Mário de
Bastos Rodrigues, no ano lectivo passado, finalista do nosso
Liceu, apresentou este artigo para ser publicado no último número do
«Farol» do
ano escolar transacto. Na impossibilidade de o fazer então, muito
gostosamente o
incluímos neste primeiro
número do Farol do presente ano lectivo.
COMO abonação de um
minucioso espírito descritivo, esse documento é um dos mais
perfeitos da nossa Literatura, e ainda pelo que apresenta de
elementos geográficos, etnográficos e etnológicos, numa profusão de exotismo
tropical, é surpreendente. Seduz pela novidade do conteúdo, encanta pela dissecação reiterada do
homem novo e da terra nova – e, acima de tudo, vale pelo que tem de
humanismo, no seu
sentido mais profundo, e de experimentalismo, fundindo, portanto, num conjunto significativo as
tendências histórico-culturais que estigmatizaram a Renascença.
A fauna, a flora e todos
aqueles elementos que assinalam a
presença humana nessas terras de Vera Cruz – aí vivem na relação de Pêro Vaz de Caminha, revelando
a faceta universalista
da alma do português que, rompendo os fortes grilhões de uma
individualidade território-cultural, se abalançava ao alto
encargo de colonizar e civilizar o povo inculto e selvagem. Existe,
assim, como parte integrante desse espírito universalista, uma
ânsia de novidade que já se encontra plenamente satisfeita na carta de Caminha, quando
este nos descreve em toda a sua pujança natural e selvática uma
flora exuberante, uma fauna exótica e, sobretudo, ao detalhar a
individualidade física (e até
psicológica) do nativo tropical.
Bom observador e
realista, Pero Vaz de Caminha frisa «não porei aqui mais do que
aquilo que vi e me pareceu.» (1)
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O primeiro elemento que ressaltou e feriu a sensibilidade
do autor (por ordem de observação) foi o vegetal: (... topámos
alguns sinais de terra os quais eram muita quantidade de ervas
compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a
que dão o nome de rabo-de-asno. E, quarta-feira seguinte,
pela manhã topámos aves a que chamam fura-buchos. [...] Dali
avistámos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito,
segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro.»
Como pudemos reparar, só finalmente se avistou o elemento humano.
Este – o primeiro contacto com a novidade do mundo
desconhecido que era o território brasileiro. Evidentemente que as descrições dos elementos referidos se interpenetram mais desenvolvidamente ao longo da narrativa de acordo com a sua
pertinência e oportunidade.
De ordem botânica, as referências são raras, e apenas espooradicamente se nos atesta a exuberância da vegetação («... não
podíamos ver senão terra com arvoredos»; «... esse arvoredo que
é tanto, tamanho e tão basto» e a existência de espécimes vegetais, como a palmeira e os palmites; o «inhame»; os ouriços verdes do urucú e os seus grãos vermelhos que, uma vez esmagados,
serviam de tinta com que o nativo se pintava; as canas, usadas
para pontas de setas – sem falar no já citado «botelho» e no «rabo-de-asno», únicos elementos de vegetação marítima.
Da fauna também pouco temos a dizer. Caminha surpreende-se
especialmente com a abundância e diversidade das aves:
papagaios coloridos, rolas, pombos e pegas são elementos que se
fixam na sua retina. (Escusado será dizer que as penas coloridas
e utilizáveis eram preparadas devidamente para uso dos indígenas, desde as armas aos sombreiros).
Mas de todo esse impressionismo naturalista, como elemento
mais significativo e gostosamente observado, surge o habitante
do novo mundo com todas as suas condições físicas e psicológicas que não escaparam ao relator. E neste campo, afirma-se que
P. V. de Caminha se antecipou admiravelmente a investigações
posteriormente realizadas no âmbito da cultura tropical.
Para o Lusitano mareante, sem dúvida que a descoberta mais apreciada
era a do homem novo. E as transmutações comerciais
e humanas não se faziam esperar. De um lado, o primitivismo das
«continhas brancas, miúdas»; do «sombreiro de penas de ave»; dos
arcos com setas. Do outro, a civilização, condensada nas «carapuças
de linho», nos «barretes vermelhos», nas camisas diversas, etc..
A descrição física do aborígene é especificada: «A feição
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e bons narizes, bem feitos. [...] traziam os beiços de baixo furados e metidos neles ossos brancos e verdadeiros, do comprimento duma mão travessa
[...]. Metem-nos pela parte de dentro do
beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita
com roque de xadrês [...]. Os cabelos são corredios». Mais à
frente: «...os corpos seus são tão limpos, tão gordos e formosos,
que não pode mais ser». Eis aqui uma análise «in loco» do tipo
físico do indígena, nos seus aspectos mais distintos. A mulher
surge-nos em toda a sua pureza natural e a sua feição mais típica é o facto de andar «com um menino ou menina ao colo, atado
com um pano [...] aos peitos, de modo que as perninhas lhe apareciam. Mas as pernas da mãe e o resto não traziam pano algum».
Psicologicamente P. V. Caminha, sintetizando, diz que os
indígenas lhe parecem «gente bestial, de pouco saber e por isso
tão esquiva». Quase no fim, e mais familiarmente, afirma: «...esta gente é boa e de boa simplicidade». De um modo geral, podemos fixar que este homem novo é naturista (vive em íntima
dependência da natureza e naturalmente), é ingénuo e inocente
(«...sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas») e imitador.
As relações humanas entre o português civilizado e o primitivo não
podiam ter sido mais amistosas, pelo que vemos na relação,
embora inicialmente a desconfiança e timidez perturbassem ligeiramente os contactos e os tornassem um pouco esquivos. Mas a
familiaridade, o contacto mais íntimo, a sinceridade da nossa alma
efusiva – não enganaram o selvagem, que vai reconhecendo progressivamente no recém-chegado uma superioridade humana e
objectivos dignos. A prova é que, de cada vez que os grupos de
indígenas assomavam à praia, a pouco e pouco eles iam abandonando
os seus instrumentos de defesa. A expressão máxima dessa
humanidade de relações encontra-se na indiscriminação e boa
vontade com que europeus e indígenas se auxiliavam mutuamente e no gáudio recíproco com que se divertiam, dançando ao toque da buzina ou da gaita.
É Caminha quem nos conta: «levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina e começaram a
saltar e a dançar um pedaço». Mais à frente, e referindo-se ao
marinheiro Diogo Dias, o autor prossegue: «E meteu-se com eles
a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita»!
Quase no final da Carta, depois de analisar e deduzir todos
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esses elementos do primitivo brasileiro, Pêro Vaz solicita a D.
Manuel:
«E, segundo o que a mim e a todos pareceu, a esta gente não
lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos,
porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer [...]. E por isso,
se alguém vier (do reino), não deixe logo de vir clérigo para os
baptizar».
Não poderia haver contacto mais sublime, nem compreensão mais perfeita. A aceitação da nossa presença pelo nativo foi
completa, pelo menos inicialmente.
E nós correspondemos, sem dúvida. Eis o significado da relação de Caminha.
Mário de
Bastos Rodrigues
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(1) - Todas as
transcrições da carta são feitas em português moderno. |