Dentro de pouco,
inteirados do que se passa, aparecem de todos os lados, na ânsia de
prestar qualquer auxílio, homens, mulheres, e até crianças... Há sempre
alguém, mais animoso e expedito, que se arvora em comandante desses
improvisados «bombeiros». E começa a faina: empunhando toda a casta de
vasilhas, quem pode vai transportando água, extraída dos poços ou fontes
próximas; lançam-se escadas às paredes; trepa-se às janelas e telhados;
arrombam-se portas, salvam-se pessoas, animais e haveres.... Se no fim
se reconhece a quase inutilidade dos esforços e canseiras despendidos,
visto ter o prédio ficado reduzido a paredes nuas, todos sentem a
consolação do dever cumprido e a satisfação que sempre nos dá a prática
desinteressada do altruísmo.
Este altruísmo
obscuro e anónimo regista-o por vezes a literatura, pondo-nos diante dos
olhos a acção de desprotegidas populações perante a brutalidade dos
terramotos, incêndios, inundações, derrocadas, ciclones, em suma, dos
mil flagelos que põem em perigo ou totalmente destroem o bem-estar e a
vida da pobre humanidade.
Reproduzirei aqui,
para regalo dos leitores da «HUMANITÁRIA», um pequeno trecho de bela
descrição de incêndio, ocorrido numa vila. Deve-se à pena de uma das
mais notáveis escritoras do nosso tempo — D. Adelaide Félix
(1).
Diante de casa
incendiada, chegam bombeiros, e povo, muito povo, para ajudar. A certa
altura do ataque, em ponto oposto àquele em que os bombeiros trabalham,
aparece sobre a cimalha da casa, «com uma criança nos braços, uma
rapariga, de cabelos desprendidos, feições desfeitas num esgar».
O fogo cresce, e
continua a ouvir-se o rebate dos sinos na matriz. Várias tentativas,
frustradas da parte de dois corajosos rapazes... E, «naquela emergência
de morte, só ficaram duas realidade: a da chusma, que estendia os braços
à desgraçada, pedindo que se atirasse, e a da lancinação materna, lá no
estreito tabuleiro de argamassa, apertando o menino mais e mais ao
peito.»
E a autora continua:
«Foi então que,
ajudado por um punhado de homens, João Maria surgiu, congestionado,
olhos raiados de sangue, arrastando um mastro delgado e comprido.
Trouxera-o do adro da ermida, frente à qual, na manhã seguinte, o especariam, entre uma farta dúzia, nos alindamentos do terreiro para as
festas da Senhora da Saúde. João Maria sabia-os ali, que seu pai os
emprestara para luxos da romaria, e ele mesmo o transportara no carro, a
junta a puxar que era um louvar a Deus.
Onde a mulher se
mostrava, estacou, e quedou firme, a suster o pé do madeiro, enquanto os
braços dos outros lhe iam empurrando o topo
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para cima, empurrando sempre, no fito de endireitá-lo.
— Levantem mais!..
Levantem!... Força!... Força, seus m...!
Em dado momento, por
trás da cornija onde a mulher se empoleirara, parte do telhado ruiu com
fragor, espadanando no ar um inferno de lumes, mas ninguém se acobardou.
Agora o pinheiro já principiava a erguer o cimo, jogados à bruta, em tal
sentido, os joelhos, os ombros e as mãos calosas dos homens. Entre eles,
João Maria centuplicava as próprias energias, acudindo como convinha.
Por fim, num arranque hercúleo, conseguiram verticalizá-lo. Lesto, o
moço atirou fora o colete, arregaçou até às coxas o surrobeque das
calças. Num galão, achou-se aos ombros dos outros e, abraçado ao poste,
começou a trepar resolutamente, como quando, no domingo mais festivo
daquelas redondezas, ia buscar, ao alto do mastro grande, a cobiçada
nota de cem.
A meia altura,
sentindo que o tronco vacilava deveras, bolsou para os de baixo uma
obscenidade. Depois, a seu tempo, mandou:
— Encostem à parede!
Devagar... Devagar!
Lentamente o mastro
perdeu a vertical. Pingando suor, o cacho humano que o sustinha
conseguiu encostá-lo à cimalha. Ágil como um símio, João Maria fincou os
pés na plataforma ardente.
Tomou a si a mulher.
Prendeu-a bem com o braço esquerdo, enquanto com o direito lhe arrancava
do colo o menino. E com ela bem colada à ilharga, berrou para a malta
crispada numa agonia:
— Aí vai o miúdo...
Aí vai o miúdo... Cuidado!
Num balanço ligeiro,
a modo que o fedelho não raspasse na cantaria, gingou um pouco o corpo
e, surdo aos berros aloucados da mãe, cujos braços continuava a manter
garrotados contra o seu flanco atirou a criança para a almofada feita de
braço estendidos.
Depois, jungiu-se ao
poste, carregando com a mulher, que acabava de desmaiar sobre o seu
ombro. Soltou-se da cimalha, comprimindo entre a coxas, rijas como
tenaz, o redondo madeiro. E assim foi descendo, devagar, ajudado o
gancho das pernas pela pressão tentacular do único braço livre.
Já no chão, entregou
a rapariga ao mulherio que choramingava; perguntou pela criança. Estava
fero, o inocente.
Só então deu por si,
sentindo escorrer um líquido quente pelos joelhos e pelo braço direito,
cuja manga pendia em tiras. Olhou, espantado: era sangue. Mas não lhe
doía; o que lhe doía, coisa esquisita, era o braço esquerdo... Reparou:
acima do pulso, do lado exterior, vermelha e tufada, uma funda queima
arrepanhava a carne. E nem se lembrou de que, ao saltar sobre a cimalha,
batera com o braço num dos enfeites de ferro que a guarneciam, e eram
outras tantas brasas naquele lumaréu.
Na manhã seguinte à
noite em que João Maria roubou ao fogo aquelas duas vidas, a rapariga
estava viúva, sem um chavo de seu».
Este João Maria
salvara da morte a mulher que fora sua noiva e o trocara por outro
homem, — e, com ela, o inocente fruto da traição!
JOSÉ TAVARES
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(1) — Do livro de contos «Eu,
pecador, me confesso..,,», conto «Quando uma brasa se apaga...». |