Há
males que vêm por bem, diz o nosso povo. À quelque chose
malheur est bon, dizem também, no mesmo sentido, os franceses.
E a própria Igreja, entrando no mesmo espírito de observação e de
crítica, chama à culpa do homem uma culpa feliz — oh felix culpa,
porque teve o mérito, embora negativo, de nos trazer como
consequência um tal Redentor!
O
MEU GRÃO
DE INCENSO
Por D. JOÃO
EVANGELISTA DE LIMA VIDAL |
SAUDAÇÃO
Com duplo prazer
acedo ao convite que me foi dirigido para colaborar neste número
especial de homenagem à Associação Humanitária dos Bombeiros
Voluntários de Aveiro, que festeja agora o seu 75.º aniversário.
Como Governador
Civil saúdo essa prestimosa Associação de dedicados servidores
do bem público em tão útil e desinteressada missão,
desejando-lhe as maiores prosperidades e afirmando-lhe todo o
apoio às suas legítimas aspirações.
Como aveirense
formulo os melhores votos para que esta cidade atinja, em tão
simpática e altruísta devoção ao amor do próximo, a mais
elevada altura na sua organização e na eficiência dos seus
serviços.
O ideal de
bem-fazer do Bombeiro deve ter no coração de todos lugar de
honra. Creio que a Associação Humanitária dos Bombeiros
Voluntários de Aveiro vive, efectivamente, na gratidão dos
aveirenses que não esquecem o muito que lhe devem.
FRANCISCO DO VALE GUIMARÃES |
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A mim não me lembra já nada do
incêndio que devorou o Convento de Sá, ainda que esteja na ideia de
que esse fogo não tenha sido anterior à minha idade. Nem me lembra
de que a minha mãe, que habitou nessa casa até à data do seu
casamento, nos tenha entretido alguma vez com a narração da
desgraça; o que não tira nada à verdade histórica das chamas que
alarmaram a terra e consumiram por inteiro o Mosteiro de Sá.
Dessas ruínas, porém, brotou uma
vida, como das cinzas da Fénix ressurge uma águia ainda mais
poderosa e mais bela. Do braseiro de Sá nasceu, com efeito, a ideia
profunda de se evitar no futuro a repetição da catástrofe.
Logo ali, por entre as labaredas,
começou a fermentar a instituição dos bombeiros. E, como semente
lançada à terra fértil, o pequenino grão tomou depressa volume maior
até ser isto que nós todos estamos a ver, consolados, cheios de
esperança, diante dos nossos olhos maravilhados.
Diz-se na «Humanitária» que as
corporações dos bombeiros são
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principalmente por gente do povo, trabalhadores, pescadores,
operários, homens do campo ou das oficinas, das mais humildes
profissões sociais.
Isto é uma verdadeira consagração,
quase diria uma auréola de santidade. São os mais pobres, os
deserdados, os que pouco ou nada têm a sofrer com o fogo, são esses
mesmos, sem sombra de inveja, sem ressentimentos da sorte, que mais
se esforçam e se arriscam para salvar a fortuna dos grandes. A mim,
só pensar nisto, as lágrimas me vêm logo aos olhos. Não se pode ter
uma alma mais heróica, mais magnânima.
Mas longe de mim poder pensar que
esta espantosa magnanimidade seja privilégio exclusivo dos braços
fortes do operário ou do cultivador dos campos. Todos se lembram de
que, em Lisboa, quando os sinos tocavam a fogo, o primeiro a
aparecer no local do sinistro, com os cabelos ao vento, com o
machado e o martelo nas mãos, com o coração a desdenhar dos
perigos, era o Infante D. Afonso, muito mais esplendoroso e mais
belo no ataque ao incêndio do que pomposo e cheio de fausto nas
cerimónias da corte. Até lhe ficou, com a pressa desses momentos, o
nome popular e ingénuo com que o povo consagrou a sua pitoresca
personalidade e, por assim dizer, lhe gravou no caixão: Arreda!
E, se aqueles que vivem mais do
espírito e da inteligência do que da força dos músculos, os chamados
intelectuais, não aguentam frente a frente com os esforços de lutas
tamanhas, não deixam no entanto de comparecer no teatro do valoroso
combate, fazendo aquilo de que é capaz a sua carne mais frágil:
levar algum balde de água à mangueira ou ajudar em pequenos
acessórios detalhes o génio e o esforço dos grandes trabalhadores.
Todos ali se encontram juntos, verdadeiramente nivelados, nessa obra
de salvação!
Aveiro, 29 de Dezembro de 1956.
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JOÃO EVANGELISTA,
Arcebispo-Bispo de Aveiro
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