Francisco José Paula
dos Santos Piçarra
(6.º e)
Sabemos pela
História que, na Idade Média, duas civilizações se defrontaram, em
luta de vida ou de morte: a cristã e a muçulmana. Ora, uma das
principais regiões em que a luta era mais encarniçada, situava-se
precisamente na Península Ibérica. Portugal procurava então
desembaraçar-se do jugo dos Mouros, tentando, por contínuas e
valorosas lutas, conquistar território que lhe permitisse tornar-se
um país autónomo, livre e soberano.
Mas, para levar a bom termo tão sublime e difícil tarefa, era
necessário que nele colaborassem todos os homens válidos e muito
especialmente a flor da juventude que, sob a chefia de um rei
corajoso, conseguisse levar avante tão arriscada empresa. Assim o
«amigo», o jovem enamorado, teria de se ausentar, frequentemente
para o serviço militar, e a donzela apaixonada sentia profundamente
esta separação. O saudosismo que daí advinha deu ensejo a que
muitas das manifestações poéticas do tempo, sobretudo as chamadas
«cantigas de amigo», se ocupassem desta temática. Esta modalidade da
poesia trovadoresca é, afinal, a expressão dos sentimentos amorosos da donzela enamorada, que conta o
que lhe vai na alma, quanto ama o seu (amigo), quanto lhe custa
estar separado dele... Estes sentimentos, que a afectavam, eram
naturalmente diversos, consoante se tratava da partida, da ausência
ou da ansiedade da chegada do ente amado.
Com efeito, o choque sentido no momento da partida para a luta é de
dor profunda, que quase lhe arranca um grito, sobretudo se essa
partida é inesperada:
«Como vivo coitada, Madre, por meu amigo
Ca me mandou recado, que se vai no ferido
E por ele vivo
coitada»
«Como vivo coitada, Madre, por meu amado
Ca me mandou recado, que se vai no fossado
E por ele vivo
coitada»
(Cancioneiro da Vaticana)
Como se vê, a donzela confessa à sua mãe quanto sofre, porque a
partida do «amigo» foi tão repentina que ele nem teve tempo de se
despedir, limitando-se a mandar-lhe um recado.
/
24 /
A luta estendia-se por vezes também ao mar. Este foi muitas vezes campo de batalha entre Portugueses e Mouros. Assim,
sabemos que em 1179 o chefe Abu Icaub preparou e enviou ao
Tejo uma frota, com a qual os cristãos se tiveram de bater.
Desta forma não será de estranhar que a donzela contemple
orgulhosa, embora triste, a partida do seu (amado), que vai lutar
por uma causa nobre, isto é, servir EI-Rei de Portugal e alargar
o reino de Cristo:
«As ffroles do meu amigo
briosas uan no nauyo!
E nã-as [e] as frores
d'aqui ben cõ meus amores!
Idas con as frores
d'aqui bë con meus amores!»
«Briosas uã eno barco
pera chegar a ffossado:
E uã-ss [e] as frores
d'aqui ben cõ meus amores!
Idas son as frores
d'aqui bë con meus amores!»
(Paay Gomez Charinho)
A realçar esta ideia podemos ainda observar a seguinte «cobra»
(cobra=copla):
«El-rei de Portugale
barcas mandou lavrare
e lá era nas barcas migo
mia filha, o voss'amigo»
(Joan Zorro)
Vejamos agora o aspecto da ausência do «amigo». A donzela,
inquieta pela prolongada ausência do «amigo», confessa a uma
amiga os seus receios de que ele possa ter morrido. É o que nos
dá a entender D. Dini», nesta sua tão bela composição:
«− Ay amiga, eu ando tã
coytada
que sol nõ poss'ë mi tomar prazer,
cuydand'en como sse pode fazer
que nõ é ia comigo tornada,
e, par Deus, por que o nõ ui' aqui,
que é morto gram sospeyta tom' [ i ]
e, sse mort' é, mal dia eu fuy nada.»
É claro que ela deseja ardentemente o seu regresso e esse seu
desejo ampara-a na dor. Mas esse sentimento é, por vezes, tão forte,
que ela caminha até à praia para dialogar com as ondas
e pergunta-lhes pelo «amigo»:
/ 25 /
«Ondas do mar de Vigo
se vistes meu amigo!
E ay Deus, se uerra cedo!»
«Se uistes meu amigo
o por que eu sospiro!
E ay Deus, se uerra cedo!»
(Martin Codax)
Por vezes a donzela está convencida de que o «amado» vem
dentro em breve, pois o prazo está a terminar. Mas, passado esse
tempo, a esperança tão forte que a animava, não se concretiza e
então lamenta-se profundamente, dirigindo-se à sua mãe:
«Vy eu, mha madre, andar
as barcas eno mar,
e moyro-me d'amor!
E foi-las aguardar,
e nom o pud' achar
e moyro-me d'amor!
(Nuno Fernandes Torneol)
Ontem, como hoje, os sentimentos de quem ama são muito
semelhantes entre si. Sofre-se à partida, chora-se de saudade na
ausência, que se prolonga bem contra vontade; mas este padecimento é
suavizado pela esperança do regresso, que, tarde ou cedo, se
concretizará numa grande alegria: o encontro de dois seres que se
querem bem!...
Por aqui podemos verificar como através das «cantigas de amigo»
podemos conhecer não só alguns aspectos da sociedade medieval, mas
também a poderosa influência que eles exerceram sobre as almas
enamoradas da juventude.
Ao fim de todas estas considerações uma ideia nos salta à vista: a
juventude feminina desempenhou um papel indirecto na gesta da
Reconquista, visto que, embora não tenha tomado nela parte activa, o
seu espírito delicado e sempre lírico ressentiu-se dessa árdua
empresa, pois nela tomaram parte activa os seus «amigos», que a todo
o momento podiam sucumbir na luta.
Como nos tempos medievais, também hoje, nesta nova Cruzada que é a
luta no nosso Ultramar, a juventude feminina sofre pela partida,
pela ausência ou pela expectativa da chegada daqueles entes queridos
a quem deram o seu coração e, com ele, a coragem de serem dignos de
seus maiores, na defesa do património nacional. |