda dizer que ela era fundamental – e única,
até há pouco mais de uma década, na ligação de Aveiro a Esgueira,
estrangulada na sua função por uma "passagem de nível" que foi, por
gerações, um quebra cabeças para os vizinhos, para os maquinistas da CP
e para os transeuntes desprevenidos que ali estugavam o passo e
arregalavam os olhos ao medo dos comboios. Terminada essa função vital
de tantas décadas, a rua quedou-se, pacata, integrada na normal vida da
cidade, aparecendo por ali escritórios e casas comerciais. Destas, pela
antiguidade, registam-se os armazéns Marabuto e oficina de
automóveis, ao lado. Mas a lista tem crescido...
Poucas
referências restam hoje, nesta rua, que nos façam recuar no tempo, nem
mesmo aos reajustamentos do último quartel de Oitocentos, tal foi a
transformação operada. Uma leitura mais atenta, no entanto, que aproxime
o real do imaginário, permitir-nos-ia uma série de interrogações à vista
do largo do Senhor das Barrocas, obrigando os moradores e os
responsáveis pelo planeamento urbano e paisagístico da cidade a
estudarem formas de melhor articulação entre o verde envolvente do
templo e as urbanizações entretanto surgidas.
Só assim se recuperaria
o encanto perdido de um autêntico recanto de fé que a centúria de
Setecentos construiu para nós e que persiste, reavivado na memória e
consagrado na toponímia da nova artéria que ali desemboca como Rua do
Senhor dos Milagres. |