Acesso à hierarquia superior.

farol n.º 29 - mil novecentos e sessenta e oito ♦ sessenta e nove, págs. 5 e 14.

"RETRATO"

João Raposo
(6.º e)
 

O Pedro viera das terras quentes de África, para onde os pais o tinham levado ainda em criança. Lá passou cinco anos despreocupados, fazendo inúmeras amizades entre os negritos seus companheiros e entregando-se à aprendizagem das primeiras letras. Ao fim daquele período, o pai recebeu uma ordem de transferência, que o colocava de novo no continente. Urgia partir. Os preparativos fizeram-se em seis longos mas breves dias. Depois, a viagem, o desembarque em Lisboa e a fixação numa aldeola perto daqui.

Quando conheci o Pedro, contava ele 13 anos. Era um moço da minha estatura, loiro, de ombros largos e cara redonda. Nela sobressaíam as sobrancelhas, extraordinariamente carregadas, e os olhos húmidos, de cor de azeitona. Quando estava atento, como que os semicerrava, assumindo o seu rosto um ar grave, mas divertido. Verdadeiramente curioso era o seu modo de andar, muito direito, atirando as pernas, violentamente, para a frente. Havia até quem lhe chamasse o «paraquedista...» Ele é que não se importava e, tirando partido da sua longa passada, conseguia ser dos corredores mais velozes da turma.

Ao lado do aspecto físico, cultivou o Pedro um certo número de qualidades, que o tornaram respeitado não só por nós, colegas, mas também pelos seus superiores. Assim, se bem que não fosse dos mais trabalhadores, era dos mais estimados pela correcção, aprumo e pontualidade. Nunca chegava tarde a uma aula ou se dirigia a um empregado num tom mais ríspido.

O Pedro nunca pertenceu a nenhum grupo de recreio, por considerar isso odioso. Procurava sempre estar em toda a parte, tomando parte nas conversas e expondo as suas opiniões acerca disto ou daquilo.

As duas qualidades morais que nele se destacavam mais eram a bondade e a modéstia. Nunca deixava sem esmola um pobre que lha pedisse, procurando manter sempre no anonimato as suas atitudes louváveis.

Todavia, ao lado destas qualidades, tinha o Pedro um defeito capital, que consistia em se irritar facilmente. Se alguém discordava de uma opinião sua, era certo e sabido que haveria discussão acalorada. Porém, em breve se esqueciam esses momentos / 14 /  menos agradáveis, voluntariamente integrados num passado muito remoto.

No final do ano, o Pedro deixou-nos. Mudou-se para Faro, donde periodicamente me escreve. Hoje frequenta o 6.º ano de Germânicas e, segundo creio, continua a ser aquele moço loiro e de andar esquisito, correcto e aprumado. Aqui lhe deixo expresso um pouco da profunda admiração que lhe dedico.

 

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11-06-2018