Mário Júlio Varela
Palestra
de João de Frei/as Raposo, subordinada ao titulo Pedro Alvares Cabral e a Descoberta do Brasil.
Ex.mo Sr. Reitor
Ex. mos Srs. Professores
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Caros Colegas
Um dos mais notáveis e significativos empreendimentos da nossa
epopeia marítima foi, sem sombras de dúvida, o descoberto do Brasil,
levada a cabo em 1500, logo um ano após o chegada a Lisboa da
frota de Vasco da Gama. E não é de estranhar o curto intervalo que
separa estes dois feitos, porquanto o primeiro determinou, em certa
medida, aquele que se lhe seguiu.
Na verdade, regressado Vasco da Gama da sua viagem à
Índia,
reconheceu El-Rei que ele não conseguira aí estabelecer as
necessárias relações diplomáticas, com vista ao exclusivo do
comércio do Oriente. Não quer isto dizer que o valoroso capitão não
tivesse diligenciado nesse sentido junto do Samorim de Calecute;
todas as suas
tentativas fracassaram, porém, devido às intrigas movidas pelos
infiéis,
receosos de que os portugueses se apoderassem do importante comércio oriental, que até aí dominavam.
Por isso, surgiu a necessidade de determinar os preparativos de novo
empreendimento, a fim de que, mediante alianças com os naturais da terra e lutas contra os infiéis, fossem instituídas naquelas
distantes paragens as directrizes de carácter político e económico
que a
metrópole pretendia.
Para chefiar a expedição, que apresentava características de certo modo singulares, escolheu D. Manuel um homem sem grandes conhecimentos náuticos, o que, à primeira vista, parecerá um absurdo.
No entanto, não poderia ser mais acertada a decisão do monarca, ao
eleger Pedro Álvares Cabral paro o desempenho de tão árdua tarefa.
De facto, se atendermos aos traços fundamentais do seu carácter,
logo veremos tratar-se de uma personagem dotada dos predicados
exigidos por tão delicada missão.
Pedro Álvares Cabral nasceu
em Belmonte, à volta do ano de 1467. Como afirma Jaime Cortesão, «era
faustoso, amigo de grandezas e, como tal, possuidor de grande
estado».
Dotado de índole guerreira, era extremamente cauteloso nas suas
atitudes. Homem de grande cultura, tinha em Álvaro Gil Cabral o seu
terceiro avô, o que lhe dava um lugar entre a nobreza do Reino.
Todos estes atributos
tiveram grande influência na escolha feita
por D. Manuel, que procurava mais propriamente um diplomata do que
um navegador, para assumir o comando da frota.
Encontrado o capitão, urgia dar-lhe as instruções necessárias,
fazer a distribuição dos restantes cargos e apetrechar
convenientemente as embarcações.
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Analisando cada um destes aspectos em particular, comecemos por
ouvir o que nos diz Jaime Cortesão, na Sua obra «A Expedição de
Pedro Álvores Cabral», acerca das instruções por este recebidas,
das quais se conhecem «um regimento e um complemento redigido sob a
forma de carta régia:» «começam essas instruções por determinar o
alardo da partida e, a seguir, a maneira que se deve ter na vigia
de fogo, no regimento dos mantimentos, com as chaves dos paióis, na
repartição do vinho aos marinheiros, com as salvas e os sinais para
a frota, durante toda a viagem e depois a derrota e acidentes possíveis, terminando com os objectivos da expedição, definidos e
esmiuçados com previsão inexcedível».
Como se vê, nada fora votado ao esquecimento, quer no que respeita
à viagem em si, quer no que se refere à vida a bordo.
O mesmo cuidado está também patente no apetrechamento dos navios,
dotados dos últimos inventos militares e transportando as mais
abundantes e variadas riquezas, como convinha ao espírito da
expedição. Ali se viam as mais ricas peças de ouro e prata, os mais
sumptuosos tecidos, os cofres encerrando «os justos e os espadins
de D. João II, os cruzados e os portugueses de D. Manuel, os últimos
dos quais já celebravam o descobrimento da Índia, as dobras
castelhanas, os florins de Aragão, as coroas flamengas, os ducados de Veneza
ou
Roma e até a dobra mourisca ou valedia». (Jaime Cortesão, obra anteriormente citada).
No que respeita ao
número das embarcações, quase todos os
autores são unânimes em concordar que a frota erra constituída por
treze navios, mais precisamente, «des naus e três navios redondos»,
no dizer de Castanheda. Os capitães eram, além de Pedro Álvares Cabral, Sancho
de Tovar, subcomandante – nau El-Rei –, Bartolomeu
Dias, Nicolau Coelho, Pero de Ataíde – nau S. Pedro –-, Diogo Dias,
Nuno Leitão – nau Anunciada –, e Aires Gomes da Silva, entre outros. Dos restantes cargos superiores conhecem-se
apenas os nomes de
dois pilotos, de igual número de escrivães, do chefe dos
franciscanos que seguiam a bordo, de três leitores, de um médico, de
dois intérpretes e, finalmente, de alguns homens de armas. Por este
motivo, somos levados a concluir que muitos nomes se perderam na
bruma do passado, tanto mais que, segundo
Castanheda, a tripulação
da armada era constituída por cerca de 1500 homens, que a tornavam
«mui poderosa em armas e em gente luzida», como afirma João de
Barros.
Como é do conhecimento de todos, o
problema da intencionalidade
da viagem de Pedro Álvares Cabral tem sido motivo de forte
controvérsia. Na verdade, se alguns sustentam que tal acontecimento
se deu por capricho do destino, outros afirmam categoricamente que já
havia noticia anterior das terras de Vera Cruz. De que Iado se
encontra a razão? – eis uma pergunta que formulo na esperança de
que, um dia, os estudiosos encontrem para ela uma resposta tanto
quanto possível
/ 10 / acertada. Por este motivo, limitemo-nos a analisar o empreendimento, baseados num manuscrito de precioso valor documental,
a Carta
de Pêro Vaz de Caminha, de 2 de Maio de 1500.
Que cargo desempenhava Pêro Vaz na expedição? As opiniões, sobre o
assunto não são unânimes. Por exemplo, os depoimentos de Castanheda
e de Damião de Góis dizem-nos que Caminha seguia a bordo como
escrivão da feitoria
de Calecute, o mesmo sucedendo
com Gonçalo Gil Barbosa. Outros, como Pereira da Costa, acrescentariam ainda a esse cargo o de escrivão da armada. Jaime Cortesão,
num estudo aturado que fez sobre o assunto, concluiu: «Em conjunto a
presença de Caminha a bordo da capitânia e a substância de auto E
diário da missiva; a participação de Caminha com Nicolau Coelho E
Bartolomeu Dias na expedição do dia 25; e o singular abandono a que
votou a Carta no único dia em que permaneceu a bordo e, por consequência, mais
facilmente a poderia redigir, nos convenceram de que
ele era escrivão, pelo menos, da capitânia de Cabral». Tomando a posição mais prudente, poderei, pois, afirmar que Pêro Vaz era
escrivão, cabendo aos eruditos dizer se o era da feitoria de
Calecute, da armada ou apenas da nau capitânia.
Que nos diz então a carta?
No domingo, dia 8, depois de ouvida a missa na Capela de
Nossa Senhora de Belém, formou-se um cortejo, que conduziu Pedro Álvares Cabral ao batel que o havia de levar a bordo. Nele tomaram
parte o bispo de Ceuta, que celebrara a referida cerimónia, o Rei,
que
seguia ao lado do capitão, ambos debaixo de um pálio, a Corte e,
finalmente, o povo. Chegados à praia do Restelo, Pedro Álvares e
os restantes capitães, beijada a mão a EI-Rei, tomaram lugar nos
batéis, ao som das trombetas e outros instrumentos que,
ruidosamente, se faziam ouvir. O colorido das bandeiras e colchas
das embarcações, destacando-se no azul do céu e do rio, procurava
dar um tom festivo ao quadro grave e comovente a que se assistia, e
que será desnecessário referir.
Ao fim da tarde, levantou-se um vento
forte que, sendo
desfavorável, obrigou a um adiamento da partida, a qual só veio a
realizar-se decorridas 24 horas sobre este incidente.
No dia 14, sábado, como refere a Carta de Caminha, «nos achamos
amtre as Canareas, mais perto da gram Canarea; e aly andamos todo
aquele dia em calma, a vista d'elas, obra de 3 ou 4 legoas.»
Volvidos 8 dias, a 22, por conseguinte,
foram alcançadas as Ilhas de
Cabo Verde e, na manhã seguinte, deu-se por falta da nau de Vasco de
Ataíde, pelo que Pedro Álvares Cabral imediatamente ordenou a sua
busca. Perdidas as esperanças de recuperar o navio transviado e
retomando a armada a sua rota, foi avistada terra, o que não
constituiu grande surpresa, na medida em que já há algum tempo vinham
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a ser observados sinais indicativos da sua aproximação: abundância de algas e aves
marinhas. Estava-se então a 22 de
Abril de 1500.
A primeira visão de terras do Brasil é-nos narrada deste modo por
Caminha: «e neste dia, o Oras de bespera, ouvemos vista de terra,
saber: primeiramente d'hum grande monte muy alto e redondo, e
d'outras terras mais baixas, ao sul d'ele, e de terra chãa, com
grandes arvoredos, ao qual monte alto o capitam pos nome o monte
Pascoal, e
na terra a terra de Vera Cruz». Se por uns breves momentos deixarmos
o
nosso espírito trilhar os caminhos da imaginação, poderemos calcular
o sem número de emoções que perpassou na mente dos nossos
marinheiros, ao avistarem um território que lhes era, pelo menos
aparentemente, desconhecido.
Só, porém, no dia seguinte
a frota se dirigiu para terra, ancorando a meia légua desta, em frente à foz de um rio. Por ordem
de Pedro Álvares, desembarcou então Nicolau Coelho, que, ao chegar à praia, se viu cercado por um grupo de 20 indígenas, armados com
arcos e flechas. Depois de os apaziguar e reconhecendo a
impossibilidade de estabelecer uma conversação, o navegador trocou
presentes com eles, fomentando deste modo as primeiros relações
amigáveis com os naturais da terra.
Sexta-feira de manhã, em virtude do vento forte que soprara durante
toda a noite, a armado partiu em busca de local seguro para fundear.
Descoberto este e aí ancoradas as embarcações, foi enviado a terra
Afonso Lopes, para explorar o «arreçife» e o porto. Quando regressou
à capitânia, já de noite, fazia-se acompanhar de 2 indígenas,
descritos do modo seguinte por Caminha: «A feiçam d'eles he seerem
pardos, maneira d'avermelhados, de boos rostos e boos narizes bem
feitos; andam nuus, sem nenhuña cobertura; [...] traziam ambos
os beiços de baixo furados e metidos por eles senhos osos d'oso bramcos de compridam de huña maão travessa e de grosura de huum fuso d'algodam, e agudo na ponta coma furador; [...] os cabelos seus sam coredios, e
andavam trosqujados de trosquja alta [...] e rapados ataa per cima das orelhas... No que respeita aos seus costumes,
acrescenta o autor da Carta: «e nom fezeram nenhuña mençam de
cortesia, nem de falar ao capitam, nem a njmguém» e, mais adiante,
«entam estiraran se asy de costas na alcatifa a dormir sem teer
nenhuña maneira de cobrirem suas vergonhas». Como facilmente se
depreende, era notório o estado atrasado de civilização dos
naturais do Brasil.
No domingo de pascoela, 26 de Abril, por determinação de Pedro
Álvares Cabra!, foi rezada missa no ilhéu da baía onde a frota
estava ancorada. A seguir houve pregação pelo celebrante, o padre
frei Henrique. A estas cerimónias assistiram, não só os nossos
navegadores, mas também bastantes indígenas, alguns dos quais,
terminada a missa, exteriorizaram os seus sentimentos saltando e
dançando ao som dos instrumentos que traziam. Esta sua participação
espontânea nas cerimónias
/ 12 / que se estavam a realizar compreende-se facilmente se
tivermos em conta o seu carácter simples e ingénuo. Não se lhe
deve, pois, atribuir demasiado significado.
Depois de uma breve refeição, dirigiram-se os capitães à nau de
Pedro Álvares Cabral para se discutir o modo como deviam ser
mandadas notícias da descoberta ao Rei D. Manuel. Tendo todos
concordado que as novas seguiriam pelo navio dos mantimentos e mais
ainda, que seria inútil capturar indígenas pela impossibilidade de
os compreender, dirigiram-se para terra em seus batéis.
Nos dias seguintes, segunda e terça-feira, com
as regulares idas a terra, foram-se estreitando as relações dos nossos com os naturais,
que se mostravam afáveis e hospitaleiros, como confirmaram os
degredados enviados a uma aldeia indígena para colherem noticias.
O dia de quarta-feira foi passado
a bordo por ordem do capitão, a
fim de ser despejado o navio dos mantimentos. A estranha sobriedade
de Caminha ao relatar o que se passou nesta data, leva-nos o pensar
que estaria ao serviço de Pedro Álvares, na sua qualidade de
escrivão da capitânia...
Na quinta-feira, como consta da Carta, chegados os nossos à
praia,
indo em busca de lenha e água, achou por bem o capitão que se fosse
beijar a cruz de madeira feita na antevéspera, a qual estava
encostada a uma árvore, para ser erguida no dia seguinte.
Os indígenas, incitados
pelos nossos a imitá-los, correrem também a beijá-la, o que permitiu
a Caminha formular a hipótese da sua fácil evangelização, logo que se tornasse conhecida
a sua Iíngua.
Atentemos agora no que ele nos diz relativamente ao dia que se
seguiu, sexta-feira, 1 de Maio, véspera da partida. Começa por se
referir à colocação da cruz, aludindo depois à celebração de uma
missa pelo já citado padre frei Henrique. À cerimónia assistiram
respeitosamente inúmeros indígenas, que procuravam imitar os
movimentos dos nossos.
Entre eles é destacada a figura de um homem de cerca de cinquenta
anos que, na altura da comunhão, quando alguns dos seus se
retiravam, «acenou com o dedo para o altar, e depois mostrou o dedo para o ceo coma que lhes dizia alguna cousa de bem; e asy o
tomamos». Terminada a pregação, que teve lugar depois da missa,
foram distribuídos pelos indígenas crucifixos de estanho, que o
padre Henrique, sentado junto da cruz, colocava ao pescoço de cada
um. Na
descrição destas breves passagens transparece o ideal profundamente
religioso que animava os nossos navegadores na empresa das
descobertas. O desejo de evangelizar novos povos estava bem
presente no
espírito daqueles homens valorosos, que não se poupavam a esforços
para verem realizados os seus intentos.
De igual modo não lhes é estranho o nobre desejo de criar laços de
amizade com os naturais. A atestá-lo, vemos que na refeição que a
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bordo se seguiu, tomaram parte, convidados pelo capitão, o homem de
50 anos a que há pouco me referi, bem como um irmão seu.
No seguimento da sua Carta, Pêro Vaz, depois de reforçar a ideia
anteriormente apresentada acerca da evangelização dos indígenas,
informa EI-Rei D. Manuel que em terra ficam dois degredados e igual
número de grumetes, estes últimos, porém, fugidos durante a noite.
Faz depois uma descrição pormenorizada das terras de Santa Cruz,
nos seguintes moldes: «Esta terra, senhor, me pareçe que da pomta,
que mais contra o sul vimos, atra outra pomta, que contra o norte
vem, de que nós d'este porto ouvemos visto, sera tamanha que avera
neela bem 20 ou 25 legoas por costa. [.. .] De pomta a pomta he toda
praya parma muito chaã e muito fremosa: pelo saartão nos pareceo do
mar mujto grande porque, a estender olhos, nom podiamos veer se nam
terra e arvoredos, que nos pareçia muy longa terra. Neela ataa agora
nom podemos saber que aja ouro nem prata, nem nenhuma cousa de
metal, nem de fero, nem lho vimos; peroa a terra em sy he de muitos
boos aares asy frios e temperados como os d' entre Douro e Minho [...];
agoas som muitas infindas; em tal maneira he graciosa que querendo a aproveitar, darseá nela tudo per bem das
agoas que tem; pero
o milhor fruito que nela se pode fazer me pareçe que será salvar
esta jente; e esta deve seer a principal semente que Vossa Alteza
em ela deve lançar [...]; Nestas últimas linhas, mais uma vez está
presente o carácter religioso das nossas primeiras expedições.
E deste modo termina Pêro Vaz a sua preciosa
missiva, trazida para
Portugal pelo navio de Gaspar de Lemos, a mandado do capitão, antes
da partida rumo ao Cabo da Boa Esperança.
O assunto exposto é, sem dúvida, um resumo do que se pode afirmar
com segurança sobre a descoberta do Brasil. Tudo o mais são
conjecturas, pelo que não me alongarei em considerações.
E ao terminar, queria agradecer e paciência com que escutastes
estas minhas breves palavras, que são o meu modesto contributo para
as Comemorações Cabralinas.
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